domingo, 29 de abril de 2018

Jovem demais pra envelhecer, Antonio Prata FSP


Jovem demais pra envelhecer

Quase aos 30 você percebe que o jogo continua o mesmo, mas você mudou de time


SÃO PAULO
Eu já tinha cruzado a barreira dos 20 havia vários anos, trabalhava, pagava as contas, morava sozinho, mas continuava me vendo como adolescente e a coleção de latinhas seguia na estante atrás da minha cama. Até que, num Pão de Açúcar 24 horas, lá pelas duas da manhã de uma quarta, empurrando um carrinho com pão integral e Sapólio, cruzei com uns garotos e garotas de preto, cabelos estranhos, comprando Doritos e Smirnoff Ice.
Meu reflexo foi achar-me um deles, mas num segundo momento percebi que não entendia bem suas roupas, não captava o significado daquelas franjas. Eles compravam Smirnoff Ice e Doritos: eu, pão integral e Sapólio. Eles estavam querendo ficar bêbados sem passar mal. Eu estava preocupado com o sistema digestivo e o asseio do fogão.

Ilustração
Ilustração - Adams Carvalho/Folhapress
Não havia como negar, habitávamos faixas etárias diferentes. Voltei pra casa e guardei a coleção de latas no fundo de um armário. O choque é compreensível. Durante os primeiros 20 e tantos anos de vida o panorama humano que se apresenta aos nossos olhos é aparentemente estático. Você chega no mundo e os adultos já estão aí. Eles envelhecerão, mas continuarão a ser mais ou menos como já eram quando você surgiu. (Uma geração que está na faixa dos 50 não faz uma revolução cultural ao passar pros 60).
E as crianças, bom, crianças são sempre crianças. (Na quinta série você não olha a nova turma do jardim de infância e diz, “Cara, olha que apropriação bizarra que esses moleques fazem da gangorra!” ou “Eles criaram um significado completamente novo pra pintura com guache!”). Mas chegando perto dos 30, numa madrugada, num supermercado 24 horas, você percebe que o jogo mudou. Ou melhor, o jogo continua o mesmo, você é que mudou de time.
O segundo susto veio em 2008, assistindo ao filme “Apenas o Fim”, do Matheus Souza, com a Érika Mader e o Gregório Duvivier. Se no supermercado eu entendi que não era mais adolescente, no filme saquei que os adolescentes já tinham virado adultos. Já faziam filme e o filme era lindo e eu não entendia metade das referências. (Até o He-Man eu cheguei, mas quando o personagem do Gregório pergunta pra namorada “Qual o seu Pokémon favorito?” eu me senti como um Austregésilo de Athayde perdido na Comic Con).
Pois hoje, voltando do Rio de Janeiro, recebi uma terceira facada de Cronos, esse deus que devora os filhos —mas que, ao contrário do mito, parece preferir nos deglutir não ao nascermos, baby beefs, mas curtidos no dry-age das décadas.
Entrei no avião, sentei na minha poltrona e meus olhos grudaram num cara vindo pelo corredor. Era um cara bem normal. Meio careca, fios grisalhos em cima das orelhas. Barrigudo. Tinha umas rugas nos cantos dos olhos. Um ar cansado. Nada de especial. Por que, então, eu estava vidrado nele? Pois percebi, ó juventude dourada, ó ogivas de queratina, ó lépidos girinos na tépida lagoa do tempo, percebi que aquele sujeito aparentemente velho era mais novo do que eu. É isso aí: cheguei a uma idade em que os jovens já estão velhos. 
Fiquei mal. Eu me achava novo demais pra ficar velho —e tal constatação, parece, é o principal sintoma da crise de meia idade. Tivesse muito dinheiro, comprava um carro esportivo, mas como a conta corrente não acompanhou a corrente dos anos, só me resta abrir um Smirnoff Ice e, do fundo de um armário, resgatar a velha coleção de latinhas.
Antonio Prata

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