RESUMO Referência em estudos sobre pobreza no Brasil, o economista Ricardo Paes de Barros afirma que trabalhos como o de Marc Morgan não contestam os avanços do país nos últimos anos. Na entrevista, ele fala sobre critérios para medir desigualdade e debate o sistema tributário e os gastos sociais do governo.
Responsável por alguns dos principais estudos publicados sobre pobreza e desigualdade no Brasil, o economista Ricardo Paes de Barros afirma que trabalhos como o do irlandês Marc Morgan estão longe de negar os avanços feitos pelo país nos últimos anos.
Os dados de Morgan indicam maior concentração de renda no topo da pirâmide social, mas confirmam que também houve ganhos significativos para as camadas mais pobres da população, diz Paes de Barros, que é economista-chefe do Instituto Ayrton Senna, doutor em economia pela Universidade de Chicago e professor do Insper.
Para ele, seria importante rediscutir o sistema tributário brasileiro, para torná-lo mais justo e eficiente, mas o debate sobre os impostos dos ricos não deveria deixar em segundo plano esforços para aprimorar as políticas sociais do governo e tornar mais produtiva a economia brasileira.
Folha - Os novos estudos sobre renda e desigualdade mudam o que sabíamos do problema?
Ricardo Paes de Barros - O que esse pessoal está mostrando é que tem mais renda por aí do que a gente estava contando. Renda a mais é sempre bom, seja lá para quem for. Se a renda dos mais ricos aumentou e isso não piorou a vida de ninguém, é uma boa coisa. Pode até melhorar a vida de algumas pessoas, se eles pagarem mais impostos e contribuírem mais com o país.
Eu ficaria bem preocupado se as pessoas tivessem ficado mais ricas porque os pobres ficaram mais pobres. Mas não é o que esses estudos mostram. O pobre melhorou tanto quanto sempre dissemos que melhorou, mas o rico também melhorou. Ótimo. O Brasil melhorou mais do que achávamos, a renda de todo mundo melhorou e a pobreza caiu.
A vida do pobre melhorou muito nos últimos anos, e nenhum desses estudos contesta isso. O nível de subnutrição do Nordeste, que era estupidamente elevado, hoje é similar ao da região Sul. As condições básicas de vida da população melhoraram de forma espetacular, e temos que continuar fazendo isso.
E a desigualdade, que parecia estar caindo aceleradamente?
Não podemos dizer que a desigualdade aumentou. Se a proporção da renda apropriada pelos mais pobres cresceu, e a proporção da renda apropriada pelos mais ricos subiu, quem está no meio caiu, e nesse caso a gente não sabe direito o que aconteceu com a desigualdade. Depende da medida escolhida e dos critérios que você definir.
Se a proporção da renda apropriada pelos 50% mais pobres aumentou, não estou nem aí para o que aconteceu com a metade mais rica da população. A variação da renda afeta muito mais o bem-estar do pobre do que o do rico. Um real a mais para o pobre vale muito mais do que um real a mais para o rico. Isso é o que importa.
Se você olhar pela janela, vai ver lá embaixo um cara com uma casa melhor, outro que tem uma casa pior. Estamos num bairro rico. Mas não é essa a desigualdade que me interessa, é aquela que você vê quando vai à periferia, ou ao interior do Piauí. São lugares onde o nível de qualidade de vida melhorou muito, mas ainda é ridículo.
A concentração de renda nos estratos mais ricos não preocupa?
Já viu como o capital é concentrado na Suécia? Uma única família, os Wallenberg, é a principal acionista de algumas das maiores empresas do país. É tudo do mesmo dono. Qual o problema? A Suécia é um país democrático. Você pode taxar esses caras.
Não é questão de justiça social?
A princípio, não existe concentração de riqueza justa ou injusta. Depende de como ela foi acumulada. Se você me disser que essa riqueza no Brasil foi acumulada por causa das capitanias hereditárias, vou concordar que é injusta. Mas se o conde Francisco Matarazzo chegou pobre da Itália, trabalhou e acumulou capital, pode ser que essa concentração não seja injusta.
O que sabemos sobre a maneira como a riqueza tem sido acumulada no Brasil?
Podemos levantar hipóteses. A gente tem uma taxa de juros muito alta. Fico impressionado quando olho a poupança e vejo como ganho dinheiro sem fazer nada. Vivemos num país endividado, em que o governo toma dinheiro emprestado loucamente e paga juros altos.
Nesse mundo, naturalmente quem tem dinheiro vai ficando mais rico, cada vez mais. Mas o que há de justo ou injusto nisso? Depende de como essas pessoas conseguiram o dinheiro que emprestaram para a gente. Eles podiam não emprestar.
E se esse mesmo grupo também receber subsídios, altas aposentadorias e outros benefícios do governo?
Como a metade mais pobre da população ganhou, não é ela que está pagando essa conta. Ocorreu uma transferência da classe média para os ricos. Estranha sociedade essa, que fica transferindo renda entre grupos que formam a metade mais rica do país.
Estou preocupado com a metade mais pobre, com as políticas que podem fazer a renda dos mais pobres continuar aumentando.
Se o Brasil congelar o que arrecada e começar a gastar mais com os 50% mais pobres, para mim está ótimo. Se os 50% mais pobres têm pouco mais de 10% da renda nacional e o governo arrecada 30%, é possível duplicar a renda desses caras com um terço da arrecadação.
Taxar os mais ricos é solução?
É fundamental rediscutir os impostos, mas simplesmente taxar não vai resolver. Temos que discutir se queremos arrecadar mais ou menos, e a resposta não é muito óbvia. Precisamos discutir quanto queremos que o governo gaste. Depois, como fazer isso da maneira mais justa e eficiente. Nosso sistema tributário é uma loucura. Temos que torná-lo mais redistributivo e mais eficiente. Mas essa discussão não vai decolar antes que a gente decida quanto a gente quer.
Para fazer o quê?
Seria o segundo passo. A questão é como aumentar a renda do pobre de maneira que ele não receba apenas uma transferência de renda, mas tenha crédito para o negócio dele, a gente melhore o ambiente de negócios e faça milhões de coisas que podemos fazer para aumentar a renda desses caras.
Não tem nenhuma política pública que exista no mundo que não exista no Brasil. Nosso problema é que a gente foca pouco essas políticas em quem realmente precisa. Remédios comprados por ordem da Justiça para quem não precisa que o remédio seja pago pelo governo. Universidade pública gratuita para quem pode pagar. Bolsa Família que não vai necessariamente para as famílias mais pobres.
Se alguém disser que sabe o que é mais eficaz, não sei como sabe. Embora a avaliação e o monitoramento das políticas tenham melhorado, ninguém até hoje avaliou direito a maioria delas. Nosso esforço no combate à pobreza é fantástico, mas a gente aloca os recursos meio às cegas, e muitas vezes ele não vai para quem realmente precisa.
Discutir os impostos dos ricos seria desviar o foco do principal, ou é possível fazer as duas coisas?
Devíamos sentar todo mundo e estabelecer algumas coisas. Olha, gente, nós somos solidários. Vamos gastar tanto, mas vamos combinar que vamos gastar isso bem. Não vai ser do dia para a noite. Mas só vai acontecer se criarmos um sistema de governança em que cada real só pode ser gasto se você demonstrar que será bem gasto e comprovar depois com os resultados.
Se tivesse que definir uma prioridade, qual seria?
O Brasil precisa ganhar produtividade, porque estamos chegando ao limite do que a política social é capaz de fazer. É impossível aumentar salário sem aumentar a produtividade. Sem ganho de renda do trabalho, você não tem redução sustentável da pobreza. Num país em que a produtividade cresce rápido, dá para fazer muita coisa. Com produtividade estagnada, crescendo lentamente, fica muito difícil.
Uma das maneiras mais fáceis é criar um ambiente em que as pessoas consigam aproveitar oportunidades de negócio. Se é muito complicado abrir uma empresa e fazê-la funcionar, o país não consegue aproveitar as oportunidades.
Precisamos descobrir por que o Brasil inova pouco e copia pouco. Produtividade tem a ver com o ambiente de negócios e a adoção de novas tecnologias. A educação precisa melhorar, para você ter uma força de trabalho preparada pra isso. E temos que aprender a valorizar o que se produz aqui, vendendo melhor lá fora.
Responsável por alguns dos principais estudos publicados sobre pobreza e desigualdade no Brasil, o economista Ricardo Paes de Barros afirma que trabalhos como o do irlandês Marc Morgan estão longe de negar os avanços feitos pelo país nos últimos anos.
Os dados de Morgan indicam maior concentração de renda no topo da pirâmide social, mas confirmam que também houve ganhos significativos para as camadas mais pobres da população, diz Paes de Barros, que é economista-chefe do Instituto Ayrton Senna, doutor em economia pela Universidade de Chicago e professor do Insper.
Para ele, seria importante rediscutir o sistema tributário brasileiro, para torná-lo mais justo e eficiente, mas o debate sobre os impostos dos ricos não deveria deixar em segundo plano esforços para aprimorar as políticas sociais do governo e tornar mais produtiva a economia brasileira.
Folha - Os novos estudos sobre renda e desigualdade mudam o que sabíamos do problema?
Ricardo Paes de Barros - O que esse pessoal está mostrando é que tem mais renda por aí do que a gente estava contando. Renda a mais é sempre bom, seja lá para quem for. Se a renda dos mais ricos aumentou e isso não piorou a vida de ninguém, é uma boa coisa. Pode até melhorar a vida de algumas pessoas, se eles pagarem mais impostos e contribuírem mais com o país.
Eu ficaria bem preocupado se as pessoas tivessem ficado mais ricas porque os pobres ficaram mais pobres. Mas não é o que esses estudos mostram. O pobre melhorou tanto quanto sempre dissemos que melhorou, mas o rico também melhorou. Ótimo. O Brasil melhorou mais do que achávamos, a renda de todo mundo melhorou e a pobreza caiu.
A vida do pobre melhorou muito nos últimos anos, e nenhum desses estudos contesta isso. O nível de subnutrição do Nordeste, que era estupidamente elevado, hoje é similar ao da região Sul. As condições básicas de vida da população melhoraram de forma espetacular, e temos que continuar fazendo isso.
Não podemos dizer que a desigualdade aumentou. Se a proporção da renda apropriada pelos mais pobres cresceu, e a proporção da renda apropriada pelos mais ricos subiu, quem está no meio caiu, e nesse caso a gente não sabe direito o que aconteceu com a desigualdade. Depende da medida escolhida e dos critérios que você definir.
Se a proporção da renda apropriada pelos 50% mais pobres aumentou, não estou nem aí para o que aconteceu com a metade mais rica da população. A variação da renda afeta muito mais o bem-estar do pobre do que o do rico. Um real a mais para o pobre vale muito mais do que um real a mais para o rico. Isso é o que importa.
Se você olhar pela janela, vai ver lá embaixo um cara com uma casa melhor, outro que tem uma casa pior. Estamos num bairro rico. Mas não é essa a desigualdade que me interessa, é aquela que você vê quando vai à periferia, ou ao interior do Piauí. São lugares onde o nível de qualidade de vida melhorou muito, mas ainda é ridículo.
A concentração de renda nos estratos mais ricos não preocupa?
Já viu como o capital é concentrado na Suécia? Uma única família, os Wallenberg, é a principal acionista de algumas das maiores empresas do país. É tudo do mesmo dono. Qual o problema? A Suécia é um país democrático. Você pode taxar esses caras.
Não é questão de justiça social?
A princípio, não existe concentração de riqueza justa ou injusta. Depende de como ela foi acumulada. Se você me disser que essa riqueza no Brasil foi acumulada por causa das capitanias hereditárias, vou concordar que é injusta. Mas se o conde Francisco Matarazzo chegou pobre da Itália, trabalhou e acumulou capital, pode ser que essa concentração não seja injusta.
Podemos levantar hipóteses. A gente tem uma taxa de juros muito alta. Fico impressionado quando olho a poupança e vejo como ganho dinheiro sem fazer nada. Vivemos num país endividado, em que o governo toma dinheiro emprestado loucamente e paga juros altos.
Nesse mundo, naturalmente quem tem dinheiro vai ficando mais rico, cada vez mais. Mas o que há de justo ou injusto nisso? Depende de como essas pessoas conseguiram o dinheiro que emprestaram para a gente. Eles podiam não emprestar.
E se esse mesmo grupo também receber subsídios, altas aposentadorias e outros benefícios do governo?
Como a metade mais pobre da população ganhou, não é ela que está pagando essa conta. Ocorreu uma transferência da classe média para os ricos. Estranha sociedade essa, que fica transferindo renda entre grupos que formam a metade mais rica do país.
Estou preocupado com a metade mais pobre, com as políticas que podem fazer a renda dos mais pobres continuar aumentando.
Se o Brasil congelar o que arrecada e começar a gastar mais com os 50% mais pobres, para mim está ótimo. Se os 50% mais pobres têm pouco mais de 10% da renda nacional e o governo arrecada 30%, é possível duplicar a renda desses caras com um terço da arrecadação.
Taxar os mais ricos é solução?
É fundamental rediscutir os impostos, mas simplesmente taxar não vai resolver. Temos que discutir se queremos arrecadar mais ou menos, e a resposta não é muito óbvia. Precisamos discutir quanto queremos que o governo gaste. Depois, como fazer isso da maneira mais justa e eficiente. Nosso sistema tributário é uma loucura. Temos que torná-lo mais redistributivo e mais eficiente. Mas essa discussão não vai decolar antes que a gente decida quanto a gente quer.
Para fazer o quê?
Seria o segundo passo. A questão é como aumentar a renda do pobre de maneira que ele não receba apenas uma transferência de renda, mas tenha crédito para o negócio dele, a gente melhore o ambiente de negócios e faça milhões de coisas que podemos fazer para aumentar a renda desses caras.
Não tem nenhuma política pública que exista no mundo que não exista no Brasil. Nosso problema é que a gente foca pouco essas políticas em quem realmente precisa. Remédios comprados por ordem da Justiça para quem não precisa que o remédio seja pago pelo governo. Universidade pública gratuita para quem pode pagar. Bolsa Família que não vai necessariamente para as famílias mais pobres.
Se alguém disser que sabe o que é mais eficaz, não sei como sabe. Embora a avaliação e o monitoramento das políticas tenham melhorado, ninguém até hoje avaliou direito a maioria delas. Nosso esforço no combate à pobreza é fantástico, mas a gente aloca os recursos meio às cegas, e muitas vezes ele não vai para quem realmente precisa.
Discutir os impostos dos ricos seria desviar o foco do principal, ou é possível fazer as duas coisas?
Devíamos sentar todo mundo e estabelecer algumas coisas. Olha, gente, nós somos solidários. Vamos gastar tanto, mas vamos combinar que vamos gastar isso bem. Não vai ser do dia para a noite. Mas só vai acontecer se criarmos um sistema de governança em que cada real só pode ser gasto se você demonstrar que será bem gasto e comprovar depois com os resultados.
Se tivesse que definir uma prioridade, qual seria?
O Brasil precisa ganhar produtividade, porque estamos chegando ao limite do que a política social é capaz de fazer. É impossível aumentar salário sem aumentar a produtividade. Sem ganho de renda do trabalho, você não tem redução sustentável da pobreza. Num país em que a produtividade cresce rápido, dá para fazer muita coisa. Com produtividade estagnada, crescendo lentamente, fica muito difícil.
Uma das maneiras mais fáceis é criar um ambiente em que as pessoas consigam aproveitar oportunidades de negócio. Se é muito complicado abrir uma empresa e fazê-la funcionar, o país não consegue aproveitar as oportunidades.
Precisamos descobrir por que o Brasil inova pouco e copia pouco. Produtividade tem a ver com o ambiente de negócios e a adoção de novas tecnologias. A educação precisa melhorar, para você ter uma força de trabalho preparada pra isso. E temos que aprender a valorizar o que se produz aqui, vendendo melhor lá fora.
RICARDO BALTHAZAR, 48, é repórter especial da Folha.
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