domingo, 29 de janeiro de 2012

Bazucas em ação


CELSO MING - O Estado de S.Paulo
Se, em setembro de 2010, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, tinha razões para se sentir ameaçado pela guerra cambial, agora tem muito mais.
Cada qual com suas justificativas, grandes bancos centrais disparam suas bazucas sobre o mercado monetário e, assim, despejam trilhões em moeda forte. Essas justificativas tornam inúteis as reclamações do ministro.
Quarta-feira, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) avisou que os juros ficariam próximos de zero não mais até meados de 2013, mas até o final de 2014. Indica que o dinheiro ficou tão abundante que seu preço (os juros) rasteja. O presidente do Fed, Ben Bernanke, planeja nova rodada de afrouxamento quantitativo.
Essa expressão do jargão financeiro surgiu em 2008, quando o Fed iniciou grande operação de recompra de títulos do Tesouro americano. Esse é um eufemismo criado para disfarçar "emissão de moeda". Além do US$ 1,7 bilhão injetado na compra de ativos privados rejeitados pelo mercado a partir de 2008, o Fed fez duas grandes operações de afrouxamento quantitativo e, no total, recomprou mais US$ 900 bilhões em títulos do Tesouro dos Estados Unidos. O Fed acumula hoje US$ 2,9 trilhões em ativos em seu balanço (veja o Confira).
O Banco Central Europeu (BCE), por sua vez, além de recomprar títulos soberanos num total de 213 bilhões de euros, criou nova linha de financiamento ilimitado para os bancos com prazo de três anos, denominada Operação de Refinanciamento de Longo Prazo (LTRO, na sigla em inglês), a juros de 1% ao ano. Por meio dela, colocou na economia outros 489,2 bilhões de euros no final de dezembro e já agendou repeteco em 29 de fevereiro, quando se espera dos bancos demanda equivalente. Somente nessas duas operações, o BCE poderá ter emitido ao final de fevereiro cerca de 1 trilhão de euros. Até lá, o total de ativos em seu balanço poderá ter saltado para nível acima de 3,2 trilhões de euros.
O objetivo desses grandes bancos centrais é evitar o colapso do crédito e impedir o naufrágio de um Titanic bancário, capaz de produzir um tsunami.
Não há sinal de que esse mundaréu de dinheiro provocará inflação. Nos países de economia madura, a atividade econômica passa por longa fase de dormência, como ursos ao longo do inverno.
Mas são outros efeitos colaterais que tiram o sossego do ministro Mantega. Essa superliquidez provoca desvalorização das moedas fortes. E essas desvalorizações podem não ser visíveis por quem acompanha as cotações entre as duas moedas, porque ambas parecem relativamente niveladas. Estão baixando, como barcos na maré vazante. No entanto, é inevitável que o grande volume de moeda provoque a valorização do real (baixa do dólar) no câmbio interno.
Esse efeito não é passageiro. Como o Fed promete juro zero por mais três anos e o BCE concede esses megafinanciamentos por três anos, os mercados permanecerão inundados de moeda barata pelo menos até final de 2014 - ou seja, quando termina a atual administração Dilma.
Não será com rodinho e pano de chão que Mantega evitará a inundação de moeda estrangeira no Brasil. E não serão suas denúncias que reverterão a ação expansionista dos grandes bancos centrais.

A “solução final” do Pinheirinho


RUTH DE AQUINO - 27/01/2012 21h16 - Atualizado em 27/01/2012 21h44
TAMANHO DO TEXTO


Enquanto a terra for colocada como briga entre direita e esquerda, quem perderá serão os já destituídos

RUTH DE AQUINO
Enviar por e-mail
|
Imprimir
|
Comentários
RUTH DE AQUINO  é colunista de ÉPOCA raquino@edglobo.com.br (Foto: ÉPOCA)
Antes que os desabamentos no Rio de Janeiro joguem uma cortina de fumaça na cena mais degradante que vi nos últimos tempos no Brasil – o despejo forçado de milhares de trabalhadores no Pinheirinho, em São Paulo, no dia sagrado de descanso das famílias –, vou falar de desumanidade, egoísmo, cinismo. É pouco? Então vou falar também da violação de nossa Constituição. Que garante o direito à moradia adequada.
O que menos interessa é o jogo de empurra que se seguiu. O Legislativo empurra para o Judiciário e o Executivo, e vice-versa. Um partido empurra para o partido adversário. E vice-versa.
Enquanto a terra rural e urbana for colocada no Brasil como briga entre direita e esquerda, enquanto o deficit de 5,5 milhões de casas populares for jogado na conta do PSDB ou do PT, quem perderá serão os já destituídos. E a sexta economia do mundo continuará a exportar cenas subdesenvolvidas. Políticos intransigentes e sem visão existem no mundo todo. Mas o que se viu no dia 22 de janeiro de 2012 é proibido em países civilizados.
Dois mil policiais, com dois helicópteros, 220 viaturas, 40 cães e 100 cavalos, chegaram ao Pinheirinho quando a comunidade mal acordara, às 6 horas da manhã do domingo. Na casa do eletricista João Carlos Garrido, de 58 anos, “eles entraram falando ‘levanta, vagabundo’ e com um porrete de borracha bateram na minha perna enquanto eu estava dormindo, não me deixaram pegar nada, nem a féria da semana no meu bar”.
Eu me pergunto como as autoridades, pela falta de um cadáver, podem comemorar e “investigar se houve excessos”. A imprensa não foi autorizada a acompanhar a ação, o que é mais um direito violado. Os vídeos em tempo real não foram feitos por jornalistas.
Eram 1.600 famílias, 5 mil moradores numa comunidade com rua, igreja, boteco, praça, quitanda, casa de alvenaria, geladeira, fogão, televisão. E que foram tratados como delinquentes, afugentados por gás lacrimogêneo, cassetetes e balas de borracha.
Não sei se eu fugiria ou reagiria. Provavelmente, com filhos, fugiria. Não se brinca com a truculenta PM do Estado de São Paulo. Famílias foram para igrejas e abrigos da prefeitura. Na quarta-feira, 500 desterrados caminharam uma hora por 4 quilômetros, com crianças, idosos, cachorros e alguns pertences. Eles tinham sido obrigados a sair da Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Na chegada ao abrigo municipal, com telha de zinco e muito calor, uma grávida de três meses desmaiou. Não havia água nos banheiros. A Defensoria Pública abriu ação contra a prefeitura pedindo a retirada das famílias por falta de condições. Como o Estado vai garantir a escola, a saúde e o emprego de uma comunidade dispersada à força e sem teto?
O governo de Geraldo Alckmin em São Paulo e a prefeitura de Eduardo Cury, de São José dos Campos, ambos do PSDB, terão de conviver, em pesadelos, com sua responsabilidade sobre o drama dos retirantes do Pinheirinho, despejados de casas que habitavam havia oito anos.
Enquanto a terra for colocada como briga entre direita e esquerda, quem perderá serão os já destituídos 
O Judiciário estadual de São Paulo também poderá refletir sobre a “reintegração de posse”. A juíza ignorou duas premissas. A primeira é que a propriedade não pode ser definida apenas por seu valor econômico, mas também por sua função social. Quem diz isso não sou eu, é a Constituição. Os despejados não tinham nenhuma alternativa de teto. A juíza os colocou no olho da rua. A segunda premissa eram as negociações, ainda em curso. A atitude mais sensata seria perguntar ao prefeito, ao governador, à presidente se tinham sido esgotadas todas as opções.
É uma novela de fracassos. A ocupação irregular começou em 2004. Foi permitida pelas autoridades. Não era área de risco. O terreno de 1 milhão de metros quadrados e R$ 180 milhões pertence ao megaespeculador Nagi Nahas, que deve à prefeitura R$ 16 milhões. Tanto em 2005 quanto agora, em janeiro, o Ministério das Cidades ofereceu recursos para São José dos Campos tornar o terreno público, urbanizar e regularizar a situação dos moradores. A oferta foi ignorada pela prefeitura.
A relatora da ONU Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista, solicitou o fim imediato do cerco policial do Pinheirinho e a retomada de negociações para reassentar as famílias. “Se o Brasil quer virar gente grande, não pode só virar rico, precisa voltar à civilização e dispensar tratamento digno a todos os cidadãos”, diz Raquel.
Todos cumpriam ordens no Pinheirinho. Lavam as mãos, como numa guerra. Agora, prometem cadastrar “os desabrigados”, ampliar as moradias populares em São José dos Campos, incluir as famílias no Minha Casa Minha Vida. Isso deveria ter sido feito antes.
Sob os escombros do Pinheirinho, pode não haver corpos, mas havia vidas. Era essa “a solução final” que o Estado brasileiro buscava?

A revolução da conectividade na China


Com cada vez mais pessoas ligadas à internet, país asiático experimenta transformação que terá implicações sociais, políticas e econômicas


29 de janeiro de 2012 | 3h 09
STEPHEN S. ROACH - O Estado de S.Paulo
Um país que, historicamente, pode ser considerado o mais fragmentado do globo, a China hoje está se unificando de uma maneira jamais vista antes por causa de uma nova conectividade.
A comunidade da internet no país está se expandindo rapidamente, com profundas implicações para a economia chinesa, sem falar nas normas sociais e no sistema político. Esse gênio não poderá ser colocado de volta na garrafa. Uma vez conectado, não existe possibilidade de retorno.
O ritmo de transformação é de tirar o fôlego. De acordo com o site Internet World Stats, o número de usuários da web na China mais do que triplicou desde 2006, chegando a 485 milhões em meados de 2011. Além disso, essa corrida para a conectividade está longe de terminar. A partir de meados de 2011, apenas 35% da sua população de 1,3 bilhão de pessoas estava conectada à web - um porcentual muito distante dos índices de penetração de 80% observados na Coreia do Sul, Japão e EUA.
Na verdade, com o custo da conexão à internet caindo drasticamente e com a urbanização e a renda per capita melhorando de modo consistente, não é insensato esperar que o acesso à web na China supere a faixa dos 50% em 2015. O que será equivalente a adicionar cerca de três quartos de todos os atuais usuários de internet nos Estados Unidos.
E também não podemos dizer que os usuários de internet na China acessam a rede esporadicamente. Em consonância com o que o estudioso da rede social Clay Shirky qualificou como propensão da sociedade a buscar o "superávit cognitivo" incorporado nas atividades baseadas na internet, dados de levantamentos feitos pelo China Internet Network Information Center (o centro de informações sobre a internet no país) sugerem que os cidadãos chineses ligados à rede passam em média 2,6 horas por dia online - uma hora a mais do que o cidadão médio chinês entre 15 e 49 anos passa frente à TV.
Os microblogs da China, ou as redes sociais, cuja utilização tende a ser a mais intensa, contavam com aproximadamente 270 milhões de usuários no fim de 2011. E existe muito espaço para esse número crescer. Em todo o mundo, 70% de todos os usuários de internet estão envolvidos hoje em alguma forma de microblog, o segmento que mais cresce na rede. Na China, esse porcentual é de apenas 55%.
Escala. Quando fazemos uma análise da China, é sempre fácil nos deixarmos levar pelos números - especialmente aqueles que envolvem o tamanho descomunal do país. Mas a verdadeira mensagem nesse caso tem a ver com as implicações da conectividade, não apenas com a escala.
Uma implicação chave é o potencial da internet para ter um papel significativo na emergência da sociedade de consumo na China - um imperativo estrutural crítico para uma economia há muito tempo desequilibrada. Com a conectividade, deve surgir uma consciência nacional em termos de hábitos de consumo, gostos e marcas - características essenciais para qualquer cultura consumista.
O porcentual de consumo na China, inferior a 35% do PIB, é menor do que o registrado em qualquer país de porte. O aumento do uso da internet pelos chineses poderá contribuir para as iniciativas para estimular o consumo constantes do 12.º Plano Quinquenal do governo, recentemente implementado.
A internet deve também levar a comunicações mais abertas e mais livres, a uma mobilidade maior, à difusão rápida e transparente da informação e, sim, à individualidade. A liderança da China tem expressado cada vez mais sua preocupação com as crescentes desigualdades que podem, de outro modo, impossibilitar o desenvolvimento do que consideram uma "sociedade mais harmoniosa". A conectividade online pode ser um instrumento poderoso para ajudar a China a se congregar e atingir essa meta.
Finalmente, a internet tem potencial para ser um instrumento de mudança política. Esta não é uma consideração inconsequente no tocante a qualquer país após a Primavera Árabe, que foi auxiliada em muitas países (especialmente Tunísia e Egito) pela mobilização possibilitada pela rede.
Embora uma reforma da China como Estado de partido único sempre tenha sido vista como uma meta importante na China moderna - desde a chamada Quinta Modernização de Wei Jingsheng, nos anos 70, até os discursos recentes do premiê Wen Jiabao -, grandes avanços têm sido limitados. É provável uma mudança à medida que a China adota a internet?
O país não é exceção quando se trata de colocar a liderança, a responsabilidade e capacidade de resposta como condições de estabilidade política. A comunidade da internet na China, que se expande rapidamente, por várias vezes despertou a consciência nacional para problemas locais difíceis. Isso ficou evidente após o terremoto em Sichuan, em 2008, nas violências étnicas em Xinjiang, em 2009, e no acidente com um trem de alta velocidade em Wenzhou, em 2011.
Como a Primavera Árabe demonstrou, a internet pode rapidamente transformar incidentes locais em situações explosivas - tornando a conectividade uma fonte potencial de instabilidade e agitação política. Mas esse tem sido o caso apenas em países governados por regimes autocráticos muito impopulares.
A liderança chinesa, pelo contrário, é vista com muito mais simpatia pela sociedade. Sua resposta rápida e direta aos incidentes em Sichuan, Xinjiang e Wenzhou são exemplos importantes. Líderes do alto escalão do Partido, especialmente o premiê Wen Jiabao, reagiram de maneira rápida e enfática, bastante eficaz para conter os grandes temores manifestados na internet.
Nada disso nega o lado obscuro da explosão da internet na China - a saber, a censura generalizada e restrições à liberdade de expressão do indivíduo. A equipe da SkyNet (que, segundo especulações, chega a 30 mil pessoas) é a maior força policial cibernética do mundo.
Além do que, embora a China não seja a única a policiar a internet, a autocensura por parte dos maiores portais do país amplifica o monitoramento e a fiscalização oficial. Restrições impostas recentemente aos microblogueiros - especialmente a negação de acesso àqueles que usam pseudônimos e não podem ser rastreados - aumentaram as preocupações no tocante à liberdade dos chineses na internet. Naturalmente, tais restrições, se, de um lado, limitam potencialmente a expressão individual, por outro, inibem ataques de vigilantes implacáveis disfarçados.
Filtrada ou não, uma China historicamente fragmentada hoje tem uma rede viável, que se expande rapidamente. O poder dessa rede, especialmente quando a mudança econômica, social e política está envolvida, é difícil de prever. Mas a conectividade dá uma nova dimensão de coesão para o país. O que só pode acelerar a velocidade do seu extraordinário desenvolvimento. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO   STEPHEN S. ROACH, PROJECT SYNDICATE / NEW HAVEN, PROFESSOR NA UNIVERSIDADE DE YALE, DIRETOR DO BANCO MORGAN STANLEY ASIA