domingo, 8 de abril de 2018

Ladeira da Memória nem parece abrigar o primeiro monumento da cidade Teoria da tolerância zero diz que uma vidraça quebrada é um convite ao banditismo, FSP


A Ladeira da Memória, no centro de São de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress
Durante os primeiros séculos da história de São Paulo, viajantes que chegavam à vila, antes de atravessar o rio Anhangabaú, paravam para dar de beber a suas tropas na fonte de água da Ladeira do Piques. Era uma referência tão forte que acabou por receber o primeiro monumento da história da cidade. Antes de qualquer busto de rei ou santo, um obelisco de pedra vermelha foi construído ali, inaugurado em 1814, como uma homenagem à memória da cidade.
Nos dois séculos seguintes, o local passou a ser chamado de Ladeira da Memória enquanto uma série de mudanças no tecido urbano o deixaram meio esquecido. Se antes era passagem obrigatória, agora poucos andam ali: pedestres descem e sobem a escada rolante embutida na vizinha estação de metrô; os autos usam as vias laterais para chegar ao Viaduto do Chá ou à av. Nove de Julho.
Quando São Paulo fez 450 anos, em 2004, muita gente notou que o lugar, que deveria honrar o passado da cidade, estava abandonado e sujo.
Apaixonado pelo Centro, o empresário Antônio Ermírio de Moraes (1928-2014) manteve até o fim da vida um escritório a poucas quadras da Memória. Em 2004, ele doou à cidade o dinheiro necessário à recuperação do monumento, R$ 330 mil (hoje correspondentes a R$ 750 mil).
Ao reinaugurar o conjunto, no ano seguinte, o então prefeito José Serra disse: o obelisco e seus 200 anos “neste momento nos olham e exigem de nós esse compromisso com a nossa cidade, com o nosso Centro, com as nossas tradições, com a nossa memória”.
Nada disso aconteceu: os dois séculos e o investimento se desmancharam no ar rapidamente. Menos de um ano depois, o chafariz, com equipamentos quebrados, voltou a ser banheiro a céu aberto. E permanece assim. Hoje, obelisco e a Ladeira estão sujos e pichados, cheirando a mijo, e a fonte, sem água.
Segundo a teoria da “tolerância zero”, uma vidraça quebrada é um convite ao banditismo, induz ao crime. Imagine então que mensagem passa uma cidade cujo monumento mais antigo vive entregue ao deus dará, como também todos os outros?
O tratamento que damos à Ladeira da Memória nos condena à insegurança e à amnésia.
Leão Serva
Ex-secretário de Redação da Folha, é jornalista, escritor e coautor de 'Como Viver em SP sem Carro'.

Nenhum comentário: