quinta-feira, 27 de junho de 2024

Laira Vieira: O despertar do passado, IstoÉ

 EDITORA3

Numa mistura perturbadora de comédia e sátira, o filme Ele Está de Volta joga luz sobre os aspectos mais sombrios da sociedade contemporânea ao trazer Adolf Hitler de volta à vida na Alemanha atual. Dirigido por David Wnendt (Zonas Úmidas, Sun and Concrete) e baseado no romance homônimo de Timur Vermes, a obra mergulha o espectador numa montanha-russa de emoções, que vão desde o desconforto, passando pelas risadas, até reflexões profundas sobre a natureza humana e a ressurgência do extremismo.

A trama começa com a aparição de Hitler (Oliver Masucci) numa rua movimentada de Berlim, onde, antigamente, ficava seu bunker. O perplexo Führer – sem memórias pós 1945 – é inicialmente confundido com um imitador, por um cinegrafista desempregado; mas logo se torna uma sensação viral quando uma produtora de televisão decide explorar a situação – contratando Hitler para um programa de humor, onde ele desfere seus discursos inflamados e opiniões ultrajantes sem que ninguém perceba a gravidade do que realmente representam. Pelo contrário, todos acham hilário.

À medida que sua popularidade cresce, ele usa sua retórica ardilosa para conquistar seguidores e reavivar o nacionalismo alemão. Enquanto isso, a película examina de forma incisiva temas como o ressurgimento do extremismo de direita, a manipulação da mídia, a alienação social e a banalização do mal — e vale ressaltar que possui gravações com pessoas reais. A manipulação da verdade e a habilidade de figuras carismáticas em seduzir as massas também são temas que ressoam profundamente, destacando como a comunicação é uma arma poderosa — e usada com habilidade por extremistas.

O filme nos faz refletir sobre a facilidade com que podemos ser seduzidos por discursos de ódio e intolerância. Como disse o filósofo britânico Bertrand Russell: “O problema com o mundo é que os tolos e fanáticos estão sempre cheios de convicção, enquanto os sábios estão cheios de dúvidas.” Essa citação ecoa de forma perturbadora na obra, nos lembrando da importância de estarmos sempre vigilantes contra os perigos do fanatismo.

Quando a informação está ao alcance de um clique, é fácil cair na armadilha da superficialidade e do esquecimento seletivo — mas é crucial reconhecer que a memória coletiva é fundamental para evitar a repetição dos erros do passado. Devemos buscar compreender plenamente o passado para construir um futuro mais justo e inclusivo. Como disse Burke:

“Um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la” — e isso vale para todos nós. É um alerta sobre os perigos da complacência, da amnésia e da ignorância histórica, e foi feito antes que muitos extremistas chegassem ao poder, mas o alerta foi ignorado.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Arbítrio na política de drogas é burro e, agora, inconstitucional, Bruno Boghossian, FSP

 Acabar com a prisão de usuários de drogas foi uma decisão do Congresso Nacional. Até 2006, quem tivesse entorpecentes para consumo pessoal podia ser condenado a detenção de seis meses a dois anos. Naquele ano, os parlamentares cumpriram seu dever constitucional e aprovaram uma lei que estabelecia medidas alternativas nesses casos.

Foi uma inovação feita pela metade. Sem estabelecer uma distinção objetiva, a lei foi um convite ao arbítrio. Na prática, policiais e juízes ganharam o poder de definir as condições em que alguém seria considerado usuário ou traficante. Não é preciso dizer que tipo de circunstância pesa mais, dependendo da pessoa que é flagrada com a droga.

O Congresso conviveu pacificamente com esses abusos. A entrada do Supremo no circuito se deu para determinar que, especificamente no caso da maconha, a lei não pode ser distorcida para criminalizar o usuário. Os críticos do tribunal podem reclamar, mas a corte foi chamada para corrigir um defeito do sistema de Justiça, permitido por uma lei deficiente.

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Ministro do Supremo Tribunal Federal julgam processo de descriminalização da maconha - Gabriela Biló/Folhapress

Este, porém, também foi um trabalho feito de forma grosseira. Em vez de mostrar que tratavam de garantir que a lei fosse cumprida de maneira justa e correta, os ministros assanharam opositores e ainda exibiram discordâncias sobre o responsável por estabelecer o critério de quantidade de droga portada: o Congresso, a Anvisa ou o próprio STF.

A prerrogativa de definir uma política de drogas continua nas mãos do Congresso, que tem o direito de aprovar um entendimento diferente da decisão do Supremo. Até aqui, no entanto, os parlamentares só se mexeram para tornar mais evidente sua omissão: a PEC das Drogas, aprovada no Senado e em discussão na Câmara, aumenta a brecha para a discriminação.

Permitir que determinados usuários sejam igualados a traficantes não é apenas perversidade, preconceito e uma política pública burra. O que o STF decidiu é que isso também é inconstitucional.

Ruy Castro- O viúvo hologrâmico, FSP

 Em "Janela Indiscreta", filme de Alfred Hitchcock, de 1954, James Stewart, perna engessada até à virilha, está limitado a observar o mundo por sua janela. E, das janelas do prédio em frente, saem os retalhos da vida de seus vizinhos. Como a romântica quarentona que, todas as noites, põe uma sedutora mesa para dois ---louça, pratas, guardanapos, luz de velas, uma flor. Mais tarde, ele a vê toda feliz, conversando com o homem que, supõe-se, está sentado à sua frente, de costas para a janela. Mas esse homem não existe. Só em imaginação. De repente, ela explode e chora. E, vencida, dorme sobre a mesa.

O japonês Akihiko Kondo, 33 anos, administrador de uma escola em Tóquio, não quis correr esse risco. Ao saber que uma empresa chamada Gatebox poderia criar-lhe uma mulher-robô —um holograma, capaz de interações envolvendo emoções e sentimentos— com que poderia "casar-se" e conviver, viu nisto sua realização. Até então, todas as suas tentativas de relação com mulheres de verdade haviam fracassado. E ele tinha muito, muito amor a dar. Ele o daria a Hatsune, sua esposa-holograma. Ela o amaria de volta, e os dois seriam felizes. Foram.

O perigo de uma experiência como esta é que ela dispensa o sujeito de enfrentar o mundo, vencer ou não suas deficiências e ser um adulto na vida. Uma esposa-holograma é como uma boneca inflável, só que ela é virtual. A diferença é que, quando a boneca fura e faz fssssss, é só jogá-la fora e comprar outra igual. Mas, com uma esposa-holograma, não é assim. Ela fala, ouve e "sente" como nenhuma outra. Não haveria duas como Hatsune.

E se, sem aviso prévio, por razões de mercado ou normas, a dita Gatebox, responsável pela manutenção da robô, resolver desativá-la? De repente, ela fará pfffttt e sairá do ar, para nunca mais. O que teremos então? Um inconsolável viúvo hologrâmico. Foi o que aconteceu com Akihiko Kondo. Bem-feito.

Um homem sorridente, vestindo terno e gravata, está sentado ao lado de um dispositivo cilíndrico que projeta um holograma de um personagem animado. O holograma mostra uma figura feminina com cabelo azul e vestido branco. O fundo é composto por cortinas brancas.
O japonês Akihiko Kondo posa, em seu apartamento em Tóquio, ao lado de holograma da cantora japonesa Hatsune Miku, com