terça-feira, 15 de novembro de 2011


Florestas energéticas






15 de novembro de 2011 | 3h 06
XICO GRAZIANO, AGRÔNOMO, FOI SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO. E-MAIL:, XICOGRAZIANO@TERRA.COM.BR - O Estado de S.Paulo
O homem, dizem, dominou o fogo há 500 mil anos. Juntamente com o raio solar, a queima da lenha energizou a civilização até começar a era dos combustíveis fósseis. Agora, com a crise ambiental se agravando, ressurge a madeira como energia renovável. O passado no presente.
Na fascinante história da energia, desde quando moradia se abrigava nas cavernas, a chama da madeira ocupou papel central na proteção humana. Inventada a máquina a vapor, a fogueira do lenho impulsionava as caldeiras da "maria-fumaça". Até ser substituída pelo óleo combustível. Coisa de 120 anos.
Fogão a lenha virou grife na culinária metropolitana. Poucos sabem, porém, que cerca de 3 bilhões de pessoas ainda utilizam a acha para a cocção alimentar, prática condenada pela Organização Mundial da Saúde em razão da intoxicação causada pela fumaça nos ambientes domésticos. Fogão a lenha no mundo mata, lentamente, 2 milhões de pessoas por ano.
No Brasil, os arbustos retorcidos da Caatinga nordestina encontram-se no limite de exploração. Percebe-se no Semiárido o desenrolar da história primitiva, agravada pela pressão populacional. O que antes significava uma boa condição de vida agora mostra um perigo ecológico: surrupiar a madeira das florestas nativas agride a biodiversidade e agrava o efeito estufa no planeta. Fazer o quê?
Plantar florestas. Ninguém melhor que os japoneses para ensinar a lição do reflorestamento. Lá a silvicultura começou a ser implantada a partir de 1700, proposta na era Tokunawa para recompor as florestas quase dizimadas por completo. A China, tardiamente, segue caminho semelhante. A África, ao contrário, desertifica-se a olhos vistos.
Edmundo Navarro de Andrade, visionário agrônomo, deve ter-se inspirado nos xoguns japoneses quando, em 1904, trouxe mudas de eucaliptos australianos para o Brasil. Era seu intuito produzir dormentes para assentar os trilhos da então Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Naquela época, frondosos e centenários ipês, perobas e jequitibás da Mata Atlântica tombavam para auxiliar, impulsionado pelas ferrovias, o progresso do País.
Mais tarde, em 1922, chegaram as primeiras mudas de pinheiros norte-americanos, introduzidos pela Companhia Melhoramentos. Neste caso a extração da celulose se vislumbrava. Seja para a finalidade do uso madeireiro, seja destinadas à fabricação de papel, as florestas plantadas demoraram a se expandir no Brasil. Somente após os anos 1970, estimulados por generosos incentivos fiscais, os reflorestamentos se avolumaram.
Em Minas Gerais, especialmente, as florestas de eucalipto motivaram-se também para abastecer os fornos da siderurgia do aço. Limpo, ecologicamente correto, tal carvão vegetal se distingue de seu parente ancestral, o carvão sujo oriundo das matas nativas. Onde reside a diferença?
Na energia renovável. Toda a matéria vegetal - folhas, galhos, troncos - se gera por meio da fotossíntese. Nesse processo, havendo água e radiação solar, as plantas "respiram" gás carbônico (CO2) da atmosfera, liberando oxigênio. O carbono assim absorvido se transforma, e se armazena, na biomassa.
A cada ciclo, as árvores crescem absorvendo gás carbônico e, se sofrerem combustão, devolvem para a atmosfera o carbono acumulado na madeira. Por essa razão, considera-se zerado o balanço de carbono oriundo de florestas plantadas.
Diferente conta se faz quando ocorre desmatamento das florestas nativas. Nesse caso as emissões de carbono das queimadas se contabilizam no efeito estufa do planeta. Idêntico procedimento se verifica na queima de petróleo, pois o negro combustível nada mais é do que acúmulo de matéria orgânica decomposta, ocorrido há milhões de anos.
Recentemente, visto o drama das mudanças climáticas, surgiram as florestas energéticas. O processamento da madeira com alta tecnologia gera um novo produto no mercado, conhecido como pellet - pequenos aglomerados secos que duplicam o poder calorífico da lenha comum. O fogo antigo moderniza-se e espanta o seu passado antiecológico.
Quem lidera, por aqui, a implantação de florestas energéticas é a Suzano, tradicional empresa do setor papeleiro, que anunciou vultosos investimentos nos novos negócios, de olho na Europa. Lá, as geradoras de energia precisam atender às rígidas diretivas que obrigam a aumentar a renovabilidade da matriz energética. Pellet da madeira tupiniquim vai limpar o Primeiro Mundo.
Esse movimento da economia de baixo carbono ajuda a turbinar a silvicultura no Brasil, atividade que já ocupa 6,5 milhões de hectares. Para comparação, os cafezais atingem 2,3 milhões de hectares plantados. Carregado por má fama no início, pelo fato de derrubar mata nativa, Cerrado principalmente, para plantar bosques homogêneos, o reflorestamento valoriza-se na agenda da economia verde.
O eucalipto, particularmente, está feliz, rompendo a velha sina de estragar o solo. Estudos como os do professor Barrichelo (Esalq-USP) comprovam que, afora o seu rápido crescimento, nada diferencia a demanda de água do eucalipto da advinda por outras árvores frondosas. Manejo florestal moderno protege, não compromete, os recursos hídricos.
Ambientalistas e ruralistas, perdidos no cansativo e infrutífero debate sobre o Código Florestal, bem que poderiam prestar mais atenção às reais oportunidades do mundo sustentável. Um olhar mais isento permitiria sair da agenda negativa do desmatamento e encarar o futuro. Nele, longe do preservacionismo puro e do vândalo produtivismo, se encontram as florestas energéticas.
Um patamar superior da produção no campo.

terça-feira, 8 de novembro de 2011


O homem terminal (Carlos Heitor Cony)




De certa forma, somos todos terminais desde que nascemos, uns mais, outros menos

NA Semana passada, vi a reprise de um filme sobre o Dr. Morte. Devo de início elogiar a atuação de Al Pacino no papel principal, uma das melhores que já vi no cinema de todos os tempos.
Confesso que não me interessei pelo caso na devida ocasião, não acompanhei suas proezas nem seus julgamentos e só assisti ao filme na TV por falta de opções. Nem sequer guardei o nome do personagem, nome complicado, parece que de origem armênia. Nem mesmo guardei o nome do filme.
Mas fiquei impressionado com algumas cenas, sobretudo aquela em que, numa de suas prisões, ele gritava que a sociedade estava na Idade Média e invocava, entre outros, o nome de Galileu.
O Dr. Morte tinha uma posição contrária à eutanásia, considerando-a um homicídio. O doente terminal não era ou não podia ser consultado, a decisão era tomada pela família ou pelos médicos que afastavam os equipamentos ou deixavam de aplicá-los, interrompendo a assistência médica considerada inútil e cara.
No caso do Dr. Morte tratava-se na realidade de um suicídio assistido, o doente terminal, esgotados todos os recursos da medicina e não suportando as dores, autorizava a aplicação de uma injeção letal.
Ele tinha uma fórmula e um processo para abreviar o sofrimento insuportável do paciente.
Em alguns países, creio que na Suíça (posso estar enganado), o suicídio assistido não é considerado um crime. Evidente que é um assunto polêmico, condenado pela totalidade dos médicos cuja missão é salvar vidas, e não apressar a morte consentida ou mesmo implorada pelos doentes terminais.
E a sociedade, em seu atual estágio, também recusa a prática -daí as várias condenações que o Dr. Morte sofreu, sendo que na última, a muitos anos de cadeia, ele veio a morrer sem cumprir a pena integralmente.
Como disse, é um tema mais do que polêmico. Um doente terminal, esgotados todos os recursos da ciência, mas lúcido o bastante para decidir sobre si mesmo, teria o direito de pedir a morte uma vez que está sem condições de suicidar-se, atirando-se da janela ou fazendo uso de uma arma?
O assunto é macabro, mas recorrente. De certa forma, somos todos terminais desde que nascemos, uns mais, outros menos. De minha parte, habituei-me a me considerar um sobrevivente, mais tarde um homem em estágio terminal. 
Bem verdade que nunca pensei em suicídio, assistido ou não, mas costumo responder aos que me perguntam como estou revelando que "não passo desta noite" -uma frase que repito para mim mesmo todos os dias, o que me dá direito a aproveitar da melhor forma o dia seguinte- e faço isso há uns 20 anos e espero continuar fazendo enquanto puder.
Sei que a expectativa de vida vem aumentando, mas volta e meia, como no caso dos terremotos, desabamentos, desastres de carro ou avião, balas perdidas e homicídios em geral, de nada valem as perspectivas modernas que nos garantem uma vida mais longa.
De qualquer forma, a medicina e a tecnologia conjugadas não apenas aumentam as condições de vida como se esforçam para dar dignidade ao ato de morrer.
Sendo por natureza e definição um mortal, embora algumas pessoas me considerem imortal porque pertenço a uma academia cujo lema é "ad immortalitatem", tenho sérios motivos para me considerar um homem que termina todos os dias e instantes.
Quem acorda por mim no dia seguinte é um outro, apesar de herdar meus problemas, meus compromissos com a Receita Federal, amigos e desafetos, a batelada de exames e remédios e as chateações em geral que fazem parte da condição humana.
Pedindo perdão pelo assunto e pelo tom sinistro desta crônica, sabendo de antemão que receberei e-mails indignados de protesto e rejeição, busco a autoridade que não tenho em dois exemplos, um religioso, outro profano.
O primeiro é um conselho de Cristo anotado pelo evangelista Mateus: "Sufficit diei malitia sua" ("A cada dia bastam as suas atribulações"). O outro exemplo é o de Horácio, meu poeta preferido: "Aproveita o dia de hoje e nada espere do dia seguinte". Em latim, para dar mais solenidade: "Carpe diem quam minimum credula postero".

domingo, 6 de novembro de 2011


O manual da boa vida



Alias, 6 de outubro de 2011

A rica Noruega cultua a igualdade e o bem-estar coletivo sob um Estado-babá que a todos provê

05 de novembro de 2011 | 15h 14
Jesús Rodrigues, do El País
Simples em sua complexidade, como sempre acontece na arquitetura nórdica; erguida sobre o mar; imersa em um parque imaculado pavimentado de pedras brancas e semeado de violetas no qual, quando surge um raio de sol distraído, brota uma maré de bebês e aposentados em trajes esportivos. Com nove séculos de história, a catedral luterana de Stavanger, na costa sudoeste da Noruega, é a mais antiga do país. Seu interior mudo, pulcro, sombrio, sem imagens, no qual as tábuas do piso rangem sob os passos dos fiéis, é o melhor reflexo da frugal maneira escandinava de interpretar a vida, em que o luxo e o alarido são um pecado cívico e moral. O negro e o cinza são as cores deste país. Mimetizam os noruegueses com seu ambiente, os uniformizam e fazem com que seja difícil detectar a diferença de classes. “Não pense que você é especial”, rezava a filosofia igualitária do país.
Noruegueses conseguiram conciliar individualismo atávico com extremo oposto: sentimento comunitário - Jaime Bórquez/Divulgação
Jaime Bórquez/Divulgação
Noruegueses conseguiram conciliar individualismo atávico com extremo oposto: sentimento comunitário
Esse templo multicentenário de Stavanger encerra outra metáfora da alma da Noruega. Ele não tem rígidos bancos corridos de madeira como nas igrejas católicas, onde os devotos se acotovelam. Aqui cada fiel ocupa um amplo e idêntico assento individual almofadado com um pequeno espaço para descansar o livro de orações sem incomodar o vizinho. Cada poltrona é uma ilha. Descendo um pouco o olhar, percebe-se que todas são unidas por braçadeiras metálicas. Cada assento ocupa o próprio espaço, mas é impossível separá-lo de sua fileira.
Juntos, mas não em desordem. Os noruegueses são assim. Um povo que, além da riqueza proporcionada pelo mar, por seus bosques e por seu petróleo, baseou o sucesso econômico e social na reconciliação do seu individualismo - herança de um passado de pescadores e camponeses isolados em cabanas de madeira e em contato íntimo com uma natureza bela e dura - com o extremo oposto: um profundo sentido comunitário que aposta no bem de todos, na igualdade, na solidariedade e, principalmente, na confiança no Estado-babá, que se ocupa do bem-estar dos seus cidadãos mediante os programas sociais mais generosos e não discriminatórios do planeta. Ao mesmo tempo, esse Estado regula grande parte da vida dos noruegueses (sua educação, saúde, aposentadorias, relações trabalhistas e distribuição da riqueza) sem que aparentemente ninguém se incomode.
Na Noruega, o serviço militar é obrigatório e 95% das escolas são públicas. O IVA (Imposto sobre Valor Agregado) chega a 25%. O petróleo é propriedade do Estado. E os bons estudantes recebem generosos empréstimos do Estado para que possam frequentar as melhores universidades do mundo. O Estado controla até o consumo do álcool, mediante a rede de lojas Vinmonopolet, as únicas na Noruega onde é possível comprar bebidas de mais de 4,75 graus de teor alcoólico - a um preço até três vezes maior que na Espanha. Uma das atividades preferidas dos noruegueses é saquear as prateleiras das lojas isentas de impostos sobre bebidas e cigarros nos aeroportos quando saem do país.
Enquanto o sonho igualitário do Estado do bem-estar, cunhado depois da 2ª Guerra Mundial, que estruturou desde então a convivência na Europa, é questionado diante do avanço do neoliberalismo e da crise financeira, a Noruega, uma das inventoras desse sistema, luta por continuar nessa direção. Está em seu DNA. Ela faz o que quer, como vem fazendo há mil anos, quando seus antepassados vikings se lançavam ao mar nas embarcações drakkar.
Representa uma mescla equilibrada de mercado e planejamento, idealismo e realismo, neutralidade e ânsia por influência, ingenuidade e estratégia. A questão é dar para receber. “Sou generoso com meus impostos porque o Estado é generoso comigo.” Um contrato entre a comunidade e o indivíduo que dura até a morte. Quem tem mais, tem mais responsabilidade. E não é difícil saber quem é. A informação sobre a renda de cada cidadão está na internet.
A Noruega caminha discreta e sem sobressaltos por essa terceira via que a converteu em potência silenciosa, um Estado nem emergente nem emergido que ocupa há 30 anos a primeira posição no Índice de Desenvolvimento Humano. Seus níveis de desemprego são risíveis; sua renda per capita, a maior do planeta; seu crescimento, depois de três administrações titubeantes, se aproximará este ano de 3%; sua dívida soberana é a mais sólida do planeta; e o país tem por lei a igualdade de gênero tanto no setor público como no privado. Arnie Hole, diretora geral do Ministério da Infância, Igualdade e Inclusão Social, confirma que tem um orçamento de  5 bilhões (1 mil por habitante), “mais que a soma dos Ministérios da Pesca, Agricultura e Cultura juntos”. O Estado do bem-estar chega à arquitetura, que deve “optar por soluções ecológicas e energeticamente sustentáveis, ser de boa qualidade, promovida pelo conhecimento e a concorrência e internacionalmente visível”.
A Noruega não se parece com nada, nem com o restante dos países nórdicos, sob cujo jugo transcorreu parte da sua história. Os noruegueses arrastam certo complexo de inferioridade em relação aos vizinhos, aliviado nas últimas décadas pelo bálsamo dos petrodólares. Até os anos 70 ela era o primo pobre da Escandinávia. “O que um norueguês mais desejava era ter um Volvo com motorista sueco”, explica uma professora da capital. “Em parte, conseguimos isso; todos os garçons de Oslo são suecos, ganham mais que no seu país (não menos que 2 mil) e são mais simplórios do que nós.”
Os noruegueses não foram tão cosmopolitas como os dinamarqueses, nem tiveram a tradição industrial e militar dos suecos. Não tiveram colônias nem participaram de guerras. Em torno desses sinais de identidade, a Noruega criou o perfil de um país frio, confiável e eficiente. E graças a essa imagem conseguiu uma influência internacional superior a seu peso real. Tornou-se o país das doações mais generosas em matéria de cooperação internacional e um eficaz ator na solução de conflitos internacionais, como em 1993, com os Acordos de Oslo, entre Arafat e Rabin com Bill Clinton como testemunha. Ou, mais recentemente, com a ex-primeira-ministra Gro Harlem Brundtland, muito ativa no processo de paz do País Basco.
Quando eclodiam os totalitarismos na Europa, no início do século 20, ela aboliu a pena de morte e se tornou a sede do Prêmio Nobel da Paz. O rei do novo Estado, Haakon VII, exigiu antes de subir ao trono um referendo para que o povo dissesse se o queria. Ganhou. Quando teve de nomear, nos anos 20, um primeiro-ministro de esquerda, proferiu uma frase de que seu povo lembra com orgulho: “Sou rei também dos comunistas”.
Logo o mar se tornou o motor industrial do país graças à pesca e ao transporte marítimo. Os noruegueses se especializaram em navios capazes de enfrentar os maiores desafios e na construção de obras públicas. Viajar por sua geografia irregular implica atravessar dezenas de pontes estilizadas, túneis intermináveis e balsas sólidas como navios quebra-gelo. O domínio da engenharia naval foi essencial quando o país descobriu o petróleo como embrião para desenvolver uma indústria nacional e não se atirar nos braços das multinacionais. Hoje a Noruega exporta, além de petróleo bruto (é o terceiro maior exportador do planeta), conhecimento e inovação.
Seu caminho foi diferente do itinerário dos outros países nórdicos. Para começar, os noruegueses optaram em dois plebiscitos, nos anos 70 e 90, por dar as costas à União Europeia (à qual pertencem Finlândia, Suécia e Dinamarca). Dizem que foi para salvaguardar suas cotas de pesca e agricultura, mas o que realmente queriam era defender uma soberania nacional que não haviam conseguido até se livrarem, em 1905, da Suécia em uma vitória obtida sem disparar sequer um tiro.
Nessa linha de reafirmação, defenderam com ardor seu modelo de sociedade diante das instituições europeias. Estão no bloco, mas não estão. Não são membros da União Europeia, mas fazem parte do Espaço Econômico Europeu. Voltaram a valorizar sua visão peculiar de sociedade e esse caminho os manteve a salvo da recessão e dos estertores do Estado do bem-estar.
A Noruega representa um modelo irrepetível de sociedade nascido do isolamento de uma população escassa (5 milhões em um território que corresponde à metade da Espanha) e homogênea em termos de raça, cultura, religião e modo de vida (nos anos 70, 94% dos cidadãos eram de origem norueguesa, e 86%, de religião protestante), que se tornara coesa graças a um passado de opressão por parte dos vizinhos e com uma grande riqueza em recursos naturais.
A ética do trabalho tem muito a ver com o milagre norueguês. Seus habitantes são profundamente competitivos, trabalham desde jovens e logo deixam o lar paterno. Em troca, sabem que poderão contar com a proteção do Estado se as coisas derem errado. Todos devem ganhar muito dinheiro, pagar muitos impostos e gastar muito. O pleno emprego é a espinha dorsal do modelo. O cidadão trabalha e paga impostos para custear a educação dos jovens e as aposentadorias dos velhos, assim como os velhos financiaram com seus impostos a educação dos filhos e estes pagarão suas aposentadorias no futuro. Os noruegueses se consideram cidadãos iguais que caminham na mesma direção, sem distinção entre homens e mulheres. É o que confirma a ministra de Igualdade, Arnie Hole: “A igualdade tem um componente moral, mas o motivo principal é econômico. Uma economia moderna e competitiva precisa das melhores cabeças e mãos sem olhar de que raça são ou de que sexo são. Nenhuma mulher na Noruega deve ser forçada a escolher entre família e carreira. Criamos 10 mil creches. As mulheres podem tirar um ano de licença maternidade com 80% do salário (ou dez meses com 100%), e os homens, 12 semanas. Conseguimos que 80% delas trabalhem e, ao mesmos tempo, que 82% tenham filhos pequenos. Este é o nosso futuro”.
A partir desses elementos, os noruegueses construíram uma sociedade na qual a distância que separa os ricos dos pobres é pequena. Estão convencidos de que a desigualdade é corrosiva. Alguns dizem que a Noruega é o último país socialista da Europa. A sede do Partido Trabalhista, inspirador do modelo norueguês desde os anos 30, parece confirmar isso, com seu estilo muito próximo do realismo soviético. Percorrendo os corredores art nouveau do edifício, as janelas estão quebradas e cobertas por placas de compensado. As portas estão fora dos batentes. A do gabinete do ministro tem uma rachadura no centro. Todo o bairro se encontra cercado e em obras. Os destroços são resultado da bomba colocada pelo ultadireitista Anders Breivik no dia 22 de julho. Em consequência da explosão morreram oito pessoas; em seguida, Breivik acabou a tiros com a vida de 69 jovens simpatizantes do Partido Trabalhista na ilha de Utoya. Foi a maior comoção no país desde a 2ª Guerra. Mas os noruegueses estão decididos a não mudar seu estilo de vida. No bairro, a presença policial é mínima e é possível o acesso a alguns edifícios governamentais sem passar por um bloqueio de segurança. O ministro das Finanças exorciza a tragédia afirmando que o cimento da sociedade norueguesa continua sendo o diálogo. Quando perguntamos se usa escolta, responde piscando um olho: “Às vezes sim, às vezes não...”
A Noruega ficou muito rica. E começou a atrair imigrantes. Quando se iniciou o boom do petróleo havia 1,3% de imigrantes; em 2000, cerca de 5,5%; em 2009, 8,8%. Neste ano, cerca de 13%. Primeiro foram os nórdicos, depois os latino-americanos, mais tarde os balcânicos e centro-europeus. Os últimos foram os paquistaneses, iraquianos, somalis e afegãos, com seus véus, albornozes, mesquitas e tradições. Na Noruega vivem 200 mil pessoas de religião muçulmana. Um choque de diversidade que ninguém esperava neste país uniforme.
A chegada do tsunami multicultural teve uma consequência imediata em amplos setores da classe trabalhadora norueguesa que tradicionalmente votavam na esquerda: eles perderam a confiança no Estado. Centenas de milhares de noruegueses acharam que esses imigrantes que se abrigavam sob o guarda-chuva social norueguês, que eram hospedados em habitações públicas, recebiam 1.200 ao mês para assistir às aulas de introdução à língua e cultura norueguesa e outros 700 para cada filho, que se beneficiavam de suas creches, educação e sistema de saúde, estavam se aproveitando de sua generosidade. O resultado foi o rápido crescimento, a partir de 1997, do Partido do Progresso, agremiação na qual se mesclam ultraliberalismo, nacionalismo e xenofobia, que começou a falar em seus comícios de “uma islamização silenciosa da Noruega” à qual “era preciso pôr um freio”.
Nas eleições de 2009, ele obteria 23% dos votos, tornando-se a segunda formação política depois dos trabalhistas. Anders Breivik militou nesse partido. Depois do atentado, o Partido do Progresso perderia 10 pontos nas eleições locais de setembro. Em todo caso, formadores de opinião noruegueses tentam afastar a inquietação ressaltando com desdém o vigor do sistema norueguês e enfatizando que o Partido do Progresso “é democrático, e se alimenta pretensões a governar, deve se manter dentro do sistema e assumir suas responsabilidades”.
É possível detectar um alívio generalizado pelo fato de o assassino de 22 de julho ser um norueguês e não um imigrante muçulmano. Um professor de Oslo confirma: “Dentro da tragédia, agradecemos ao destino que o terrorista fosse alguém daqui e não um paquistanês da Al-Qaeda. Se isso tivesse ocorrido, o sistema norueguês, baseado na confiança, teria ido pelos ares. Ao pensar que foi um norueguês sozinho, louco, isolado, que isso não se repetirá, e portanto, não colocaremos um policial em cada esquina, estamos protegendo nosso modelo com vistas ao futuro. Mas, queiramos ou não, a imigração é a batata quente do modelo norueguês. E teremos de solucionar o problema”.