domingo, 22 de dezembro de 2019

OPINIÃO Expressa a opinião do autor do texto LUÍS FERNANDO GUEDES PINTO O futuro da agricultura e da comida, FSP

'Quase fim' da fome trouxe efeitos inconvenientes

  • 1
A conexão entre agricultura, ambiente, alimentação e saúde nunca esteve tão em evidência, mas nem tudo é consenso. É certo que o mundo nunca produziu tanto alimento. A revolução verde nos levou da escassez para o excedente. E hoje há fome por problemas políticos, guerras e desigualdades, mas não pela falta de oferta.
O “quase fim” da fome, porém, trouxe efeitos colaterais inconvenientes. O casamento da revolução verde com a indústria de alimentos tem causado intensos impactos ambientais e sociais e nos levou da fome para as doenças crônicas. Um ponto de convergência é que esses problemas estão interligados no chamado sistema agroalimentar, onde o campo e o prato se conectam. As mudanças climáticas são um de seus elos.
O engenheiro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto, do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola) - Reinaldo Canato - 26.ago.19/Folhapress
Para produzir mais, há os que defendem que devemos desmatar, como um mal inevitável. Muitos discordam e apontam que a intensificação da produção, a mudança das dietas e a redução do desperdício seriam suficientes para alimentar a todos. Logo, decidir ocupar mais terras seria uma opção para o crescimento econômico, e não necessidade para a superação da fome ou única rota para o desenvolvimento.
futuro da agricultura e da comida tem cenários diversos. Começa com a revolução verde aprimorada pela agricultura de precisão, o que minimizaria seu impacto ambiental. Passa por uma aproximação da agricultura da natureza, uma produção ecológica e uma alimentação mais diversificada. Transita pela produção nas cidades e até em edifícios e termina com as fábricas de alimentos artificiais, com a total desconexão da natureza e das fazendas.
Há um capítulo à parte que trata da produção de animais e do seu bem-estar. As novas gerações deixam claro que não estão dispostas a comer animais que ficam engaiolados e entupidos de rações e produtos veterinários para serem mortos e, assim, alimentar-nos.
[ x ]
E o que vamos comer no futuro? Na contramão das projeções dos mercados, a grande maioria dos estudos aponta que a redução do consumo da proteína animal é uma solução chave para questões ambientais, como desmatamento, mudanças climáticas e saúde pública. A tendência é o aumento significativo do consumo de proteínas vegetais. Uma mudança cultural que ocorre numa virada de gerações aponta isso claramente, com o crescimento do vegetarianismo e do veganismo.
Mesmo assim, a carne ainda tem o seu lugar no futuro. As dúvidas ficam para perguntas como: quem vai comer carne, quanto e que carne será esta: animal, vegetal ou artificial?
busca por alimentos mais saudáveis e livres de agrotóxicos é outra tendência evidente. Se grande parte da questão da saúde pública está em enfrentar o processamento e a adição de aditivos, sais, açúcares e gorduras da indústria de alimentos na comida, cabe ao campo resolver a questão dos agrotóxicos. 
Para essas questões, a educação e a rotulagem dos alimentos têm papel central. E para as cidades fica a urgência de enfrentar os desertos alimentares, regiões onde não há alimentos frescos.
Se entendemos bem o problema de um sistema agroalimentar insustentável e doente, temos propostas de soluções muito diferentes pela frente. Provavelmente no futuro não tão distante teremos um cardápio com um pouco de tudo o que citei. Pois tudo isso está acontecendo, com pesquisadores, investidores e grupos de interesse encabeçando cada uma dessas tendências. Porém, mesmo na diversidade, que comida e saúde caberá a cada grupo social?
E como fica a dimensão espiritual ou religiosa? O alimento deixará de ser uma conexão do sagrado com a vida? Como seria uma missa com o pão sintético? A comida vai estreitar ou afastar a humanidade das emoções? Pode nos ajudar a sermos mais solidários e sustentáveis?
Será fundamental o papel do Estado em regular as transformações em curso. Deixar ao sabor do mercado é um perigo imenso. As políticas do sistema agroalimentar definirão a sustentabilidade do planeta e a saúde dos humanos. 
Para prevalecer o interesse público será muito importante participação da sociedade civil, transparência, informações confiáveis, ética e líderes que se comprometam com o bem comum.
Luís Fernando Guedes Pinto
Engenheiro agrônomo do Imaflora, é doutor em produção de plantas pela Esalq-USP e membro da Rede Folha de Empreendedores Sociais
TENDÊNCIAS / DEBATES

helio@uol.com.br Hélio Schwartsman Loucura das multidões, FSP

Há livros que são concebidos para ser polêmicos

  • 2
Há livros que são concebidos para ser polêmicos. "The Madness of Crowds" (a loucura das multidões), de Douglas Murray, é um deles. Murray é de direita, mas não da variante bolsonarista. Formado em Eton e Oxford, ele sabe portar-se à mesa e defende direitos de mulheres, minorias raciais e gays. Ele próprio é gay —e ateu.
"The Madness...", porém, pode ser descrito como um ataque a setores do feminismo, do movimento LGBT e de outras militâncias identitárias. O argumento central de Murray é que, embora vivamos, nas democracias ocidentais, uma era na qual os direitos de minorias são respeitados como em nenhum outro momento da história, vários desses grupos vêm com um discurso raivoso e catastrofista, como se estivéssemos na antessala de Auschwitz. E esse tipo de narrativa, diz o autor, divide as pessoas, gera ressentimentos e produz injustiças.
Murray escreve bem e sabe utilizar o inesgotável armazém de exageros de militantes para ilustrar seus argumentos. O ponto forte do livro é quando ele desmonta a noção de interseccionalidade, isto é, a ideia de que as diferentes minorias travam uma luta comum contra o patriarcado branco, hétero, cis.
O autor mostra que os discursos dos diferentes grupos são com frequência logicamente incompatíveis. Gays, por exemplo, insistem na inevitabilidade da orientação sexual (não é uma escolha e não comporta "cura"), o que está em contradição com a noção, defendida pelos trans, de que cada um é livre para pertencer ao gênero que preferir.
Por vezes, esses curto-circuitos ganham sinistra materialidade, como na história da jovem professora que escreveu um paper afirmando que, da mesma forma que o transgenerismo é legítimo, o transracialismo (um branco viver como negro) também deveria ser. O movimento negro ficou furibundo. A jovem professora conseguiu salvar seu emprego, mas editores do periódico que publicara seu texto não.
Livro Madness of the Crowds
Capa do livro "The Madness of Crowds" - Reprodução
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

Drauzio Varella São Gabriel da Cachoeira, FSP

A paisagem é de tirar o fôlego

  • 4
Perdi a conta de quantas viagens fiz ao rio Negro; mais de cem, talvez. Há 20 anos escrevi: “Se me fosse dado o privilégio da derradeira viagem, iria ao rio Negro mais uma vez”.
No mês passado, voltei ao Alto Rio Negro para gravar um documentário em São Gabriel da Cachoeira, a última das cidades na direção da Colômbia e da Venezuela.
Um homem com os braços na cintura olha uma paisagem com montanhas, vegetação e água
Líbero/Folhapress
São Gabriel já existia como aldeia indígena, quando os primeiros invasores brancos chegaram à região. Hoje, com cerca de 40 mil habitantes espalhados pelo município, metade dos quais no espaço urbano, é a segunda maior cidade do rio Negro —perde apenas para Manaus, situada a 1.100 quilômetros.
A paisagem é de tirar o fôlego. Já passei horas encantado pela visão da serra do Curicuriari, ao longe, e das águas que correm ruidosas formando rodamoinhos entre as pedras, em oposição ao comportamento plácido que exibem rio abaixo, quando o vento as deixa em paz.
De costas para o rio, você verá a torre branca de bordas azuis de uma das igrejinhas mais singelas do Brasil, ao lado do colégio que os padres salesianos construíram no início do século passado, como parte do sonho de atrair, evangelizar, alfabetizar e convencer os indígenas a abandonar a língua nativa e os costumes que os religiosos consideravam pagãos.  
A cidade é o centro político e administrativo da Cabeça do Cachorro (área maior do que Portugal), para onde convergem os indígenas das aldeias às margens do Negro e de seus afluentes que nascem nos países vizinhos. Mais de 80% dos habitantes são indígenas pertencentes a 23 etnias, que emigraram de povoados distantes. A diversidade de idiomas e tradições culturais dos povos do Alto Rio Negro é tão complexa quanto à das florestas habitadas por eles.
Tukanos, baniuas, coripacos, barés, hupdas, desanos, tuyukas, arapaços, ianomâmis, pira-tapuias, wananas e as mulheres e homens das demais etnias circulam de sandália havaiana e camisetas que não poupam estampas extravagantes, sob o sol inclemente que transforma a cidade num crematório, às duas da tarde.
O comércio é animado por carros de som, as lojas exibem roupas coloridas, tênis, redes, óculos escuros, material de construção, eletrodomésticos e móveis industrializados. Carros particulares, utilitários, táxis cansados de rodar e motos se movimentam sem engarrafamentos.
A cidade é mais multicultural do que São Paulo ou Rio de Janeiro. Na feira, no comércio e pelas ruas o transeunte ouve as línguas das diversas etnias, o português falado com sotaques variados e o portunhol dos que vieram dos povoados fronteiriços.
As estradas que levam a São Gabriel são líquidas. Os viajantes que partem com as canoas dos povoados rio acima costumam levar vários dias para chegar à cidade. Com o litro de gasolina a R$ 5, é comum gastar com combustível mais do que o salário de aposentado ou do que lhes é pago pelo Bolsa Família, obstáculo que os obriga a viajar para receber o pagamento a cada três meses, prazo máximo que o governo lhes dá antes de recolher o dinheiro.
Os militares estão por toda parte; são elogiados e respeitados pela população. Não fossem o uniforme e a presença de alguns brancos e negros, nada os diferenciaria dos habitantes locais. Entrar para o Exército é aspiração generalizada dos jovens indígenas do Alto Rio Negro, garantia de salário mensal e de uma carreira. Infelizmente, o nível de escolaridade e as distâncias amazônicas impedem o acesso às academias militares e às posições hierárquicas superiores.
O comando militar da região está a cargo da Segunda Brigada de Infantaria de Selva, chefiada pelo general Danilo Alencar, homem que se emociona ao falar da alta qualidade do soldado indígena. Sob
sua responsabilidade ficam o único hospital do SUS da região e os pelotões de fronteira.
O trabalho dos soldados nas fronteiras é  solitário. Lá, eles são a única presença do Estado. Cada pelotão é chefiado por um tenente com menos de 30 anos que exerce a função de prefeito, juiz de paz, delegado, assistente social, gestor de atenção médico-odontológica, administrador do programa de inclusão digital e o que mais for necessário assumir nas comunidades carentes das imediações, esquecidas pelas autoridades municipais, estaduais e federais.
Dada a ausência total do Estado nos extremos da Cabeça do Cachorro, tenho convicção de que se não fosse o Exército brasileiro, já teríamos perdido aquela parte do país.
Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.