O professor Rodrigo Monteferrante Ricupero, do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo), entrou na Justiça para questionar grande empresas, com sócios ou controladores estrangeiros, sobre o uso de terras rurais.
Em todos os casos, ele adotou o instrumento da ação popular, solicitando, entre outras medidas, a suspensão de negócios já firmados, alegando que não foram submetidos à análise do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) ou ao Congresso Nacional, como manda a lei.
São cinco ações. Algumas acionam não apenas a empresa, mas também seus parceiros. Quatro estão na Justiça Federal de São Paulo e têm como alvo principal BP Bunge Bioenergia, Bracell, BrasilAgro e Raízen. Outra está Rio Grande do Sul, contra a SLC Agrícola.
Na sexta-feira (9), o juiz federal Paulo Cezar Neves Junior deu andamento a ação da BP Bunge. Decidiu ser imprescindível ouvir instituições públicas antes de avaliar o pleito. Intimou o Incra e a União a se manifestarem em 15 dias e determinou que o caso chegue ao Ministério Publico Federal.
A ação pode praticamente paralisar a empresa. Pede a suspensão dos administradores estrangeiros ou indicados por eles; a suspensão de distribuição de dividendos ou juros sobre capital próprio a estrangeiros e pessoas que os representem; quer que a empresa seja proibida de adquirir novas propriedade rurais ou fazer arrendamentos sem prévia autorização e que nenhum estrangeiro possa movimentar os ativos da empresa.
A ação também pede a suspensão do acordo de acionistas entre BP e Bunge.
A joint venture entre as empresas foi criada em 2019, reunindo negócios de bioenergia e etanol de cana dos parceiros, chegando a um total de 11 usinas nas regiões Sudeste, Norte e Centro-Oeste. Agora, está no meio de uma transição importante. Em junho, a Bunge assinou o acordo que selou a venda de sua participação de 50% para a parceira.
Procurada pela Folha, a BP Bunge Bioenergia não comentou o processo até a publicação deste texto.
Em conversa com a reportagem, a advogada dos cinco processos, Noirma Murad, afirmou que seu cliente está preocupado com a soberania nacional por ser um estudioso do tema. Afirmou ter solicitado ao Incra e ao Congresso informações sobre as empresas, e disse que nenhuma delas submeteu suas terras rurais e negócios a análises dessas instituições. "Ninguém é contra estrangeiros, mas a lei precisa ser cumprida", afirmou. Segundo ela, existem outras na mesma condição.
A Folha também tentou contato com Ricupero, mas não obteve retorno.
O professor é conhecido no meio jurídico por ser afeito a processos. A base de dados de acompanhamento processual informa que seu nome está em 753 ações, na maioria das vezes como autor. Já processou dezenas de prefeituras e políticos. Na lista estão Fernando Henrique Cardoso, Delfim Netto e Aloizio Mercadante.
Essa nova leva de ações populares, no entanto, ocorre no contexto de forte cobrança sobre a aplicação da lei que rege a compra e o arredamento de terras rurais.
No caso mais estridente, a Paper Excellence, do indonésio Jackson Wijaya, é alvo de questionamentos no que se refere à compra da Eldorado, do grupo J&F, da família Batista, apesar de o negócio não ter sido concluído até hoje.
As cinco ações citam o caso da Eldorado. "As notícias da Eldorado vieram ao encontro dos estudos [de Ricupero], como caso concreto levado ao Judiciário", diz Murad.
Numa das frentes de discussão, a Paper responde justamente a uma ação popular sobre a questão, apresentada, em maio de 2023, pelo ex-prefeito de Chapecó (SC), Luciano José Bulligon, político do União Brasil.
A ação popular pode ser utilizada por qualquer cidadão quando entende que um bem público corre risco. No ambiente normal, é caro brigar na Justiça, mas a ação popular é gratuita e com prazo longo. Se o próprio autor desistir da ação, ela será acompanhada pelo Ministério Público.
No que se refere a Paper, o Incra tem sido enfático em cobrar autorização prévia para o negócio com a J&F. O órgão foi incitado a se manifestar após uma denúncia anônima de que a empresa não cumpriu a lei.
Segundo advogados ouvidos pela Folha, que preferiram não ter o nome citado, desde a mudança do entendimento legal sobre o tema, em 2010, que limitou a compra e o arrendamento de terras por empresas análogas a estrangeiras, o mercado buscou alternativas para lidar com terras rurais. Assim como existe planejamento tributário, foi desenvolvido planejamento fundiário.
As alternativas atendem a lei, e muitas delas evitam que o negócio precise ser levado ao Incra ou Congresso. Advogados que avaliaram as ações do professor afirmam que são bem escritas, mas carecem de alguns dados importantes, como matrículas dos imóveis questionados. Cada empresa terá de explicar como lida com imóveis rurais e detalhar a posição acionária do sócio brasileiro, caso os processos avancem. Não dá para prever desfechos.
No entanto, essa nova leva de ações, avaliam os especialistas, mostra que o caso da Paper pode ter repercussões sistêmicas, o que reforça a necessidade de se chegar a uma definição sobre a legislação. A insegurança jurídica está aumentando, reverberando negativamente sobre investidores de setores como agropecuária, papel e celulose e bioenergia, que estão entre os mais dinâmicos da economia.
O ideal, afirmam, é que o STF (Supremo Tribunal Federal) julgue a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 342 para evitar interpelações como se tem visto. Nela, a Sociedade Rural Brasileira questiona a interpretação de que empresa registrada no Brasil, com controle estrangeiro, deixe de ser brasileira —o cerne da discussão.
As demais empresas acionadas nas ações populares afirmam que cumprem a lei vigente.
A assessoria de imprensa da Bracell enviou nota afirmando que "suas operações estão em conformidade com as leis e legislações brasileiras". Disse ainda que atua há mais de 20 anos no país, já tendo investido mais de R$ 30 bilhões.
"Os investimentos são de longo prazo e geram emprego e renda para mais de 25 mil colaboradores no Brasil, dos quais 11 mil são empregados diretos", afirmou.
A BrasilAgro reforçou que é uma empresa brasileira de capital aberto, listada na B3, Bolsa de Valores de São Paulo, há mais de 15 anos.
"A companhia produz alimentos, fibras e contribui para a diversificação da matriz energética do país por meio da produção de biomassa da cana-de-açúcar. Reconhecida como uma das melhores empresas para se trabalhar, integra o Novo Mercado, segmento de listagem que reúne companhias com os mais elevados padrões de governança."
A Raízen informou que não recebeu nenhuma citação desta ação, e destacou que "a companhia atua em conformidade com a legislação vigente e que se manifestará oportunamente, se vier a receber demanda judicial em tal sentido."
A SLC também disse que não foi citada e, portanto, ainda não tem conhecimento do conteúdo da ação. "Assim que a empresa tomar ciência do teor do processo, serão utilizados os meios adequados para responder aos questionamentos e promover os esclarecimentos dos fatos", destacou em nota.