segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Diversidade em trânsito

29 de dezembro de 2013 | 2h 07

DEBORA DINIZ* - O Estado de S.Paulo
"Passagem mais cara que maconha", "odeio bala de borracha, joga um Halls" ou "mais felicidade e menos Feliciano" foram alguns dos cartazes do povo nas ruas. Críticos ou bem-humorados, eles animaram as multidões que marcharam pelas capitais. Os números impressionam - em um único dia, mais de cem cidades se movimentaram, e 1,5 milhão de pessoas caminharam, lançando-se em uma onda de contestação ainda à espera da historiografia. Há quem descreva o povo nas ruas como o "gigante que acordou"; outros contestam, mostrando que trabalhadores, estudantes, gays ou mulheres nunca adormeceram ou deixaram de ocupar as ruas para protestar. A verdade é que as marchas urbanas parecem ter sido um prólogo do que se anuncia para 2014 com as eleições e o futebol.
Mas pelo que o povo marchava? As discussões sobre o agendamento político das mobilizações atiçaram os especialistas, mas as conclusões são frágeis. Nem partidos políticos nem movimentos sociais ganharam protagonismo nacional. Os líderes se faziam nas redes sociais, mas se organizavam e desapareciam nas ruas. As marchas urbanas nos confundiram - rostos da periferia se misturaram ao que foi descrito como o de "famílias", pessoas que pareciam conhecer as ruas pela primeira vez. E, para nossa angústia, a cada dia tínhamos que aprender como descrever esses novos sujeitos da rua e seus gestos - "vândalos", "baderneiros" ou "mascarados" foram alguns dos termos que passaram a antecipar o que víamos. Um dos poucos consensos retrospectivos da política do povo nas ruas reconhece protagonismo do Movimento do Passe Livre (MPL): tarifa zero para o transporte público esteve em todos os cantos do País como uma demanda coletiva dos anônimos.
Não tenho dúvidas de que o transporte é essencial para a garantia de direitos fundamentais. Precisamos de transporte para sobreviver nas cidades: não há saúde, educação ou trabalho sem a garantia de como as pessoas vão mover-se da casa pela rua com destino a algum lugar. Transporte é ônibus, trem, metrô, bicicleta, carro ou qualquer outro instrumento que nos movimente no espaço. Mas é também mover-se apenas com o corpo - caminhar. Entendo que a agenda do MPL tenha sido a tarifa zero por uma resistência à privatização do transporte público, mas a questão política é mais ampla e delicada do que transporte como mercadoria. Sim, essa é uma agenda prioritária, pois enfrenta a ordem econômica que transforma proteções às necessidades em negócio lucrativo: transporte é um meio para nossa sobrevivência, por isso o Projeto de Emenda Constitucional de autoria da deputada Luiza Erundina (PSB-SP) prevê transformá-lo em um direito social para nossa ordem política. Após os dias de povo na rua, o projeto caminha com pressa na Câmara dos Deputados. Falta agora a corrida pelo Senado Federal para ser considerado um novo direito social no País.
Mas transporte não é o mesmo que mobilidade. Mover-se livremente é uma necessidade; o transporte é uma forma de proteção a essa necessidade. A cidade tem barreiras que nem mesmo o passe livre será capaz de transpor - a discriminação é uma delas. Mulheres andam nos vagões cor-de-rosa dos metrôs em busca de segurança, pois somente segregadas pela geografia do medo poderiam transitar para escola, trabalho ou lazer em horários considerados impróprios à solidão feminina na cidade. Gays ou travestis temem as grandes avenidas: é lá que são surrados ou mortos pela homofobia que não suporta vê-los movendo-se livremente pelo espaço público. Não é apenas o transporte que precisa ser livre; a mobilidade deve ser protegida da discriminação aos corpos subalternizados.
O povo da rua falou de transporte como se as necessidades econômicas fossem universais. O passe livre garante o transporte, mas não o direito à mobilidade. Para se mover pela cidade, as mulheres precisam não ter medo da violência. Por isso, as necessidades econômicas são sempre sociais - nossos corpos não são abstrações que demandam as mesmas proteções do Estado. Mulheres, além de transporte, precisam de segurança. E não só para se mover, mas também para permanecer no espaço público sem medo da discriminação. Logo após o movimento do povo nas ruas, duas mulheres foram recolhidas pela polícia por se beijarem em uma praça durante um evento religioso. O dono da praça e guardião da ordem foi o deputado que anunciou como presente de Natal a despedida da liderança da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Se em retrospectiva precisamos reconhecer que os homens já foram os donos da praça, nosso desafio para o futuro é resistir à nova tentativa de posse do espaço público. Nem o capitalismo dos homens nem o patriarcalismo dos corpos poderá impedir a mobilidade como um direito social.   *É ANTROPÓLOGA,  PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB), PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS, GÊNERO

Estilo ou Substância (sobre o papa Francisco)

A guinada colossal do modo de vida do papa Francisco em relação a Bento XVI corresponderá a uma mudança da Igreja, da estrutura do Vaticano e suas relações com o mundo secular?

28 de dezembro de 2013 | 16h 00

Paolo Flores d'Arcais
O papa Francisco foi eleito pela revista Time o Homem do Ano "pela rapidez com que conquistou a imaginação de milhões de pessoas que haviam abandonado toda esperança em relação à Igreja". Ratzinger também recebeu um reconhecimento análogo: não da Time, mas da revista Esquire, em 2007, como accessorizer of the year, ou seja, o homem que usava os acessórios mais elegantes do planeta. Esquire é uma publicação masculina mensal cuja apresentação é um programa em si: "Guia para homens que procuram uma vida mais cheia, rica, informada e compensadora. Estilo, etiqueta, dinheiro, cultura e culinária". A escolha deveu-se aos mocassins vermelhos extremamente macios de Ratzinger, feitos sob medida por um dos sapateiros mais famosos e caros do mundo (com os quais, aliás, ele presenteou o papa), o italiano Adriano Stefanelli de Novara, que atende também Silvio Berlusconi. Os dois reconhecimentos revelam claramente a diferença abissal de estilo dos dois papas.
Se 'a Cúria é a lepra do papado', por que Bergoglio vai santificar o papa que a moldou? - Tiago Queiroz/Estadão
Tiago Queiroz/Estadão
Se 'a Cúria é a lepra do papado', por que Bergoglio vai santificar o papa que a moldou?
Aliás, Bento XVI já fora notado e admirado por usar o camauro, um tipo de gorro muito utilizado pelos papas da Renascença, de veludo vermelho debruado com arminho branco ou plumas de cisne; o saturno, chamado chapéu romano, vermelho com bordados dourados; e a mozzetta, uma pelerine de veludo vermelho às vezes debruada com arminho.
Francisco, ao contrário, caracterizou-se imediatamente por recusar a cruz de ouro, substituída por uma de ferro; renunciar ao apartamento em São Pedro (ele vive no alojamento de Santa Maria, uma espécie de pousada vaticana, com outras dezenas de pessoas); usar um velho Renault 4 bem rodado (300 mil quilômetros), presente de um pároco da Província de Verona, com o qual ele se desloca no Vaticano; e, recentemente, por ter comemorado o aniversário com três sem-teto. Enfim, por levar uma vida que toma a sério o voto de pobreza que fazem, em tese, todos os sacerdotes ao se ordenarem.
Portanto, a pergunta que paira no ar é: a essa guinada colossal do estilo de vida do pontífice corresponderá uma guinada do governo da Igreja, das estruturas da Cúria, da renovação pastoral e doutrinal, das relações com o mundo secular? É o que se indagam os católicos, cada vez mais divididos entre os que gostariam de continuar a cruzada de Ratzinger contra o iluminismo e as liberdades civis em expansão no Ocidente (aborto, eutanásia, casamento homossexual) e os que esperam de fato a conversão da Igreja à pobreza e ao espírito do Evangelho. É o que se indagam os cristãos de outras confissões, eles também divididos entre o populismo dos milagres dos pregadores evangélicos da televisão (que experimentam um verdadeiro boom na América Latina) e as esperanças ecumênicas dos protestantes europeus e dos greco-ortodoxos do mundo eslavo e oriental. É o que se indagam os não crentes, entre os quais é enorme a esperança (quase certamente excessiva) no que se refere à vontade de Francisco de abrir um autêntico diálogo. Mas certamente também os expoentes das outras grandes religiões, os muçulmanos em primeiro lugar, interessados principalmente em ampliar o espaço e o peso da própria fé e o reconhecimento de seus costumes (familiares e sexuais) nas legislações e na prática jurídica das sociedades secularizadas.
Em suma, estilo ou substância? A pergunta é em parte enganadora. O estilo de um papa já é substância, tem efeitos práticos. Por outro lado, em entrevista ao jornal La Stampa, de Turim, publicada no dia 15, o papa Bergoglio, consciente disso, ressalta, pragmático: "Um cardeal idoso me disse, meses atrás: ‘O sr. já começou a reforma da Cúria com a missa diária em Santa Marta... A reforma se inicia sempre com iniciativas espirituais e pastorais, mais que com mudanças estruturais’".
Numa longa entrevista à revista Civilização Católica, dos jesuítas, depois de um apelo à doutrina da Igreja a respeito dos "valores não negociáveis", como os definia Ratzinger (em outras palavras, o sexo e a bioética), Francisco afirma que "os ensinamentos, tanto dogmáticos quanto morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não é obcecada pela transmissão desarticulada de uma multidão de doutrinas que devam ser impostas com insistência".
Mas enquanto permanecem essenciais, na atitude cristã, a caridade e o perdão, e, aliás, a ternura (talvez a palavra que o papa mais usou até hoje), é inevitável que sua crítica enérgica à "obsessão" dogmática seja entendida como uma tentativa de despi-la de legitimidade por aqueles que fizeram dos "valores não negociáveis" uma bandeira e uma cruzada. Por exemplo, setores consideráveis da conferência episcopal dos Estados Unidos.
De fato, as consequências práticas foram imediatas. No dia 10 de setembro, a Câmara do Estado de Illinois aprovou a lei que consente o casamento entre homossexuais, por 61 votos, apenas 1 a mais que a maioria exigida. Graças também à intervenção do influente presidente da Câmara, o católico Michael Madigan, anteriormente contrário, que justificou da seguinte maneira a mudança do seu voto: "Quem sou eu para julgar que pessoas que descobriram ser gays e vivem um relacionamento rico de harmonia deveriam permanecer na ilegalidade?". Ele reproduziu exatamente as palavras de Francisco aos jornalistas, retomadas e "canonizadas" pelo papa na entrevista ao Civilização Católica. Graças às palavras do papa, Madison foi decisivo em convencer pelo menos outros cinco colegas, inclusive a republicana Linda Chapa LaVia, que declara: "Como católica que segue Jesus e o papa, para mim está claro que a essência da doutrina católica é o amor, a compaixão e justiça para todos, indistintamente".
Não que o papa Francisco goste necessariamente desses "efeitos colaterais" de suas palavras. Em 2010, quando era arcebispo de Buenos Aires, deu pleno apoio à "manifestação contra a possível aprovação de uma lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo" organizada pelos leigos católicos. Ressaltou que a "benevolência" em relação a quem queria introduzi-la não poderia permitir que se esquecesse o fato de que "a aprovação do projeto de lei implicaria um real e grave retrocesso antropológico", pois "a essência do ser humano tende à união do homem e da mulher como realização recíproca, como atenção e assistência, como caminho natural para a procriação". Em suma, e em termos mais diretos: o casamento homossexual (e a homossexualidade enquanto tal) é contrário à natureza.
Numa entrevista ao agnóstico Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repubblica, Francisco afirmou que "a Igreja não tratará de política ... A Igreja nunca irá além da tarefa de exprimir e difundir seus valores, pelo menos enquanto eu permanecer aqui". Acaso significará que, como bispo de Roma, ele não procurará mais influir na legislação civil, contrariamente ao que fez quando foi bispo de Buenos Aires? Ou a famosa "ambiguidade" jesuítica, que enchia de indignação cristã o afável Blaise Pascal, permitirá que ele contradiga com fatos as promessas contidas em suas palavras ?
Se as palavras do papa Francisco soam claras, os fatos, nem tanto. Se ele parece aplicar perfeitamente o que diz Mateus 5,37 - "Seja o seu sim, sim, e o seu não, não, porque o que passa disso vem do Maligno" -, não pode esquecer Lucas 6,43-44: "Não há árvore boa que dê fruto ruim, nem árvore doente que dê fruto bom; cada árvore se conhece pelo fruto". Portanto seu pontificado não será julgado pelas palavras, ainda que cristalinas do ponto de vista evangélico, mas pelos atos (e pelas omissões).
Francisco reiterou a Scalfari que "o ideal de uma Igreja missionária e pobre continua mais que válido. Essa, aliás, é a Igreja que pregaram Jesus e seus discípulos". Portanto os católicos, e em primeiro lugar os sacerdotes, terão de ser "pobres entre os pobres", enquanto "o chamado liberalismo selvagem continua tornando os fortes mais fortes, os fracos mais fracos e os excluídos, mais excluídos", sendo assim incompatível com o cristianismo. Conceitos solenemente reafirmados na exortação apostólica Evangelii Gaudium.
Por que então as autoridades financeiras do Vaticano, nomeadas recentemente pelo novo papa, se recusaram a fornecer à receita italiana os nomes de alguns milhares de cidadãos que, com certeza, utilizaram a fronteira da Rua Leão IV e as contas correntes do Instituto para as Obras da Religião (IOR)para sonegar cifras colossais em impostos? Em suma, as novas nomeações, aparentemente, não prenunciam uma operação de transparência que lance alguma luz sobre os verdadeiros crimes de natureza financeira e fiscal (inclusive lavagem de dinheiro) perpetrados durante anos sob a proteção do IOR. Prenunciam apenas um comportamento mais correto no futuro, que evite embaraçosas sanções internacionais e, enquanto isso, permita redistribuir de maneira mais equilibrada o poder financeiro vaticano entre a ala americana dos Cavaleiros de Colombo (Carl Anderson, Peter Brian Wells e a professora Mary Ann Glendon) e a ala europeia próxima aos Cavaleiros de Malta (cardeal Jean-Louis Tauran, o atual presidente do IOR, Ernst von Freyberg, o bispo espanhol Juan Ignacio Arrieta Ochoa de Chinchetru, membro da Opus Dei).
O papa prometeu medidas rigorosas na questão da pedofilia, mas a única verdadeira guinada seria a obrigação dos bispos de denunciar todo caso suspeito às respectivas autoridades civis, entregando o assunto a César, ou seja, à polícia e aos magistrados, e não a Deus, isto é, à severidade ou à caridade dos episcopados. Mas uma decisão nesse caso específico ainda está demorando.
No "não fazer política" estará incluída a confirmação da beatificação dos 552 mártires espanhóis justiçados pela República da Espanha durante a guerra civil desencadeada por Francisco Franco? Mártires que, na videomensagem transmitida por ocasião da cerimônia de beatificação coletiva de Tarragona, Francisco apontou como exemplo "para os que querem ser concretamente cristãos, cristãos pelas obras, não pelas palavras; e não ser cristãos medíocres, cristãos com um verniz de cristianismo, mas sem substância... cristãos até a morte". A citação suscitou indignação da monja beneditina Teresa Forcades, teóloga muito conhecida, e de todos os católicos espanhóis democratas. E, se "a Cúria é a lepra do papado" (como disse na entrevista a Scalfari), por que Francisco insiste na santificação de Karol Wojtyla, que moldou essa "lepra" a sua imagem e semelhança em um pontificado de mais de um quarto de século?
Em suma, o papa Francisco, Jorge María Bergoglio, é ainda um enigma. Vamos esperar. Cada árvore se conhece pelo fruto. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
PAOLO FLORES D’ARCAIS, FILÓSOFO E JORNALISTA ITALIANO, É EDITOR DA REVISTA MICROMEGA E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ETICA SENZA FEDE (EINAUDI) 

Pega organizado

Com a aproximação da Copa, uma opção para o problema da violência nos estádios e saques na Argentina seria recrutar os valentes dos dois lados e deixá-los brigar

28 de dezembro de 2013 | 16h 00

Luis Fernando Verissimo
Uma coisa em comum entre os brigões na arena de Joinville e os saqueadores na Argentina, como se viu nas imagens que correram o mundo: todos pareciam ter idade para o serviço militar. Uma solução para o problema da violência, não só nos estádios e nos saques a lojas, portanto, seria recrutá-los, armá-los e soltá-los num campo de batalha, para se enfrentarem e queimarem o excesso de energia. Em outras palavras, a solução para o problema da violência, lá e cá, é uma guerra com a Argentina. Com balas de borracha, claro, para limitar o número de baixas e garantir que a guerra durasse muito tempo.
História. João Saldanha teria deixado a seleção porque Médici interferia - Tiago Queiroz/Estadão
Tiago Queiroz/Estadão
História. João Saldanha teria deixado a seleção porque Médici interferia
As cenas lamentáveis de Joinville, que são repetidas sem parar na TV para que possamos lamentá-las várias vezes, foram o que aconteceu de pior no futebol brasileiro em 2013. É verdade que alguns jogos chegaram perto, e o ano acabou com outras barbaridades inexplicáveis, como o campeão de um ano só conseguir escapar do rebaixamento no ano seguinte por uma decisão judicial. A queda do Fluminense, do píncaro quase ao porão em apenas 12 meses, simbolizou, de certa maneira, a inconstância do futebol brasileiro. Evidente, acima de tudo, na dança dos técnicos, cujas idas e vindas entre clubes perdedores atrás de salvadores providenciais lembrou um minueto de mancos. Inexplicável, também, foi a ausência de um grande clube paulista entre os quatro primeiros no Brasileirão, o que não acontecia (imagino eu, estou chutando) há muito tempo. Outra prova de inconstância. Se vivesse no Brasil de hoje e gostasse de futebol, Dante passaria pulando do inferno ao paraíso e de volta ao inferno, sem tempo para estágios intermediários no purgatório, e sem entender nada.
Voltando às cenas lamentáveis de Joinville: sempre que via pela TV um jogo do Atlético Paranaense em casa eu ficava impressionado com sua torcida. Era toda de escandinavos. As câmeras raramente focavam alguém que não parecesse um saudável descendente de nórdicos loiros. Em nenhuma outra aglomeração humana no Brasil se veria a mesma quantidade de bochechas rosadas. E de repente descobrimos que a torcida do Atlético Paranaense tem seu lado obscuro, facções beligerantes, organizadas perigosas - como o Vasco ou qualquer outro grande clube brasileiro. Eu é que pensei que tivesse descoberto um público de badminton em meio ao rude universo do futebol. Devo desculpas à torcida do Atlético Paranaense por tê-la interpretado errado.
A proximidade da Copa nos lembra que todas as Copas têm sua história, e a preparação para as Copas também. Num país em que todo o mundo tem opinião sobre futebol, o processo de escolha do técnico, seleção de jogadores e treinamento tem tanta torcida e provoca tanta controvérsia quanto as próprias Copas. Por exemplo: o preâmbulo da Copa de 66. O Brasil tinha vencido em 58, na Suécia, e de novo em 62, no Chile. Os preparativos para a Copa de 66, na Inglaterra, não eram preparativos para apenas mais uma Copa, portanto. Eram preparativos para um tricampeonato mundial. Criou-se um clima de entusiasmo e expectativa tamanho que levou à loucura a CBD, que era como se chamava então a CBF. Um dos desmandos da CBD foi convocar 47 jogadores para seleção de 66. Dava para formar quatro times, e foi o que fez o técnico Vicente Feola. Os times cumpriam roteiros diferentes, fazendo jogos de exibição pelo Brasil inteiro. A desorganização era flagrante. Mas quem precisava de organização, se tínhamos Pelé e Garrincha no time que viajou para a Inglaterra? No fim todos, inclusive Pelé e Garrincha - que nunca mais jogaram juntos -, fracassaram. Foram derrotados tanto pela euforia desmedida da preparação e a loucura da CBD quanto pela Hungria e Portugal, os times que nos liquidaram. Do último jogo do Brasil na Copa de 66, valendo sei mais lá o quê, ficou a imagem de Pelé sendo literalmente caçado em campo pelos portugueses. Eles nunca pediram desculpa.
De 66 para cá, as preparações para as Copas têm sido, no mínimo, mais racionais. Houve, é verdade, a confusão com o João Saldanha antes da Copa de 70. Segundo a lenda, Saldanha teria reagido à interferência do então presidente Médici na formação do seu time e se demitido. Se foi assim ou não foi, não sei. Zagalo, que substituiu o Saldanha, também não escalou o Dario, como, dizem, queria o Médici. Poder-se-ia fazer um compêndio dos mitos e das curiosidades que cercaram os preparativos do Brasil para as Copas, desde a suposta letargia do Vicente Feola, que dormiria durante os jogos em 58 enquanto Nílton Santos, Didi e Zito dirigiam o time, até o que teria realmente acontecido com o Ronaldo antes da final contra a França em 98.
O que nos espera em 2014? As convocações, como sempre, têm sido controvertidas. Estamos numa entressafra de bons jogadores, com as exceções conhecidas, ou temos time? E o Felipão? Vai bem? Não vai? Parece haver um consenso de que ele não é um estrategista, mas é um empolgador, e que tem biografia e estrela. Vamos ver. De qualquer maneira, recomenda-se a quem acredita que o time brasileiro será vitorioso na copa de 14 que não veja muito o atual futebol europeu na TV. Pode provocar pessimismo.
LUIS FERNANDO VERISSIMO É ESCRITOR, CRONISTA E COLUNISTA DO ESTADO. AUTOR, ENTRE OUTROS, DE COMÉDIAS DA VIDA PRIVADA (L&PM) E BANQUETE COM OS DEUSES (OBJETIVA)