Slavoj Zizek
[RESUMO] Filósofo esloveno analisa o filme de Alfonso Cuarón argumentando que a suposta bondade e dedicação da protagonista, uma empregada doméstica de família de classe média alta mexicana, é uma armadilha que a obra, na verdade, busca problematizar. O texto contém spoilers de toda a trama.
Quando assisti a "Roma" pela primeira vez, fiquei com um gosto amargo na boca. Sim, a grande maioria dos críticos acerta ao enaltecer o filme como um clássico instantâneo. Mas não consigo me desvencilhar da ideia de que essa percepção predominante esteja apoiada em um terrível, quase obsceno equívoco de interpretação —e que o filme esteja sendo aplaudido por todos os motivos errados.
Há uma certa leitura de "Roma" que considera o filme uma grande homenagem à personagem de Cleo, empregada doméstica que trabalha na casa de uma família de classe média no bairro Colonia Roma, na Cidade do México. Lá residem a senhora Sofia, seu marido Antonio e os quatro filhos do casal, além da mãe de Sofia, Teresa, e outra empregada, Adela.
No plano histórico, o filme se passa nos anos 1970, numa época de intensos protestos estudantis e conflitos sociais. Assim como em "E Sua Mãe Também" (2001), Alfonso Cuarón mantém uma distância marcada entre os dois níveis: por um lado, os problemas da intimidade familiar (Antonio abandonando sua família por causa de uma amante mais jovem; Cleo engravidando de um paquera que imediatamente some) e, por outro, o contexto sociopolítico.
E é o foco no drama familiar que faz com que a presença opressiva das lutas sociais fique ainda mais palpável na condição de pano de fundo difuso, mas onipresente.
Como diria o crítico literário Fredric Jameson, a história enquanto real não pode ser retratada diretamente, mas apenas como pano de fundo elusivo que imprime sua marca sobre os acontecimentos representados.
Afinal, é possível dizer que "Roma" de fato apenas celebra a bondade simples e a dedicação abnegada de Cleo à família? É mesmo possível reduzi-la ao grande objeto de amor de uma família mimada de classe média alta, que a aceita (quase) como parte do núcleo familiar, apenas para assim melhor explorá-la física e emocionalmente?
A textura do filme é repleta de sinais sutis que indicam que a figura bondosa de Cleo é, ela mesma, uma armadilha, sinais de que o filme implicitamente problematiza essa característica, apresentando-a como resultado da própria cegueira ideológica da personagem.
Não tenho em mente aqui só os contrastes mais evidentes no tratamento dado a Cleo pelos membros da família: por exemplo, imediatamente após conversarem com ela “de igual para igual” e lhe fazerem demonstrações carinhosas de amor e afeto, a família passa a solicitar que ela lhe sirva algo ou realize alguma tarefa doméstica.
O que me chamou a atenção foi, por exemplo, a demonstração indiferente de brutalidade por parte de Sofia na sua tentativa de, bêbada, estacionar o Ford Galaxie da família na estreita vaga da garagem da casa; o modo como o carro repetidamente raspa na parede, danificando a lataria e deixando cair pedaços de azulejo por toda parte.
Ainda que o desalento subjetivo de Sofia (o abandono pelo marido) justifique esse seu comportamento mais bruto, a lição aqui é que é apenas por conta de sua posição dominante que ela pode se dar ao luxo de agir dessa maneira —os empregados cuidarão do estrago mais tarde—, enquanto Cleo, que se encontra em situação muito mais difícil, simplesmente não pode se dar ao luxo de tais momentos “autênticos” de descarrego —mesmo quando seu mundo inteiro está ruindo, o trabalho tem de continuar...
A verdadeira atribulação de Cleo aparece pela primeira vez em toda sua crueza na cena do hospital: depois que seu bebê nasce morto e as múltiplas tentativas de ressuscitá-lo fracassam, os médicos entregam o corpo a Cleo por alguns instantes antes de levá-lo embora.
Muitos críticos que viram nessa cena o momento mais traumático do filme passaram batido por sua ambiguidade: como a obra confirma mais adiante (mas já se pode suspeitar de antemão), o que verdadeiramente a traumatiza é que ela não queria um filho, de forma que um corpo morto em suas mãos é, nesse sentido, uma boa notícia.
Na última parte do filme, Sofia leva os filhos para uma temporada de férias nas praias de Tuxpan e convida Cleo para se juntar a eles, sob o pretexto de que a viagem a ajudaria a superar sua perda (na realidade, a intenção é poder aproveitar seus serviços lá, mesmo que ela tenha acabado de sofrer um doloroso processo de parir um bebê natimorto).
No jantar, Sofia revela às crianças que ela e o pai estão se separando e que o verdadeiro motivo da viagem era deixar a casa por um tempo para que ele pudesse recolher todos seus pertences de lá. No dia seguinte, na praia, as duas crianças do meio são quase engolidas pela forte correnteza, e Cleo, apesar de não saber nadar, se lança ao mar para salvá-las.
Enquanto Sofia e as crianças agradecem e manifestam seu amor a Cleo por toda sua dedicação, ela finalmente desabafa sobre sua culpa intensa por não ter desejado aquele seu bebê.
De volta à casa em Colonia Roma, os meninos reparam que as estantes da sala já não se encontram mais lá e que vários quartos foram reorganizados. Cleo prepara um cesto de lavanderia e comenta com Adela que tem muito a lhe contar. A câmera acompanha Cleo subindo a escada de serviço e vemos um avião sobrevoar a casa.
Depois que Cleo resgata as duas crianças, todos eles se espremem em um forte abraço na beira da praia —um momento inequívoco de falsa solidariedade, que simplesmente confirma que Cleo está presa na armadilha que a escraviza... Estou viajando aqui? Seria disparatada demais essa minha leitura?
Penso que, no nível formal do filme, Cuarón fornece uma dica sutil nessa direção. Toda a cena climática em que Cleo resgata as crianças é filmada em um único plano-sequência, com a câmera se deslocando na transversal, sempre centrada na empregada doméstica.
Ao assistir a essa cena, é difícil evitar uma sensação de estranho descompasso entre forma e conteúdo: ao passo que o conteúdo é o gesto emocionalmente carregado de Cleo, que, pouco depois do traumático parto, arrisca sua vida pelas duas crianças, a forma ignora por completo esse contexto dramático.
Não se intercalam planos das crianças em apuros com planos de Cleo se lançando ao mar, por exemplo, tampouco há uma tensão dramática entre o perigo no qual as crianças se encontram e seu esforço de resgatá-las, ou um plano subjetivo nos mostrando o que ela está vendo. Essa estranha inércia da câmera, sua recusa de participar do drama, exprime de maneira palpável o descolamento de Cleo em relação ao comovente papel de fiel serviçal, sempre disposta a se sacrificar.
Há ainda uma segunda indicação de emancipação presente no último plano do filme, quando Cleo diz a Adela que tem muito a lhe contar. Talvez isso signifique que Cleo esteja finalmente se preparando para sair da armadilha de sua “bondade”, tornando-se consciente de que sua devoção altruísta a essa família é a própria forma de sua servidão.
Em outras palavras, a retirada completa de Cleo dos assuntos políticos, sua dedicação abnegada ao serviço, é a forma mesma de sua identidade ideológica, é a maneira pela qual ela “vive” a ideologia.
Quem sabe, falar sobre sua atribulação a Adela seja o início da “consciência de classe” de Cleo, o primeiro passo que irá levá-la a se juntar aos manifestantes nas ruas da Cidade do México. Uma nova figura de Cleo assim surgirá, muito mais fria e implacável —a figura de uma Cleo liberta de suas amarras ideológicas.
Mas talvez não leve a tanto. É muito difícil se livrar dos grilhões dentro dos quais nós não apenas nos sentimos bem como também sentimos que estamos fazendo algo bom. Como bem disse T.S. Eliot, em sua peça "Murder in the Cathedral" (publicada no Brasil como "Crime na Catedral"), o maior pecado é fazer a coisa certa pelo motivo errado.
Slavoj Zizek é filósofo e autor de "Lacrimae Rerum: Ensaios sobre Cinema Moderno" (Boitempo, 2018).
Tradução de Artur Renzo.
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