domingo, 16 de fevereiro de 2014

Memória de um caos social e mental - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 16/02

Em 2003, país também vivia surto de retórica histérica sobre 'desordem social' e 'crise institucional'


"CAOS SOCIAL" era a conversa de quase todo mundo em meados de 2003, pelo menos de "todo mundo" das classes "formadoras de opinião", ainda minoritárias, pois não havia "redes sociais" de internet.

Era a metade do primeiro ano do governo Lula. Em agosto de 2003, esta Folha fazia uma enquete com figuras públicas a respeito do zum-zum de então. O texto iniciava assim:

"Onde alguns enxergam sinais de desordem social ou até de risco de crise institucional no país, outros veem apenas alarmismo retórico e reação exagerada a pressões e conflitos de interesses que fazem parte da rotina democrática".

O que se passava?

Havia um novo surto de invasões de terras pelo MST, que anunciava que faria a reforma agrária "no tapa", que o número de famílias acampadas passaria de 110 mil para 1 milhão e que expulsaria "sem explicações" os fazendeiros de suas terras.

O pessoal do Movimento dos Sem Teto, variantes e precursores, invadira meia dúzia de prédios do centro paulistano, um terreno da Volks em São Bernardo, acampava diante de empresas estatais de habitação e fazia passeatas pequenas por bairros ricos da cidade, causando menos efeito que os falecidos rolezinhos.

Pastorais sociais católicas davam trela e apoio aos sem-terra e aos sem-teto, que contavam ainda com uma forcinha de partidos nanicos de extrema-esquerda e "punks", talvez tios dos black blocs.

Servidores federais faziam greve e passeatas de 30 mil, 60 mil pessoas. Protestavam contra a reforma da Previdência deles. Um dia, "vândalos infiltrados" nessas passeatas depredaram o Congresso. Noutro, houve tumulto de servidores na Câmara, que chamou a PM, na época um escândalo.

Haveria "infiltrados" nas manifestações? Manipulação política? Assim especulavam governo e oposição, "esquerda" e "direita".

"Não tem risco nenhum. No Brasil, nunca faltou quem quisesse fazer terrorismo por pouca coisa", dizia Lula à Folha, em agosto.

No entanto, o clima estava mesmo tenso. Havia o teatro social das ruas, algum drama raivoso contra a vitória do PT e tragédia econômica.

A renda per capita de 2003 era quase a mesma de 1997, mas, para piorar, o país era ainda mais pobre e desigual do que agora. O desemprego rondava os 12%, ante os 5% de 2013. A massa salarial, o total dos salários pagos, caía mais de 10% nas regiões metropolitanas.

Em agosto daquele ano, o consumo caía mais de 4%, em termos anuais. Em 2013, pior ano desde então, o consumo cresceu mais de 4%.

No fim de maio de 2003, já sentindo a chapa quente, Lula discursaria assim em fábrica da Ford: "Como diria meu lado musical, estamos afinando a orquestra. Logo, logo, o espetáculo do crescimento vai começar". Fracassara o Fome Zero, o Bolsa Família era embrionário.

Sem que ninguém prestasse muita atenção, na época, o país voltaria a crescer logo depois do "caos social". Na verdade, até o final de 2006 quase ninguém perceberia muito bem que o país entrara num surto de crescimento.

Em setembro, o "caos social" minguara. O assunto morreu esquecido mais ou menos na mesma época.

O que a situação de agora tem a ver com a de 2003? Nada, afora a histeria, oportunismos reacionários e a retórica inflada de burrices.

A Aliança do Pacífico avança - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 16/02

A Aliança do Pacífico, bloco formado por México, Colômbia, Peru e Chile, reduziu a zero as tarifas de mais de 90% dos produtos comercializados entre seus membros. Os demais produtos, todos do setor agrícola e considerados sensíveis, serão zerados em até 17 anos. Está liberada também a circulação de capitais e serviços, com integração inclusive de mercados financeiros. Considerando-se que essa aliança existe formalmente há menos de dois anos, os progressos são impressionantes - ainda mais se comparados à letargia do Mercosul, cujos projetos de integração se arrastam há mais de duas décadas.

Em poucas palavras, a diferença entre um e outro está na visão de mundo: enquanto os países do Pacífico apostam no livre mercado, os parceiros do Mercosul dão cada vez mais ênfase ao estatismo - uma doença que empobrece países importantes, como Argentina e Venezuela - e à ideologia, que, em nome de um suposto resgate dos pobres e dos oprimidos, repele investidores, criminaliza o lucro e condena a região ao atraso crônico.

A intenção da Aliança do Pacífico não é modesta: pretende ser o principal polo de atração de investimentos na América Latina e quer ser a ponte para uma eventual integração com a Ásia - China, Coreia do Sul e Japão já são observadores do bloco. A aliança reúne hoje 212 milhões de habitantes, e seu Produto Interno Bruto (PIB) somado representa 36% do PIB latino-americano. Vários países da América Central, como Costa Rica e Panamá, já manifestaram interesse em aderir, para não perder a chance de integrar um projeto que tem sido visto no resto do mundo como a mais importante iniciativa de comércio internacional no continente.

O acordo recém-assinado serve também para resolver o desequilíbrio causado pelos vários tratados de livre-comércio firmados individualmente pelos países do bloco com os Estados Unidos e a União Europeia. Graças a esses tratados, diversos produtos comercializados no interior da Aliança do Pacífico eram menos competitivos do que os artigos americanos e europeus. Agora, com quase todas as tarifas eliminadas, a competição tende a se restabelecer.

Para os signatários do acordo, trata-se de mais uma prova de que a aliança está fundada em políticas que visam a flexibilizar cada vez mais as relações comerciais, que preservam a previsibilidade da política econômica, que reduzem a burocracia e que, principalmente, respeitam os contratos em vigor. Em 2012, quando recebeu a visita de empresários e políticos espanhóis interessados em investir na Colômbia, o presidente Juan Manuel Santos lhes disse: "Aqui não expropriamos" - poucos dias antes, o governo da Argentina havia tomado da petrolífera espanhola Repsol sua participação na YPF.

O Mercosul, por sua vez, está cada vez mais atado ao bolivarianismo, que hostiliza os investimentos estrangeiros, ergue barreiras comerciais e reluta em relacionar-se com os europeus e, principalmente, com os americanos. A presença da Venezuela na presidência do bloco diz tudo sobre a prevalência da fantasia sobre a razão no Mercosul.

Como resultado, seus membros aparecem entre os últimos colocados no ranking do Banco Mundial que analisa o ambiente de negócios na América Latina. O Uruguai é o 12.º entre os 33 países analisados, seguido do Brasil (23.º), da Argentina (26.º) e da Venezuela - a lanterninha. Os da Aliança do Pacífico ocupam quatro das cinco primeiras posições.

Mas nem tudo é contraste entre a Aliança do Pacífico e o Mercosul. Um dos objetivos dos fundadores da Aliança é "promover o crescimento econômico, o desenvolvimento e a competitividade das economias dos países-membros, buscando atingir maior bem-estar, superando a desigualdade socioeconômica e promovendo uma maior inclusão social de seus habitantes". Meta idêntica à do Mercosul, como não se cansam de afirmar seus líderes populistas. No entanto, não será necessário muito tempo para constatar que o modelo da Aliança, baseado no livre-comércio e não no atraso ideológico, é o único capaz de cumprir o que promete.

Sem intimidades - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO


O Estado de S.Paulo - 16/02

A escrita nasceu da necessidade de não esquecer. O primeiro hominídeo que pensou "preciso me lembrar disto" deve ter olhado em volta e procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era lápis e papel, que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas ideias não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse na memória e no mundo. A história da civilização teria sido outra se, antes de inventar a roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de notas.

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As espécies que não desenvolveram a escrita se valem da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem consultar um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o animal que precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são a memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas mesmo com todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo das cavernas, inclusive, hoje, o "notebook" eletrônico, a angústia persiste.

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O que está aí em cima é o resumo de um texto que escrevi há anos, depois de ter uma ideia para crônica, confiar que bastaria anotar uma frase para me lembrar da ideia - e imediatamente esquecê-la. Eu já havia desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o caso de sonhar com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha experiência era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas desta vez o lampejo foi num lugar seco e anotei a frase: "Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo". Boa, boa. Só que quando sentei para escrever a crônica a frase tinha perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de nada. E não me lembrou de nada até agora, quando, por acaso, a vi escrita num bloco de notas antigo e finalmente me entendi.

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O que eu quis dizer, eu acho, é que é positivo e saudável o ser humano se conhecer, desvendar todo os seus mistérios e exorcizar todas as suas culpas, com ou sem orientação cientifica ou religiosa. Ou será que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja se conhecer, sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo nosso nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas nossas relações com nós mesmos deve haver um certo recato, e cuidado para evitar mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e revolta. Quem sabe o que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos mergulhos de autoconhecimento? Melhor ficar na superfície, que é mais clara e tranquila.

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Junto com a frase anotada anos atrás há outra, também para me lembrar de uma ideia para crônica. A frase é: "O abacaxi é fruta a contragosto". Mas esta eu não tenho a menor ideia do que queria dizer.