domingo, 3 de novembro de 2013

A rua e o poder


Para historiador, protestos carregam uma frágil força: conquistam multidões, mas sem diretrizes políticas duradouras

02 de novembro de 2013 | 15h 46

Juliana Sayuri - O Estado de S. Paulo
Mais uma vez, a voz das ruas. Ecos talvez das jornadas de junho, manifestações vibrantes voltaram a ocupar São Paulo. Dessa vez, na estrada federal: com multidões furiosas, caminhões incendiados e barricadas nos arredores da Rodovia Fernão Dias, zona norte, onde o estudante Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, morreu com um tiro disparado por um policial militar no domingo passado.
Perry Anderson, historiador e ensaísta político britânico - Luiz Munhoz/Fronteiras do Pensamento
Luiz Munhoz/Fronteiras do Pensamento
Perry Anderson, historiador e ensaísta político britânico
“As manifestações de junho marcaram o despertar político de uma nova geração. Mas outro levante popular, ainda maior, não pode ser descartado neste momento.” O alerta é do historiador britânico Perry Anderson, professor da Universidade da Califórnia, ex-editor da New Left Review, ensaísta e autor de Espectro: Da Direita à Esquerda no Mundo das Ideias (Boitempo), entre outros.
Aos 75 anos, Perry Anderson vive entre Londres e Los Angeles, mas dedica um inspirado olhar à América Latina e ao Brasil. Cá esteve para participar do Fronteiras do Pensamento em outubro, em Porto Alegre. No primeiro encontro, a impressão: um gênio difícil, dir-se-ia. Um dos mais importantes teóricos marxistas contemporâneos, o intelectual não é fã de entrevistas, escolhe suas palavras meticulosamente, voz firme, óculos quadrados e anotações datilografadas a tiracolo.
O historiador também passou por Campinas e São Paulo, onde nos reencontramos para um café filosófico nos Jardins. “Não gosto de dar entrevistas, particularmente. Todo mundo dá entrevistas atualmente, é muito fácil. É a síndrome de Andy Warhol: todos serão famosos por 15 minutos. Por isso, penso que só se deve falar quando realmente tiver algo a dizer”, justifica. Nesta entrevista exclusiva ao Aliás, Perry Anderson comenta os rumos do Brasil e do mundo em tempos de explosivos protestos populares.
Domingo passado, um jovem foi morto por um PM na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, provocando protestos violentos que travaram a Fernão Dias. Dilma Rousseff criticou a violência contra jovens negros da periferia, ‘a manifestação mais forte da desigualdade no Brasil’, nas palavras da presidente. Como o sr. analisa o poder (ou a fragilidade) das manifestações nas ruas desde as jornadas de junho no País?
Três grandes conquistas vieram com os protestos de junho. Primeiro, as manifestações marcaram o despertar político de uma nova geração - principalmente, mas não exclusivamente, dos jovens, dos trabalhadores oprimidos. Segundo, ao forçar espetacularmente governantes a recuar no aumento das tarifas de transporte público em grandes cidades, eles fizeram surgir uma compreensão do empoderamento social (de dimensão potencialmente nacional) para setores até então passivos da população. Por último, e não menos importante, levantaram a questão da distribuição escandalosamente distorcida das despesas públicas no Brasil. O mérito para tudo isso vai para os movimentos de esquerda que alavancaram os protestos - o MPL principalmente -, cujo eco popular foi tão expressivo que mesmo forças de direita aderiram às manifestações, pautadas por seus próprios propósitos. Assim, a fragilidade dos protestos está nessa enorme disparidade: por um lado, o pequeno núcleo organizado que inspirou as revoltas de junho; por outro, a escala das multidões que tomaram parte nessas manifestações, sem liderança política ou infraestrutura duradoura. O futuro dependerá de até que ponto essa lacuna poderá ser fechada.
No artigo Lula’s Brazil, publicado na London Review of Books, o sr. destaca a especial ênfase do ex-presidente aos mais pobres. Além da inclusão com programas como o Bolsa Família, o Brasil viu uma forte onda de consumo com a ascensão de uma ‘nova classe média’. A questão toda é sobre poder aquisitivo? É possível proporcionar inclusão e justiça social de outras maneiras?
Certamente é possível - e milhões de brasileiros mostraram neste inverno que eles entendem totalmente como: através da criação de serviços públicos decentes e equitativos para os cidadãos comuns, sobretudo transporte urbano aceitável, assistência médica, habitação social e educação fundamental. A grande conquista do governo Lula foi a criação de empregos e a elevação do poder aquisitivo dos pobres. Esses foram ganhos dentro das relações do mercado. Mas sem avanços correspondentes nas esferas da vida em que as relações de commodities não deveriam ter lugar, o risco é realmente gerar uma sociedade de consumo em que, como nos Estados Unidos, aumentar a prosperidade não é, na verdade, empecilho para aumentar, ainda mais rapidamente, a desigualdade. No Brasil, que ainda continua perto do recorde mundial de má distribuição de renda, só uma reforma radical da estrutura tributária, da administração pública e do sistema político pode frear esse perigo. É necessário um Estado que esteja verdadeiramente sob o controle de seus cidadãos, que seja capaz de oferecer serviços honestos, justos e construtivos para eles.
Mas esse Estado é possível?
Estrategicamente, a chave para a reforma precisa ser uma transformação do sistema político, cuja involução para uma ordem decadente e ensimesmada, afastada da vida popular do país, é agora amplamente reconhecida. Os beneficiários desse sistema - principalmente no Congresso, mas também nos poderes das cidades e dos Estados - não vão aceitar, por vontade própria, nenhuma mudança séria nessa ordem. Só a pressão popular pode forçá-los a fazê-lo. A convocação para uma Assembleia Constituinte é absolutamente correta, mas não pode ser instituída por um apelo presidencial que dependa da aprovação de uma classe política para a qual uma reforma pareceria uma tentativa de suicídio. Em Brasília, o Congresso apenas se renderia à fúria das massas nas ruas e nas praças. Isso é aceitável? As manifestações de junho vieram como um choque para a ordem estabelecida. Outro levante popular, talvez ainda maior, não pode ser descartado neste momento. Mas, para render frutos, uma alternativa construtiva para o atual impasse deve se firmar na imaginação popular. Disso ainda há pouco sinal.
Se fosse escrever um novo artigo, talvez Dilma’s Brazil, como seria? Dilma difere muito de Lula?
Em estilo, naturalmente difere de Lula. Nesse quesito, o dom do ex-presidente é inimitável. Em substância, há poucas diferenças. O que mudou não é nem a natureza nem as ambições da administração, mas as condições em que os dois operam. O crescimento no governo Lula foi impulsionado pelos altos preços de commodities na primeira década do século, que deram ao Brasil um considerável aumento do lucro das exportações. Esse momento passou - e o crescimento caiu. O novo governo tentou contrariar a conjuntura menos favorável ao reduzir as taxas de juros e introduzir modestas medidas protecionistas para estimular a economia. Mas o investimento - baixo há décadas no Brasil, segundo os padrões internacionais - falhou e os preços dos serviços começaram a subir. Isso estreitou o espaço econômico para manobra do governo justamente no momento em que as demandas sociais começaram a explodir, especialmente entre setores jovens da população. Encurralado entre essas duas pressões, o projeto do PT, como moldado no governo Lula, periga se esgotar. É necessário um novo modelo. Se o projeto encontrará um segundo fôlego ainda é uma questão aberta.
Após décadas de neoliberalismo, vimos a ascensão de ‘novos’ governos na América Latina, ao mesmo tempo - Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina, Lula no Brasil. Nomes da esquerda também foram eleitos na Bolívia, Equador e Uruguai. Olhando para trás, as expectativas sobre esses ‘novos’ governos eram muito altas?
Não tenho certeza se concordo com esse retrato. Minha impressão é que a euforia exagerada sobre o grau de uma ruptura com o neoliberalismo no novo século não era tão comum - mesmo porque ficou claro para todos que as experiências sul-americanas que você mencionou estavam se movendo no contrafluxo, quer dizer, contra a tendência do mundo, pois América do Norte, Ásia e Europa estavam ainda alinhados ao neoliberalismo. Na América Latina, é justamente o movimento contrário - não à mais privatização, nem à maior desregulamentação, lidando ainda com uma desigualdade acentuada, mas com medidas de proteção nacional, preocupação com os pobres, defesa da esfera pública - que moldou o horizonte político do continente que, apesar de todas suas irregularidades, tornou-se um farol de esperança para os povos de outros lugares.
Na época, vimos o nascimento do Fórum Social Mundial, após os fortes protestos de Seattle. Nos últimos tempos, vimos o Occupy Wall Street, os indignados espanhóis e outros movimentos contra o capitalismo. A mensagem é similar: outro mundo é possível. Por que esses movimentos explodem, expõem as contradições do sistema capitalista e depois desaparecem?
Aliás, desaparecem? Explicações sobre os padrões dessas repentinas e imponentes explosões de protestos populares - que se iniciam e desaparecem rapidamente, ainda sem provocar muitas mudanças - precisam incluir três fatores principais. Obviamente, o primeiro é a ruptura da continuidade na cultura de esquerda com a vitória do capitalismo ocidental na Guerra Fria. O segundo é o declínio, no mundo inteiro, dos partidos como forma clássica de organização política, agravando essa ruptura de continuidade. E, certamente, o terceiro é o advento da internet, que permite uma comunicação e uma mobilização muito rápidas de muitos indivíduos de outra forma dispersos. Entretanto, precisamente por permitir esse sucesso tão rápido e relativamente tão fácil, nos momentos de crise, a internet acaba desencorajando o trabalho mais lento e mais difícil de criar movimentos políticos com estrutura e organização mais duradouras.
Como o sr. analisa a resposta do Brasil ao escândalo de espionagem americana?
O Brasil certamente se saiu melhor - e mais firmemente - que qualquer país europeu. Ao cancelar a visita oficial a Washington e criticar a espionagem americana no discurso nas Nações Unidas, Dilma Rousseff mostrou gestos de dignidade que nenhum outro líder foi capaz de mostrar. Mas esses gestos permanecem limitados. O grau contínuo de submissão do Brasil ao império americano pode ser visto, por exemplo, no fracasso do país ao (não) oferecer asilo a Edward Snowden, que revelou o esquema de espionagem e desde então está sendo perseguido pela índole vingativa característica de Barack Obama, cujo registro de punições domésticas ultrapassa o de George W. Bush. Podemos ter certeza de que Snowden teria encontrado um refúgio mais feliz no Brasil democrático que na Rússia autocrática. Não ter oferecido isso a Snowden é um motivo para desonra nacional.
Ainda assim, o governo do PT mostra mais independência na política internacional?
Certamente mais que os governos de José Sarney ou de Fernando Henrique Cardoso. Mas se formos justos, precisamos lembrar que nenhuma ação de Lula ou de Dilma, apesar de muitas terem sido positivas, foi tão destemida quanto a de um oligarca da República Velha, Artur Bernardes, que, em 1926, retirou o Brasil da Liga das Nações porque eles se recusaram a dar a qualquer país não europeu um assento permanente no conselho. Essa foi uma decisão de honra.
O sr. publicou um livro sobre a Índia - The Indian Ideology. A experiência desse país seria relevante para o Brasil?
Sim. Acredito que um estudo comparativo entre essas duas democracias - grandes países, mas ainda subdesenvolvidos em certa medida - seria de grande interesse. Deveria haver mais intercâmbio intelectual e político entre Brasil e Índia. Inclusive onde suas reformas sociais oferecem paralelos. É uma pena, pensei muitas vezes, que nunca tenha havido (até onde sei) uma troca de experiências entre seus respectivos programas para redução da pobreza: o Bolsa Família, no Brasil, e a Lei Nacional de Garantia de Emprego Rural, na Índia. Um, referente a uma transferência de dinheiro; outro, à disposição de trabalho. São os dois programas mais importantes nessa linha no mundo.
O sr. é considerado um especialista em história intelectual. Tem conselhos para estudantes nesse campo?
Nunca confunda julgamentos políticos e julgamentos intelectuais. A qualidade dos pensadores sérios nunca é uma simples função de seus pontos de vista ideológicos. Pensamentos - à direita, ao centro e à esquerda - devem ser tratados com cuidado analítico e respeito crítico iguais.
E atualmente qual é o papel dos intelectuais na sociedade?
Há uma ideia generalizada de que para ser um intelectual é preciso ser crítico da ordem estabelecida. Não é verdade. Desde o nascimento moderno do termo, possivelmente mais intelectuais têm sustentado os sistemas dominantes em suas sociedades. Assim, não há uma resposta única a sua questão. O papel dos intelectuais de direita é defender e ilustrar a ordem estabelecida. O papel dos intelectuais de centro é dar eufemismos e conformidade à ordem. O papel dos intelectuais da esquerda é atacá-la radicalmente. E nós precisamos de mais intelectuais assim. 

Rádios AM devem migrar para faixa FM


Decreto autorizando mudança será assinado na quinta-feira; migração é opcional, mas, para governo, maior parte das emissoras fará a troca

02 de novembro de 2013 | 18h 35

Anna Carolina Papp, Andreza Matais e Leonêncio Nossa, de Estado de S. Paulo
SÃO PAULO e BRASÍLIA / O Dia do Radialista, comemorado no dia 7 de novembro, terá este ano um sabor especial. Nessa data, a presidente Dilma Rousseff vai receber donos de rádios no Palácio do Planalto para assinar o decreto que permite às emissoras AM migrar para a faixa FM, atendendo a uma demanda antiga do setor.
A mudança, que será opcional, tem por objetivo dar um novo fôlego às rádios AM, prejudicadas com o aumento de ruídos e muitas interferências em suas transmissões. Enquanto isso, as rádios FM, que desde os anos 80 sempre tiveram maior aceitação entre os públicos mais jovens, passaram a ganhar mais espaço. Mesmo sem o grande alcance das AM, as FM apresentam sinais mais limpos e também podem ser sintonizadas por dispositivos móveis.
"As emissoras de rádio AM vêm perdendo competitividade por causa da interferência no seu sinal. Essa é uma questão física: o meio de propagação desse tipo de onda é muito suscetível a ruídos, prédios, energia elétrica, barulho de carros", afirma Daniel Slaviero, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).
Para Hilton Alexandre, presidente da Associação de Emissoras de Rádio e TV do Estado do Rio de Janeiro (Aerj), "é uma questão de sobrevivência". "Há uma queda gradativa: os jovens não conhecem a AM nem a aceitam, porque a qualidade de áudio é muito ruim. E as pequenas emissoras estão sendo engolidas, porque não conseguem mais fazer audiência", afirma ele, que desde 2009 pleiteia a migração, juntamente com outros radiodifusores.
A mudança será possibilitada com a transferência de emissoras de TV do analógico para o digital. Os canais 5 e 6 VHF devem ficar vagos em 2015, quando a TV analógica for de fato desativada. Em cidades onde a faixa FM praticamente não comporta mais rádios, como em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, as emissoras AM serão alocadas nos canais de televisão recém desocupados, chamados de "faixa estendida". Onde o FM não estiver saturado, as rádios serão alocadas na própria faixa já existente.
Convertida para rádio, a frequência dos canais 5 e 6 da TV irá de 76 a 88 MHz, tornando-os "vizinhos" da atual faixa FM, que opera de 88 a 108 MHz (veja quadro). O novo espectro do FM obrigará a indústria a produzir aparelhos de rádio que consigam sintonizar a nova faixa. Por isso, diz o presidente da Abert, haverá um prazo de adaptação de cinco anos, em que o radiodifusor poderá realizar transmissão simultânea em AM e FM.
Neste primeiro momento, os canais desativados da AM não despertam interesse do governo ou do mercado. "Por enquanto, a faixa ficará sem uso, até desenvolvermos uma tecnologia para aproveitar esse espaço", diz o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Ele afirma que foram feitos testes para averiguar se a digitalização, que já ocorre no FM, seria uma solução para os percalços do AM. No entanto, afirma, os resultados não foram satisfatórios. Novos testes, porém, ainda serão realizados, diz.
Custos. A mudança para o FM é opcional, porém onerosa. Os radiodifusores terão de pagar por uma nova outorga, de FM, o que será custoso. Além disso, terão de adquirir equipamentos condizentes com a nova tecnologia. "Será necessário comprar uma nova antena e um novo transmissor, o que vai ficar por volta de R$ 70 mil a R$ 80 mil", diz Slaviero. A Abert estima, apenas com os aparelhos, um gasto de R$ 115 milhões para o setor.
Também podem entrar na conta gastos logísticos, uma vez que, enquanto os transmissores de AM precisam estar alocados em um lugar plano, os de FM costumam ficar em lugares altos, como no topo de prédios. Os gastos de energia e manutenção, contudo, são bem menores em rádios FM.
Segundo a Abert e o Ministério das Comunicações, as rádios AM que optarem pela migração ocuparão na faixa FM um espaço correlato, sem perder potência. "Ela vai ter o mesmo alcance que tinha com o AM", diz o ministro, se referindo ao raio de abrangência principal da rádio, conforme estabelecido pela outorga.
Porém, as rádios perderão a amplitude geral de sua cobertura, uma vez que a AM tem um alcance maior que a FM. Uma rádio que opera na capital paulista pode, por exemplo, "pegar" no litoral, ainda que com sinal de baixa qualidade. "Se a emissora cobria dez municípios, dificilmente vai continuar assim", diz Ronald Siqueira, engenheiro da Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão (SET).

O culpado é o mordomo


Em 1979, muito antes da polêmica das biografias, Roberto Carlos censurou o livro de seu secretário

02 de novembro de 2013 | 16h 10

Jotabê Medeiros - O Estado de S. Paulo
Iê-iê-iê. Em 1967, quando tentou carreira artística, o Rei deu fé: ‘Esse é o Nichollas, mora!’ - Reprodução
Reprodução
Iê-iê-iê. Em 1967, quando tentou carreira artística, o Rei deu fé: ‘Esse é o Nichollas, mora!’
“Se alguém sofreu na mão do Roberto Carlos, esse cara sou eu”, diz, com um jeito solene, o escritor e psicoterapeuta Roberto Pinheiro Goldkorn. Logo em seguida, cai numa gargalhada: “Desculpe, não resisti”.

O desabrido bom-humor de Goldkorn, de 73 anos, é daquele tipo de sarro que tiramos de nós mesmos somente muito tempo após termos passado por uma situação trágica, um grande susto. O espirituoso autor best-seller de 14 livros de psicoterapia carrega um passado doloroso: ele foi o editor do lendárioO Rei e Eu (Ediplan Editora), o primeiro livro que o cantor Roberto Carlos recolheu das livrarias, em 1979. Era um livro de memórias do ex-mordomo de Roberto, Nichollas Mariano (codinome de José Mariano da Silva Filho), que trabalhou 11 anos com o cantor.

Não é uma história colorida como as calças pantalonas da Jovem Guarda. Em 1979, após dois anos de batalha judicial entre Roberto Carlos e o editor, com a vitória do primeiro, o livro foi apreendido na gráfica antes mesmo de ser distribuído. “Num domingo de manhã, quatro ou cinco oficiais de Justiça, policiais e 11 advogados chegaram para levar os livros”, lembra Goldkorn.

Foi uma paulada. O livro era um investimento maciço do impulsivo e ambicioso editor, que tinha 29 anos à época e mandara imprimir 70 mil exemplares. “Perdemos tudo: carro, casa, editora, dinheiro”, lembra Goldkorn, que hoje vive em Campinas (SP). Há 34 anos, por insistir em lutar para garantir a circulação do livro, Goldkorn ficou liso e sem perspectiva. Pior: viu-se obrigado a se esconder da polícia.

Já o autor, Nichollas Mariano, foi condenado a 1 ano e meio de prisão no desfecho do caso. Não foi para a cadeia porque era réu primário. A última vez que se viram, autor e editor, foi há mais de dez anos. “Ele vivia num subúrbio do Rio, estava muito mal de saúde e na miséria. Nunca mais nos vimos desde então. Deve estar por lá ainda, em algum subúrbio distante”, conta Goldkorn.

Mariano teria hoje 68 anos, caso esteja em circulação. “Ele era ‘semianarfa’, fui o ghost writer do livro. Quando vi o calhamaço de anotações dele, quase incompreensíveis, tive de reescrever tudo. Censurei muito o livro, tive de pinçar várias coisas muito pesadas. Eu pensava: se eu fosse o Roberto Carlos, iria me rasgar quando lesse isso aqui”, afirma o ex-editor.

Roberto Carlos e Nichollas Mariano se conheceram na Rádio Carioca, no Rio, em 1960. Mariano era disc-jóquei da emissora e tinha se apaixonado pela música do artista. Tocava Roberto incessantemente. Um dia, Roberto foi à rádio e tornaram-se amigos. Mais tarde, por (conta-se) sugestão de Erasmo Carlos, o artista o levou para trabalhar consigo (e o transformou inclusive em seu procurador). Tentou também transformá-lo num ídolo da Jovem Guarda, mas não deu certo - Roberto Carlos escreveu a contracapa de Não Adianta Nada, um compacto simples que Mariano lançou, sem sucesso, em 1967.

“Esse é o Nichollas, mora! O jovem promete muito e sua voz transmite. Sua música vai ser a lenha! Ouçam com carinho e atenção esse primeiro compacto do meu amigo Nichollas. Vocês vão entrar na onda dele”, escreveu o ‘Rei’.

Mas, em 1971, a lenha virou carvão. Roberto teria sabido de comentários desairosos de Mariano a respeito de sua mulher na época, Nice, e o demitiu. Sem conseguir se readaptar ao mercado de trabalho, Mariano começou a escrever sobre sua experiência. O livro continha uma mensagem para o cantor: “Desculpe, amigo, se alguma coisa aqui não lhe agrade. Mas acho que fui, além de tudo, sincero e honesto. Para todos que o curtem sem o conhecer, para aqueles que veneram o ídolo, o semideus intocável, distante e material, projetado pela máquina, este livro só vai engrandecer a sua imagem, tornando-a mais humana, mais palpável, mais próxima”.

Nichollas Mariano (que, segundo reportagem antiga do Jornal da República, teria sido vendedor, técnico de futebol, gerente de boate e corretor) tinha sido amigo de Roberto desde os tempos das vacas magras, mas agora estava sozinho. Pôs seu manuscrito debaixo do braço e saiu procurando editora. Foi até a Editora Francisco Alves, mas o tipo de literatura que produziu não teria ali a menor chance. Ocorre que as anotações caíram na mão de Rosemary Alves, ex-mulher de Roberto Goldkorn, e ela lembrou que o ex-marido buscava algo estrepitoso para editar. Foi assim que o livro chegou às mãos da Ediplan.

Quando soube da intenção do ex-mordomo, Roberto Carlos enviou seus advogados para pedir uma cópia do livro. Queriam ler antes da publicação. Acontece que a Global Editora, alguns meses antes, tinha conseguido entrar, em plena ditadura, com uma ação contra a censura prévia. E ganhara. Foi uma ação histórica. “Quando o advogado ligou dizendo que queria ler o livro, eu até queria ceder. Mas meu advogado (Paulo Pires, na época) disse: ‘Nada disso, a censura acabou neste país. Isso aqui é a Constituição, e não há poder maior que isso. Não se pode mais impedir a publicação de nada’.”

Mas havia, como ainda há. “O livro é uma inverdade no seu todo”, disse Roberto Carlos à revista Veja, após entrar com ação na 26ª Vara Cível para pedir o embargo da venda e da distribuição do livro. Contra o mordomo, entrou com uma ação criminal na 9ª Vara Criminal de São Paulo. Venceria ambas.

Roberto Goldkorn (que foi preso três vezes na ditadura, torturado e integrou o MR-8) conta que tentou por todos os meios convencer Roberto Carlos de que a liberdade de expressão era mais importante, e no final das contas aquele era um livro elogioso. Procurou todos os artistas com quem Roberto tinha amizade na época. “Todos me viraram as costas. É impressionante o corporativismo dessa classe. A única que me recebeu foi a Wanderléa. Ela tentou interceder, mas voltou dizendo o seguinte: ‘Roberto odiou o livro’.”

Tentaram ainda ir atrás de uma outra amiga íntima de Roberto, a atriz Lady Francisco. Ela também não trouxe boas notícias do lado de lá. Ouviram de alguém que “Roberto disse que vocês vão ser esmagados como piolhos”. Os aventureiros da primeira biografia proibida descobririam que não era um bom negócio brigar com alguém da casa real brasileira.

O primeiro a sofrer retaliações foi Mariano. “Traidor, cuspindo no prato que comeu!”, vociferava alguém num dos dois telefonemas ameaçadores que ele recebeu. Outra pessoa dizia para ele cuidar bem dos dois filhos que tinha no Rio de Janeiro. A editora contratou um guarda-costas para acompanhá-lo.

Se os fãs de Roberto tinham razão em demonstrar tamanha ira soberana? Bom, Mariano realmente deu com a língua nos dentes além da conta. Contou sobre as aventuras sexuais do cantor, sobre seu gosto variado nesse quesito, e chegou a detalhar como, durante suas viagens, Roberto teria mandado reservar vários quartos em um mesmo hotel para, antes do espetáculo, fazer sessões de aquecimento com suas ocupantes. “Muitas vezes elas se ofereciam a mim primeiro, antes de chegar até ele”, afirmou Mariano.

Outras inconfidências do ex-mordomo (que o escritor Goldkorn acredita que era mais um roadie, e que a adoção dessa função veio como jogada de marketing, com currículo inventado e tudo) dão conta de que Roberto Carlos ganhava tanto dinheiro que costumava jogar sacos cheios de notas em cima de móveis. A Mariano era dada a incumbência de guardar. Uma vez, ele contou, achou um saco de dinheiro atrás do guarda-roupas - um apressado Roberto Carlos o teria atirado para o alto.

“Mas você nunca pegou nada para você?”, perguntou-lhe uma vez seu editor, ao que Mariano respondeu: “E para quê? Eu tinha tudo que precisava, nunca imaginava que um dia estaria passando necessidade”. Apesar de Roberto Carlos afirmar que só havia mentiras no livro, foi por meio dele que se soube, pela primeira vez, que o ‘Rei’ tivera um filho, Rafael, com uma fã, coisa que ele só admitiria em 1991.

Um rolo compressor judiciário atingiu a editora. O principal advogado de Roberto na causa era o ex-ministro da Justiça Saulo Ramos, que também venceu uma causa do cantor contra o jornal Notícias Populares nos anos 1990. Ainda assim, haveria resistência. Mesmo após a 26ª Vara Cível de São Paulo decidir pelo recolhimento do livro na gráfica. “O livro não traz escândalos e creio que no final vamos ser indenizados e agradecer a publicidade”, disse na ocasião o advogado da editora, Carlos Augusto Bambino Costa. Ele era o último de três advogados a levar adiante a causa - hoje, Bambino Costa vive em Macaé, no Rio.

Numa das audiências com o juiz encarregado do caso, o magistrado quis saber o que significava a palavra “transar” que tinha lido no livro. O advogado disse que derivava de “transacionar”, fazer uma troca com alguém. “Tá pensando que sou idiota? Não insulte minha inteligência”, retrucou o juiz.

“Tínhamos feito uma grande campanha na Rádio Globo para escolher o nome do livro, havia uma grande expectativa nos jornais. Lembro que tínhamos acumulado 50 kg de revistas e jornais que falavam do volume”, conta o escritor. “Quando se instaurou a confusão, o juiz decretou segredo de Justiça. Era uma piada: o juiz, antes mesmo de decidir, pediu um autógrafo de Roberto Carlos para a filha.”

O ex-editor decidiu optar pela via da desobediência civil. Imaginou que, como a decisão era local, poderia obter uma liminar para vender nas livrarias do Rio de Janeiro. Conseguiu. Conta que empenhou a aliança de ouro, emprestou de amigos, de bancos e mandou imprimir outros 15 mil exemplares. Enfiou boa parte deles numa kombi e foi para o Rio. “A gente estava morrendo de medo que a Polícia Rodoviária nos parasse. Era o equivalente a estar transportando drogas”, compara. Se fosse parado no Estado de São Paulo, iria em cana. Mas chegou ao Rio e distribuiu o material. O livro ficou três dias vendendo - o que explica os exemplares que ainda se acham à venda ainda hoje no Mercado Livre e outros sites, a preços que vão de R$ 250 a R$ 370.

Durou pouco a alegria. Após três dias, os advogados de Roberto Carlos pediram e a 4ª Vara Cível do Rio mandou recolher os livros. O editor não se conformava. Pegava 50 a 100 livros e um caixote de maçã, ia sozinho para a Avenida Rio Branco e vendia ali os exemplares. Vendeu até bastante, recorda-se, até que chegou uma ordem de prisão contra ele. Passou a se esconder até que seu advogado revogasse o pedido de prisão. Três delegacias o procuravam.

“Estávamos exauridos financeiramente. Não tínhamos mais forças, era uma luta contra uma montanha. Se você me perguntar como eu sobrevivi, direi: não me lembro”, diz o escritor. “Essa coisinha ré-ré-ré, humilde, do Roberto Carlos, não é sincera. Ele não tem pudor em exercer o poder”, diz Goldkorn.

Segundo contou o advogado Saulo Ramos no seu livro de memórias Código da Vida, os livros recolhidos foram incinerados no crematório da Prefeitura de São Paulo. “Era ainda a Constituição de 1967, uma legislação mais autoritária”, avalia o biógrafo Paulo Cesar Araújo. “Na época, a própria sociedade era mais tolerante com esse tipo de coisa. Soava mais natural proibir livros, por isso ele (Roberto Carlos) fez isso com tanta tranquilidade”.

O Rei e Eu virou lenda - Araújo conta que, para burlar a vigilância, chegou a ser reeditado com todos os nomes mudados, e lançado no mercado com o título de Eu Sou o Rei, assinado por Adelaide Carraro, a famosa autora de obras eróticas.

“Não se trata de censura, porque censura é mais universal, conceitual. Simplesmente o cara não quer que a vida dele seja exposta sem seu consentimento”, diz Goldkorn. “Por que essa história não é mais mencionada?”, pergunta o escritor, que responde. “Porque foi o primeiro caso, acontecido ainda na época da ditadura, quando as liberdades eram ainda muito atreladas à anuência dos militares”, considera.

Roberto Goldkorn experimenta hoje uma curiosa inversão de papéis. Ele ri com a comparação com a síndrome de Estocolmo. “Se você me pergunta de que lado eu fico nessa questão das biografias, não sei responder”, afirma. “Não tenho para mim uma definição. A liberdade de expressão não é um valor absoluto, ela também tem limites. Eu pergunto a você: se inventarem um aparelho capaz de projetar todos os seus pensamentos em praça pública, quanto tempo você duraria? Quanto tempo eu duraria como psicoterapeuta? Então, nós todos temos o direito de preservar algumas verdades.”