terça-feira, 2 de junho de 2015

Como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, livro - FFLCH, organizado por Marta Arretche

Como o Brasil mudou nos últimos 50 anos

02 de junho de 2015

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP -A América Latina apresenta os mais elevados índices de desigualdade do mundo e o Brasil ainda está entre os países mais desiguais da América Latina. Porém as desigualdades, em várias áreas, vêm diminuindo consistentemente. São reduções gradativas. Não houve nenhum grande salto de superação das desigualdades concentrado em um momento específico, mas o processo, como um todo, está fortemente associado à reconstrução da democracia.
Esta é uma das conclusões do livro Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, organizado por Marta Arretche, professora titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) apoiados pela FAPESP. 
“O livro é o primeiro grande balanço feito nas ciências sociais que considera o Brasil como um todo, em todas as dimensões tidas como relevantes, ao longo de 50 anos de trajetória”, disse Arretche à Agência FAPESP. Uma equipe composta por 23 pesquisadores, de diversas áreas das ciências sociais (demografia, economia, sociologia e ciência política), realizou a síntese, a partir da sistematização de dados censitários.
“Contamos com a participação de professores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da University of Illinois at Urbana-Champaign, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e do CEM”, informou a organizadora.
O trabalho desses pesquisadores beneficiou-se de seis edições dos Censos Demográficos, produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1960 a 2010. Ao longo desse meio século, o país apresentou configurações econômicas e políticas muito distintas: transição rural-urbana; industrialização, crescimento econômico acelerado e retração econômica; inflação e estabilidade monetária; autoritarismo e democracia.
Conforme destacou Arretche na apresentação da obra, o Brasil dos anos 1960 era um país rural, com três quartos de sua população funcionalmente analfabeta e esmagadoramente católica e um mercado de trabalho com amplo predomínio masculino. Confinadas no lar e com suas atividades restritas ao trabalho doméstico, as mulheres tinham em média seis filhos. A desigualdade entre brancos e não brancos começava no acesso aos bancos do ensino fundamental.
Um país altamente urbanizado
Em 2010, o Brasil já era um país altamente urbanizado, com 85% de seus habitantes vivendo em cidades. Entre os jovens, a conclusão do ensino básico tornara-se praticamente universal e 70% deles completavam oito anos de estudo. O analfabetismo funcional, restrito então a 20% da população economicamente ativa, concentrava-se entre os mais velhos. Em uma sociedade cada vez mais plural em termos religiosos, ter filhos passara a ser uma escolha, as mulheres haviam-se tornado maioria no contingente universitário e deixara de haver diferenças entre profissões tipicamente masculinas ou femininas.
Entre um marco cronológico e outro, a taxa de mortalidade infantil caiu de 69 para 16 por 1.000 nascidos vivos e a esperança de vida subiu de 62 para 73 anos. O acesso muito maior ao ensino médio e superior exerceu grande impacto no funcionamento do mercado de trabalho e na participação política.
Segundo cálculo realizado pelos autores do livro, com base nos dados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (PNADs), do IBGE, o pico da desigualdade de renda no Brasil ocorreu em 1989, final do governo Sarney, quando o piso da renda dos 5% mais ricos correspondia a 79 vezes o teto da renda dos 5% mais pobres. “Desde então, essa razão vem apresentando queda sistemática. Em 2012, ano em que a série atingiu seu patamar mais baixo, ela era de 36 vezes”, afirmou Arretche.
Desigualdade de renda
O estudo mostrou que as desigualdades de renda vêm caindo principalmente entre os 90% mais pobres. “A desigualdade entre os 10% mais ricos e os 90% mais pobres manteve-se praticamente estável. Mas, no conjunto dos 90% mais pobres, houve mudanças importantes. A extrema pobreza, definida por renda inferior a um quarto do salário mínimo, foi muitíssimo reduzida, basicamente por causa do programa Bolsa Família. Na década de 1990, os extremamente pobres compunham 38% da população. Hoje, são 5%. E, devido à política salarial, a pobreza também diminuiu”, contabilizou a pesquisadora.
Mas ela enfatizou que uma diferença de 36 vezes no patamar de renda ainda constitui uma desigualdade muito grande. Reconheceu, no entanto, que o desenho descendente da curva da desigualdade de renda no Brasil destoa da tendência observada no mundo desenvolvido. “Dados do The World Top Income Database indicam que, nos Estados Unidos, a participação dos 1% mais ricos na renda nacional (excluídos os ganhos de capital) cresceu de 12,2% para 19,3% entre 1991 e 2012. No mesmo período, esse indicador passou de 10% para 15,4% no Reino Unido, e de 5% para 7,1% na Suécia, considerada um exemplo de democracia avançada.”
Por importante que seja a variável renda, ela não é superdimensionada no livro. “Até agora, os balanços das desigualdades no Brasil concentravam-se demais nas diferenças de renda, destacando menos outras dimensões relevantes. Fizemos um balanço multidimensional, contemplando, além da renda, dimensões como mercado de trabalho, educação, acesso a serviços, desigualdades de gênero, desigualdades de cor, desigualdades territoriais, participação política etc. Foi um trabalho empiricamente muito robusto”, disse.
Nesse amplo leque de variáveis, o tratamento dos dados confirmou que há desigualdades muito mais persistentes do que outras. É o caso daquelas decorrentes da cor da pele. Em um país que muitos ainda acreditam ser uma “democracia racial”, a velocidade com que as mulheres diminuíram sua desigualdade em relação aos homens foi muito maior do que a velocidade com que os não brancos diminuíram sua desigualdade em relação aos brancos. “Se o mundo universitário na década de 1960 era um mundo branco e masculino, hoje ele é apenas branco. As mulheres superaram os homens, mas os brancos ainda compõem 75% da população universitária. Mais que isto, quando os não brancos entram no sistema de ensino superior, tendem a ingressar nas escolas que dão acesso às profissões de menor prestígio. A redução das desigualdades de cor no sistema escolar permaneceu restrita ao ensino fundamental”, comentou Arretche.
Políticas Públicas
De acordo com a pesquisadora, as políticas públicas têm desempenhado um papel central na redução das desigualdades. E não se trata da mera existência de políticas públicas, porque estas sempre existiram. Mas também de seu desenho. Um exemplo mencionado por ela é o da baixa desigualdade de participação política. Diferentemente de outros países, em que os pobres não participam do processo eleitoral, em que a participação eleitoral ocorre em desfavor dos pobres, no Brasil a participação dos pobres é alta. E a desigualdade entre as regiões no tocante à participação política é muito pequena.
“Poderíamos dizer, intuitivamente, que isso ocorre porque o voto inclui os analfabetos e é obrigatório. Mas estas não são as principais razões. As principais razões são algumas decisões dos tribunais eleitorais em relação às regras de participação”, afirmou. “Por exemplo, nos Estados Unidos e na Itália, o eleitor tem que se registrar para cada eleição. Além disso, as eleições ocorrem em dia de trabalho. No Brasil, o título de eleitor permite participar em várias eleições. E as eleições sempre ocorrem em domingos ou feriados. Parece pouco, mas esses fatores foram muito importantes para aumentar a participação. Mais do que as grandes decisões, são, às vezes, os pequenos detalhes que contribuem para a diminuição da desigualdade.”
Mas, se algumas melhorias são, por assim dizer, territórios conquistados ou ganhos estruturais, outras podem ser ainda abaladas por flutuações conjunturais. “A queda das desigualdades é resultado de muitos mecanismos, que se combinam no tempo”, explicou Arretche. “Um desses mecanismos diz respeito à demografia. Uma das razões importantes da histórica desigualdade no Brasil é que tínhamos abundância de mão de obra barata e de baixa qualificação. Isso mudou, porque a taxa de fertilidade mudou e o acesso à educação aumentou. Desses dois fatores, o primeiro pode ser considerado irreversível. Dificilmente voltaremos ao padrão de fertilidade que tivemos até a década de 1980. Mas não há garantia de que o acesso à educação continue aumentando. Nos Estados Unidos, por exemplo, aconteceu o contrário. Os estudos mostram que, lá, os patamares educacionais caíram de 1970 para cá.”
É claro que essa comparação precisa ser matizada, porque, nos Estados Unidos, o grande diferencial é o acesso ao ensino superior, ao passo que o Brasil apenas acabou de universalizar o ensino fundamental. “Mas, dependendo da conjuntura, existe o risco de ficarmos paralisados nisso. A trajetória de longo prazo das desigualdades no Brasil revela que não há determinismo – econômico ou político – nesse processo. Políticas importam! Mais que isso: deslocamentos nos padrões de desigualdade requerem políticas implementadas por um longo período de tempo”, concluiu.
O livro será lançado em seminário no Centro de Estudos da Metrópole, em 2 de junho de 2015, das 9 às 18 horas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Prédio da Filosofia e das Ciências Sociais, Sala 14, na Avenida Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária, São Paulo.
O evento é aberto a todos, sem necessidade de inscrição prévia.
Mais informações: www.fflch.usp.br/centrodametropole.
Ficha
Título: Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos
Organizadora: Marta Arretche
Editora: Editora Unesp
Ano: 2015
Páginas: 489
Preço: R$ 69 
 

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O império do senso comum, por Chico alencar

Os arreganhos triunfantes de uma maioria reacionária são expressões típicas da crise do nosso modelo de modernização conservadora
O senso comum, nesta encruzilhada de nossa história, foi erigido como medida inquestionável de uma série de decisões que afetam a vida nacional. Na Câmara dos Deputados, a onda conservadora afoga todos na superficialidade da percepção dos fenômenos sociais.
Assim, a violência estrutural e a sensação de insegurança passam a ter como solução o encarceramento de jovens em regime prisional para adultos --de onde advêm 70% de reincidência criminal-- e a flexibilização do Estatuto do Desarmamento, na perigosa linha do "cada cidadão uma arma".
A perspectiva do desemprego é "enfrentada" com a precarização geral do trabalho e quase irrestrita das terceirizações. A necessidade da produção de alimentos e commodities pelo agronegócio ameaça ainda mais os direitos dos povos nativos, desconhecendo-se que cada km² de terra indígena emite 25% menos CO2 que outras terras agricultáveis na própria Amazônia.
À saudável diversidade da convivência amorosa --com novas formas de coabitação solidária-- é oposto o modelo único da família tradicional, como se fora dela não existisse salvação.
Aos escândalos que se sucedem, a serem enfrentados com investigação rigorosa e transparência, é preceituado o remédio do moralismo individualista, como se tudo fosse uma questão de transferir virtudes privadas --véu de hipocrisia?-- para o âmbito da instância pública.
Também no plano da política institucional o método arcaico impera: no lugar de uma reforma política, implementam-se medidas tópicas contra a política. O povo a repudia? Pois reduzamos suas oportunidades de debate e escolha, com pleitos apenas quinquenais, para todos os cargos da República.
A corrupção atinge a todas as grandes siglas, revelando a perda total de fronteiras entre o público e o privado? Constitucionalize-se a doação de empresas para os partidos, e só a partir deles para as campanhas, como se isso as tornasse mais limpas e austeras.
A ideia de partido está degradada? Então que se garanta na lei o triunfo do indivíduo, da personalidade ungida pelo voto, como defendida pelos proponentes do distritão, sistema que elege para a função pública só os mais votados.
Há pequenos partidos, alguns "de aluguel", que se vendem? Que se imponham cláusulas para impedir seu direito de crescer, preservando os grandes que tantas vezes os compram e, não raro, são acometidos de nanismo moral.
As pseudossoluções galopantes da pequena política, os arreganhos triunfantes de uma maioria reacionária são expressões típicas da crise do nosso modelo de modernização conservadora, do nosso aparato político reativo à democratização de base, direta e participativa, do esgotamento do arsenal de conciliações entre contrários que estão, cada vez mais, assemelhados.
Antonio Gramsci (1891-1937), em seus "Cadernos do Cárcere", denominou "interregno" esse tempo de incertezas que anuncia, entre sombras, um fim de ciclo. Trata-se do intervalo histórico em que o velho ainda não desapareceu totalmente e o novo ainda não se firmou.
A sofreguidão regressista, com mais espaço nesses tempos sem hegemonia clara, tenta cristalizar suas posições. Esses períodos trevosos, diz Gramsci, são propícios ao aparecimento de "sintomas mórbidos, fenômenos estranhos, criaturas monstruosas".
Nossa cena política contemporânea oferece vários personagens com essas características nefastas.
A história é um contínuo de transformações. O desafio da hora presente, frente ao império do senso comum e seus monarcas do atraso, é dar um novo significado ao bom senso republicano da igualdade, da democracia e da ética social.
CHICO ALENCAR, 65, professor de história, é deputado federal pelo Rio de Janeiro e líder do PSOL 

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Carlos Bezerra Jr.: Quando a fé cheira a pólvora


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Há alguns dias, recebi pelas redes sociais a imagem de uma Bíblia aberta com um revólver em cima. Fiquei estarrecido porque a postagem trazia a logomarca de um deputado federal e usava um versículo do livro de Êxodo para justificar projeto que aumenta de seis para nove o número de armas por cidadão e o número de munições de 50 por ano para 50 por mês.
Segundo o relatório da CPI do Tráfico de Armas da Câmara Federal, em 2006, "55% das armas rastreadas a partir das informações de venda das fábricas brasileiras foram legalmente vendidas antes de caírem na ilegalidade".
O Mapa da Violência 2013, de Julio Waiselfisz, feito com dados do Ministério da Saúde, indica que, de 1980 a 2010, morreram quase 800 mil pessoas por arma de fogo no Brasil. Não há base bíblica que sustente turbinar esses números.
Há outros casos preocupantes. No âmbito federal, parlamentares da chamada bancada evangélica têm se unido a ruralistas e à denominada bancada da bala contra a Lista Suja do Trabalho Escravo –um dos principais mecanismos de luta contra esse tipo de crime– e estão a favor da transferência da demarcação de terras indígenas do Executivo para o Legislativo.
Os deputados da "bancada evangélica" também estão entre os principais defensores da redução da maioridade penal, contra o que disseram as ONGs cristãs Visão Mundial e Rede Evangélica Nacional de Ação Social, em audiência pública que promovi na Assembleia Legislativa de São Paulo.
Essas duas organizações cristãs concordam com as exposições da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Associação Paulista do Ministério Público, Defensoria Pública de São Paulo, Fundação Casa e Fundação Abrinq - Save the Children.
Faltaria espaço nesta página se fossem elencados os absurdos legislativos nascidos da leitura obtusa do Velho Testamento. Associar trechos da Bíblia fora de contexto a posturas policialescas, moralismo e populismo é das receitas mais antigas para causar tragédias.
Nós, cristãos protestantes, vítimas históricas dessa prática, temos a responsabilidade de não permitir que isso seja feito em nosso nome e de forma tão insistente que começa a gerar estigmatização.
Cria-se um estereótipo tão pesado que já vi questionarem, por exemplo, se evangélicos têm capacidade de atuar na defesa dos direitos humanos e civis, como se fosse possível negar a história de cristãos como William Wilberforce, Martin Luther King e Desmond Tutu.
São histórias humanas de luta, mas não de vingança, jamais de violência gratuita ou de ódio. Pela ética do Sermão da Montanha, são infelizes os justiceiros e os vingadores. Bem-aventurados são os pacificadores, os que enxergam que a violência é a doença, não a cura.
Entristece, mas não espanta, a existência dos que dizem seguir o Mestre que pregava a paz, o perdão, a misericórdia, a compaixão e a vida, mas se notabilizam por fomentar o ódio, a vingança, a intolerância e o medo. É um comportamento milenar, descrito pelo próprio Jesus na Bíblia.
No Evangelho de Mateus, Ele fala dos que seguem detalhes milimétricos, como o dízimo dos temperos, mas não obedecem aos mandamentos mais importantes, como o amor ao próximo e a justiça. Não os chama de seguidores, mas de hipócritas, oito vezes só no capítulo 23.
Segundo o teólogo anglicano John Stott, "a mente bíblica não é a que cita versículos, mas a que raciocina dentro dos parâmetros das Escrituras". Recomendo fortemente a leitura a certos deputados da "bancada evangélica".
O circo armado do retrocesso faz um sucesso retumbante, mas não tem nada de bíblico muito menos de evangélico, é simplesmente o "business" do ódio.
CARLOS BEZERRA JR., 47, médico, é deputado estadual pelo PSDB-SP e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo
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