domingo, 2 de abril de 2023

JOÃO CARLOS MARTINS A ignorância da inteligência artificial, FSP

 

João Carlos Martins

Maestro e pianista

De quando em quando temos uma notícia que nos impressiona pelo avanço da tecnologia e da ciência, como fotos de Plutão e suas luas, feitas pela espaçonave New Horizons, ou dos robôs exploradores Opportunity e Curiosity, que registraram inúmeras imagens de pedras em Marte.

Atualmente, a inteligência artificial, com seus algoritmos que fazem parte do nosso cotidiano, têm lacunas inexplicáveis.

No meu caso, refiro-me à música, principalmente no que diz respeito à arte interpretativa (música instrumental e individual). Quando o grande jornalista Gilberto Dimenstein (1956-2020) e o ator Alexandre Nero me convenceram a ter meu próprio Instagram (@maestrojoãocarlosmartins), com o argumento de que seria mais uma peça no tabuleiro de democratização da música clássica, principalmente no Brasil, aceitei a ideia. Todos os sábados iniciei uma pequena postagem tocando ou regendo em algum lugar do Brasil ou do mundo, sempre com imagens ou trilhas sonoras ao vivo.

João Carlos Martins toca no Carnegie Hall, em Nova York, com a orquestra NOVUS NY
João Carlos Martins se apresenta no Carnegie Hall, em Nova York, com a orquestra NOVUS NY - Gabriel Araújo/Divulgação - Gabriel Araújo

Qual a minha surpresa, em ambos os casos, quando tive alguns bloqueios. Imaginem eu regendo com a minha expressão facial a minha Bachiana, tocando Brahms, e o algoritmo legendando que se trata da Filarmônica de Berlim. Claro que é uma honra ser comparado a essa grande orquestra, mas é fake.

Imaginem ainda eu tocando ChopinSchubert ou Liszt e ter a trilha totalmente bloqueada, ou regendo a "Heroica", de Beethoven, e ser bloqueado —apesar de as imagens serem reais.

Talvez a solução seria a obrigatoriedade de o artista sempre fazer constar em sua postagem "áudio original" e, caso fosse fake, evidentemente que seria identificado e rejeitado pela classe artística, principalmente aquela que considera a cultura a alma de uma nação —além desse ato também ser um crime.

Comecei por uma pedra em Marte para chegar à música e sua arte interpretativa. Claro que o algoritmo é capaz de reconhecer o compositor, mas raramente o intérprete, pois as delicadas nuances perceptíveis aos seres humanos não são perceptíveis para o algoritmo.

Hoje em dia, como não tivemos mais um Bach, um Beethoven ou um Mozart nos séculos 20 e 21, a interpretação transformou-se na única forma de distinguir a individualidade do intérprete.

Hoje se fala muito em fake news, mas espero que "fake playing news" não seja assunto da ignorância artificial, que não respeita a dignidade de um músico que fica horas, dias, semanas, anos para mostrar a que veio no mundo da música e para demonstrar como a individualidade do intérprete pode conviver com a personalidade do compositor.

Por outro lado, músicas de domínio público, como é o caso da música clássica, especificamente, muitas vezes têm o registro da gravação de alguma orquestra que reivindica os direitos autorais. Me pergunto: esta é uma forma de democratizar a música clássica ou afastar o público digital, infelizmente ainda pequeno, deste maravilhoso universo que nos foi legado pelos grandes compositores do século 16 até meados do 20?

PS: Caso contrário, deixem o algoritmo tocar!

Hélio Schwartsman - Livro utiliza tecnologia como pretexto para ótimas reflexões filosóficas, FSP

 "God, Human, Animal, Machine", de Meghan O’Gieblyn, foi uma grata surpresa. Eu esperava ler mais um livro sobre tecnologia, mas encontrei um texto que utiliza os avanços tecnológicos como pretexto para ótimas reflexões sobre filosofia, epistemologia, teologia e literatura. O’Gieblyn ainda adiciona a essa mistura um forte tom memorialista.

Uma das ideias centrais do livro é que a inteligência artificial e as tecnologias da informação absorveram muitas das questões que sempre animaram filósofos e teólogos, como a relação entre mente e corpo, o livre-arbítrio e a possibilidade da imortalidade. Só que elas agora são apresentadas, não tanto como discussões metafísicas, mas como problemas de engenharia.

E há algo de paradoxal aí. Essa abordagem mais politécnica tem muito a ver com o desencantamento do mundo que experimentamos desde Descartes. Só que as novas tecnologias, por uma série de efeitos, ameaçam reencantar o mundo. De fato, não há nada mais "encantado" do que um cenário em que, graças à internet das coisas, interagimos com geladeiras e maçanetas "inteligentes".

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 1º de abril de 2023, mostra a antessala com a porta, e sua maçaneta falante, que leva ao País das Maravilhas
Antessala com a porta, e sua maçaneta falante, que leva ao País das Maravilhas - Annette Schwartsman

Um dos temas tratados pela autora é o transumanismo, de figuras como Ray Kurzweil e Nick Bostrom, que nos promete a vida eterna, seja por uma ciência médica que vencerá a morte, seja pelo download de nossas consciências em computadores. O’Gieblyn mostra como essa discussão não passa de uma versão tecno das velhas religiões. E aí entra o tom memorialista. Esse é um assunto que ela viveu na pele. A autora cresceu numa família fundamentalista e cursou uma universidade bíblica. Está perfeitamente familiarizada com debates teológicos. Mas não se preocupem, ela superou isso tudo e hoje é uma intelectual ateia padrão.

O texto de O’Gieblyn é deliciosamente erudito e surpreendentemente fácil de ler. Há uma engenhosa reconstrução do memorável diálogo que Ivan e Aliocha travam nos "Irmãos Karamázov", de Dostoiévski.