segunda-feira, 2 de junho de 2025

Após morte de menina, desafio do desodorante ganha variações no TikTok e no Kwai, FSP

 Isabella Menon

Berlim

A morte de Sarah Raíssa Pereira de Castro, 8, após supostamente participar do "desafio do desodorante" que viu nas redes sociais, em meados de abril, acendeu um alerta sobre o consumo de telas entre crianças e adolescentes. Apesar da tragédia, vídeos promovendo esse tipo de prática continuam sendo publicados e compartilhados.

Um relatório coordenado pela psicóloga e pesquisadora Fernanda Rasi Madi, especializada em conteúdos violentos nas redes, identificou a presença recorrente desses desafios em plataformas de vídeos curtos, como o TikTok e o Kwai.

A imagem mostra uma interface de vídeo ao vivo, onde à esquerda há uma mão tocando uma superfície clara, possivelmente uma parede ou um tecido. À direita, há uma seção de comentários com texto visível, incluindo uma pergunta sobre acessibilidade. O fundo é escuro, e a interface é típica de plataformas de streaming ou redes sociais.
Vídeo se espalham pelas redes sociais com desafio do desodorante, angariam milhões de visualizações e usuários comentam com incentivos - Reprodução

As empresas, que normalmente se manifestam por meio de notas sobre conteúdos perigosos, deram respostas vagas ou simplesmente ignoraram os questionamentos enviados pela Folha.

Sem disponibilizar porta-voz, o TikTok alegou que suas diretrizes proíbem a promoção de atividades ou desafios perigosos. A Folha enviou à plataforma quase 30 links com vídeos que incentivam ou ensinam esses desafios. Em resposta, o TikTok afirmou que os conteúdos foram "minuciosamente revisados" e que os que violam as regras foram removidos —mas não especificou quantos.

Questionada novamente, a empresa respondeu apenas que, entre outubro e dezembro de 2024, mais de 153 milhões de vídeos foram removidos globalmente, sendo que 20,8% violavam diretrizes relacionadas à saúde mental e comportamental — categoria que inclui os desafios perigosos.

"Mantemos esforços contínuos para moderar e remover prontamente esse tipo de conteúdo", diz a nota enviada pela empresa.

O Kwai, também citado no relatório por veicular vídeos com esse tipo de desafio, não respondeu às perguntas da reportagem, enviadas na terça-feira (13).

O estudo conduzido por Fernanda Rasi Madi mostra que, além de ainda circularem nas redes, os desafios são muitas vezes adaptados em novas versões, como queimar a pele com o aerossol ou pressionar o spray até que exploda.

Também mostra que as principais hashtags utilizadas pelos usuários para divulgação do vídeo usam combinações do nome do desafio, mas também utilizam combinações de palavras ligadas a temas de saúde mental, o que demonstra, segundo a pesquisadora, que o objetivo também é atingir adolescentes psicologicamente vulneráveis.

Nem todos os vídeos coletados por Madi incentivam diretamente os internautas a fazerem os desafios, há aqueles que se parecem com alertas a este tipo de conteúdo, porém servem como uma espécie de tutorial de como colocá-lo em prática.

A coleta de dados foi feita entre os dias 15 de abril —poucos dias após a morte de Sarah— e 7 de maio. Nesse período, a pesquisadora reuniu mais de 30 conteúdos relacionados a esses desafios, que variavam de menos de 100 a mais de 84 mil curtidas, além de milhões de visualizações.

Segundo Madi, jogos e redes sociais têm sido portas de entrada para jovens em ambientes de radicalização, nos quais se promove a dessensibilização a conteúdos de extrema violência —como automutilação, tortura de animais, pornografia infantil e até assassinatos.

Ela argumenta que os desafios fazem parte de uma etapa inicial desse processo de dessensibilização, alimentado por grupos de extrema-direita e de ódio, que se valem da lógica da gamificação para atrair adolescentes. "Eles criam missões em troca de recompensas como fama e validação social", diz.

A pesquisadora alerta que, uma vez engajados nesses desafios, os jovens se tornam mais vulneráveis a integrar comunidades fechadas e radicais. "O conteúdo tende a se tornar cada vez mais extremo. As crianças testam seus limites, incentivadas por discursos de coragem e força", afirma.

A imagem é uma nota de pesar em fundo preto, com uma foto em preto e branco de uma menina sorridente. O texto inclui o nome 'Sarah Raissa Pereira de Castro' e menciona que Deus convidou a menina para 'bater asas e voar para o Céu'. As datas de nascimento e falecimento estão indicadas como 28/03/2016 e 12/04/2025, respectivamente. Também há informações sobre o velório e sepultamento, com horários e local.
Raíssa Pereira de Castro, que morreu após supostamente participar do chamado desafio do desodorante, que circula nas redes sociais - Reprodução/Instagram

No caso específico do desafio do desodorante, muito popular no TikTok, dois fatores se destacam como motivadores: a busca por fama e o chamado Fomo ("fear of missing out", o medo de ficar de fora, em inglês). "Ambos reforçam a necessidade de aceitação, o que, mesmo sem intenção, contribui para o avanço da radicalização", diz Madi.

Ela destaca ainda que a permanência desse tipo de conteúdo nas plataformas evidencia a fragilidade dos mecanismos de moderação dessas redes, especialmente diante de um público tão jovem e vulnerável.

Morte sem respostas

Um mês após o caso, a polícia ainda não trouxe atualizações sobre a morte de Sarah Raíssa. Questionadas na segunda-feira (12), as autoridades disseram que não há novidades. O último posicionamento foi dado em 14 de abril, quando o delegado Walber José de Sousa Lima informou que o celular da menina havia sido encaminhado para perícia.

À época, ele afirmou que tentava identificar quem criou e quem replicou o conteúdo. Disse ainda que os responsáveis, caso encontrados, podem ser enquadrados por homicídio duplamente qualificado, com pena de até 30 anos de prisão.

Até o momento, não foi esclarecido em qual plataforma a menina estava quando morreu. Vídeos semelhantes ao que teria motivado sua morte seguem sendo repostados.

Críticas de Lula e mal-estar diplomático

O TikTok também esteve no centro de uma polêmica nesta semana, após o vazamento de uma conversa entre o presidente Lula e a primeira-dama Janja. Durante um jantar oferecido pelo líder chinês Xi Jinping, Janja teria causado um "climão" ao criticar a atuação da plataforma no Brasil.

Na sequência, Lula reforçou publicamente a defesa da regulamentação das redes no país, incluindo o TikTok. O presidente classificou o vazamento da conversa como "inadmissível e desleal" e demonstrou insatisfação com seus ministros, por considerar o episódio um ataque à primeira-dama.

Segundo a coluna da Mônica Bergamo, o TikTok enviou uma carta ao governo brasileiro dizendo estar ciente do episódio e se mostrou disposto a dialogar sobre sua atuação no país.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

O pobre tem direito a um sonho impossível, Deborah Bizarria, FSP

 Recebi uma mensagem de alguém muito incomodado com uma fala minha no programa Lado B, do Brazil Journal, com Marcos Lisboa e Juliano Spyer, também colunistas da Folha. A pessoa dizia que eu estava oferecendo uma visão "romântica" da realidade ao sugerir que, na média, o evangélico pobre não vê o patrão como inimigo. Que, em vez disso, ele aspira a ocupar esse lugar. Para esse crítico, faltava ali uma leitura estrutural, um reconhecimento das violências cotidianas e das barreiras que impedem esse sonho de se concretizar.

Mulher em pé na frente de um portal de luz olha para a claridade enquanto flores neon num fundo escuro sobem ao topo, circundando o portal
Desejo de ocupar o lugar do patrão é um sonho com sentido econômico e moral - Catarina Pignato

Mas o ponto não era esse. Meu argumento não é que todos vão virar patrões, nem que a desigualdade brasileira pode ser superada pela mera força de vontade. O que defendi, e continuo acreditando, é que esse desejo de ocupar o lugar do patrão é, para muita gente, um gesto simbólico de dignidade. Ele expressa vontade de autonomia, reconhecimento e capacidade de gerar oportunidades para outros. É um sonho com sentido econômico e moral. E a política pública que quiser se conectar com essas pessoas precisa, no mínimo, considerar esse horizonte como legítimo.

Nesse sentido, como afirmou recentemente o economista Ricardo Paes de Barros, parece haver um consenso crescente entre decisores: o pobre quer trabalhar. Parece pouco, mas não é. Essa é uma mudança relevante no imaginário da política social. A tarefa agora é entender que esse desejo não é homogêneo. Ele se expressa por meio de aspirações diversas, que nem sempre cabem nas estruturas que o Estado costuma oferecer. Aceitar que pessoas em vulnerabilidade têm projetos, mesmo que desconectados das oportunidades locais, é o primeiro passo.

Assim, abordagens como o Graduation Approach têm atraído a atenção de formuladores de política ao redor do mundo. O modelo combina apoio financeiro inicial com acompanhamento, formação e conexão com mercados locais, gerando impactos duradouros em renda e autonomia. Mas o mais relevante é a premissa de que cada pessoa é protagonista do seu processo e que é preciso investir tempo e inteligência institucional para compreender seus contextos, capacidades e desejos.

No Brasil, alguns programas recentes apontam nessa direção. O Nossa Gente Paraná promove acompanhamento intersetorial e busca ligar proteção social à inserção produtiva. Na Paraíba, o Incluir Paraíba foca a agricultura familiar e o fomento a atividades sustentáveis. O programa federal Acredita no Primeiro Passo aposta em microcrédito, qualificação e conexão com vagas formais.

Mais recentemente, o SuperAção SP propõe planos personalizados para famílias em situação de pobreza, combinando renda, acesso a serviços e acompanhamento. São propostas distintas, mas que compartilham uma intuição comum: é preciso partir dos sonhos e das realidades de quem se quer incluir. Ainda é cedo para saber se esses programas têm alcançado seus objetivos. Avaliações externas serão essenciais para medir seus efeitos na vida dos beneficiários.

Quando falo que o "sonho de ser patrão" é legítimo, quero dizer que não se faz política ignorando as aspirações dos mais vulneráveis. Parte desses sonhos não vai se realizar, como muitos dos nossos também não se realizam. Mas esse é o ponto de partida. A tarefa da política é construir caminhos plausíveis, sem deslegitimar o que as pessoas querem.

Talvez o trabalho mais difícil da política social seja esse: escutar sem prometer o que não se pode cumprir e, ainda assim, não trair o que se ouviu. A dignidade não está apenas na realização dos sonhos, mas no direito de continuar tendo um.

Mario Sergio Conti - Marcel Ophuls e a lenda da França resistente, FSP

 

Ao fim das quatro horas e meia de "A Tristeza e a Piedade", Anthony Eden, o primeiro-ministro inglês, se recusa polidamente a julgar a atitude dos franceses frente aos nazistas: "Como não sofremos os horrores da ocupação, não temos esse direito". Compreende-se: não era de bom-tom notar que a França em peso havia colaborado com a barbárie.

A Pátria das Luzes adotou por livre vontade leis racistas mais depravadas que as da Alemanha. Campos de concentração brotaram na Terra dos Direitos Humanos por iniciativa de Paris, não de Berlim. A Filha da Igreja deportou 75 mil judeus para Auschwitz, e só 5% sobreviveram.

O que passou, passou: não dá para mudar a história. O que às vezes muda é a percepção do passado. Por isso "A Tristeza e a Piedade", de Marcel Ophuls, é um filme único: reconfigurou a imagem que um povo fazia de si, trincou o espelho no qual os franceses se admiravam.

Judeu, Ophuls nasceu na Alemanha, de onde sua família fugiu para Paris quando os nazistas avançaram. Escapou de novo anos depois, dessa vez dos colaboracionistas —os "colabôs"—, e se exilou em Hollywood.

Em 1968, filmou o documentário cujo subtítulo o resume: "Crônica de uma Cidade Francesa sob a Ocupação"; no caso, Clermont-Ferrand, burgo médio no meio do hexágono, súmula do modo de ver e viver da França profunda.

Entrevistou dezenas de testemunhas da Ocupação, de incontáveis profissões. A cabeleireira conta que amava Pétain. O oficial alemão reclama que os partisans não usavam uniforme. Gay, o espião inglês revela que namorou um soldado da Wehrmacht. O trabalhador torturado pela Gestapo sabe quem o delatou, mas não diz seu nome porque "seria se igualar a ele".

O campeão de ciclismo não se lembra de ter visto alemães em Clermont-Ferrand, e em seguida o farmacêutico recorda que "a cidade estava cheia de alemães de capacete". O aristocrata explica por que se alistou na SS: queria enfrentar comunistas no front soviético. O comerciante Marius Klein admite que publicou um anúncio classificado informando que era católico: "Não queria que pensassem que sou judeu".

Mendès-France, socialista, judeu e ex-primeiro-ministro, conta a fuga da cadeia. Depois de dias de ginástica —"eu não era esportivo"—, subiu no muro do presídio para pular na rua. Como um casal de namorados estava embaixo, esperou, esperou, esperou: "Ele tinha ideias precisas e ela não se decidia". Depois de muita conversa, a moça concordou. Mendès-France gostaria de os reencontrar, para comentar a "audácia" dele e a "indecisão" dela naquela noite tão especial para os três. Suspira: "O amor, a sorte, a fuga". É sublime.

Da esquerda para direita uma tesoura de ponta fina começa a cortar a bandeira da França.
Bruna Barros/Folhapress

Intercalados por trechos de cinejornais alemães e franceses, os depoimentos formam um mosaico. A trilha sonora desmente as imagens, e uma fala contradiz a anterior. Não há parti pris, mas fica cristalino que o grosso dos franceses não se importava. Fora da família, que se danem todos, pensavam. Por isso colaboraram com os boches.

Até então, vigia a versão de De Gaulle. Desde que se exilara em Londres, apregoava que Vichy era uma fraude e a França era ele. O Partido Comunista abonava a mentira porque apoiara o pacto Stálin-Hitler, e só veio se integrar à Resistência um ano depois da Ocupação.

O documentário afrontou a lenda. O diretor da estação de TV que financiara parte de "A Tristeza e a Piedade" contou a De Gaulle como era o filme. O comentário do general, nunca admitido nem desmentido, teria sido "A França não precisa de verdades, precisa de esperança".

Proibido na televisão, o filme passou no cinema em 1971, mas só no Saint-Séverin, no Quartier Latin. Todos os dias, 500 pessoas ficavam fora da sala, tal o afluxo. Depois de décadas de polêmicas e pesquisas —como as do historiador americano Robert Paxton no livro "Vichy France"—, o documentário se impôs.

Ele chegou à televisão só em 1981. Em 1995, o presidente Jacques Chirac admitiu o papel ignóbil da França nas torturas, deportações e assassinatos. Marcel Ophuls morreu no sábado passado (24). Tinha 97 anos.

Ele dizia não acreditar na culpa coletiva, e sim na responsabilidade individual. Ao dar a palavra a indivíduos –heróis, homicidas, cúmplices–, "A Tristeza e a Piedade" mudou o modo de encarar a Ocupação.

Não mudou a história porque, repita-se, o que passou, passou para sempre. Tampouco ele influi no presente: como reza o aforismo de Santayana, comprovado diariamente por Israel em Gaza, "aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo".