Canção de Boas-Vindas (Joseph Brodsky)
Eis sua família, mãe, pai e avós.
Bem-vindo a seu baú de ossos.
Por que perdeu a voz?
Eis aí seu corpo e aqui comida.
Umas ideias, até bebida.
Bem-vindo à vida.
Eis sua história nova em folha.
Vá em frente, não há escolha.
Bem-vindo à sua bolha.
Eis seu salário e a inadimplência.
O dinheiro é a quinta-essência.
Bem-vindo à sua ausência.
Eis a colmeia, o enxame, multidões.
Bem-vindo a tantas aglomerações.
Você é um em cinco bilhões.
Bem-vindo à tela onde você some.
A democracia deletou seu nome.
Bem-vindo à falta renome.
Bem-vindo ao casamento que cometeu.
E agora a seu divórcio no apogeu.
Bem-vindo, você se fodeu.
Eis você com a lâmina junto à jugular.
Bem-vindo, autoterrorista singular,
A seu Oriente Médio particular.
Apesar do polvo no sonho recorrente,
Eis você no espelho, sorridente.
É seu esse grito de demente?
Eis na TV o debate sobre a crise.
Seu candidato diz uma tolice.
Bem-vindo seja à chatice.
Eis seu cachorro passando apressado
Para fazer xixi na sala, que folgado.
Bem-vindo à sua cara de coitado.
Eis o sabiá que gorjeia de má vontade.
Sua lágrima cai no chá pela metade.
Bem-vindo à vida que se evade.
Eis o raio-X com o nódulo no pulmão.
Bem-vindo o remédio para pressão.
Eis o seu detonado coração.
Bem-vindo à cova que o veste bem,
No cemitério que lhe convém.
É o fim para você também.
Eis seu testamento e ninguém o lê.
No seu enterro, rezar quem há de?
Bem-vinda a vida sem você.
Eis as estrelas que não estão nem aí
Para você ter ou não estado aqui.
Meu velho, é isso aí.
Da sua vida não restou nem o bagaço.
Não se vê pegadas de seus passos.
Bem-vindo, digamos, ao espaço.
Bem-vinda sua morte bem-sucedida.
Se nem Saturno lamenta a sua ida,
Eis uma canção de despedida.
Poesia numa hora dessas? Não tem cabimento fazer massagem cardiorrespiratória numa arte morta e enterrada. Poesia é coisa de quem não tem o que fazer.
Veja-se o autor de "Canção de Boas-Vindas", Joseph Brodsky. Ele nasceu em má hora e num mau lugar, na falecida Leningrado da primavera de 1940. Hitler se aliara a Stálin, que, capitulador, inventou que os nazistas poupariam a União Soviética se ele lhes polisse os coturnos.
Brodsky era bebê quando a Wehrmacht iniciou o morticínio. A batalha durou 900 dias e matou um milhão. Seu pai, fotógrafo, foi convocado pela Marinha; sua mãe, tradutora, fugiu da cidade com o filho.
A família se reencontrou no fim da guerra e morou décadas num apartamento comunal, onde tinham direito a ocupar um quarto e meio. Além de pobres de marré, eram judeus; o antissemitismo, deletério.
Indisciplinado e refratário à tacanhez stalinista, Brodsky largou a escola aos 15 anos. Viajou pela União Soviética fazendo bicos em necrotérios, hospitais e oficinas. Trabalhava o suficiente para sobreviver. Aprendeu sozinho polonês e filosofia, inglês e mitologia.
Aprendeu também o fundamental: poesia. Entusiasmou-se com os metafísicos ingleses (Donne, Marvell), com os modernistas tardios (Auden, Frost) e, na URSS, com a inefável Anna Akhmátova. Como as autoridades achavam que vagabundo e poeta eram sinônimos, ferrou-se.
Foi processado por parasitismo porque teimava em se definir como poeta, atividade "antissocial". Os stalinistas, porém, tinham um ponto: supérflua, a poesia não presta para nada, é craca.
Condenado a cinco anos de trabalhos forçados, nem por isso vestiu a carapuça de dissidente. Era sardônico e desabusado, cáustico e gracioso —"Viva a vagina/ que povoou a China", diz um seu poema—, mas desdenhava a demagogia viscosa da versalhada engajada.
Tornou-se uma batata quente para o regime. Crescia no exterior a campanha para que fosse libertado e publicado. Embora censurada na União Soviética, sua poesia circulava cada vez mais na clandestinidade, sobretudo entre os jovens. Em 1972, foi banido.
Viveu em Nova York e Veneza, namorou muito, inclusive com Susan Sontag, e viajou pelo mundo. Esteve no Rio, e em Copacabana bateram-lhe a carteira. Em contrapartida, escreveu num ensaio que Mussolini deu a estátua do Cristo Redentor de presente aos cariocas.
Ganhou o Nobel em 1987. E fez algo mais prodigioso: passou a escrever em inglês e, como Conrad e Nabokov, virou um mestre no idioma. Tanto que "Canção de Boas-Vindas" foi escrita em inglês.
Nunca voltou a seu país nem viu seus pais. Morreu em 1996, com 55 anos. Está enterrado na ilha de San Michele, em Veneza, perto dos túmulos de Serguei Diaghilev, criador dos Ballets Russos, e de Ezra Pound, poeta.