Um paciente que, por muito tempo, deu pouca importância aos sintomas de um mal maior e, agora, movido pela urgência, precisa se deitar no divã e passar por um profundo processo de análise. A psicanalista Maria Homem vê assim o Brasil.
Um país com suas subjetividades individuais e coletivas pressionadas por mais de 120 mil mortes causadas pela pandemia do novo coronavírus, longe de conseguir baixar as marcas diárias de vítimas e em meio uma crise política e econômica. É preciso fazer uma escolha que leve à aproximação dos polos que se estabeleceram na vida nacional.
Em meio a esse processo, a crise de conceitos como individualismo e liberdade também nos coloca diante de escolhas e reposicionamentos prementes.
Maria Homem falou à Folha sobre algumas dessas mudanças e os desafios da pós-modernidade.
A pandemia e a quarentena colocam em xeque alguns conceitos como os de liberdade e individualismo. Como lidar com isso? A modernidade toda está embasada na invenção da subjetividade individual. Antes, tínhamos a ideia de sermos parte de um clã, da família, da tradição, de que há um Deus transcendente que sabe o que estou pensando. Grosso modo, você não tinha um espaço de privacidade subjetiva individual, que é uma invenção moderna. É o que vai fundar o Estado democrático de direito, igualmente moderno. Qual o princípio básico? Um sujeito de liberdade e autonomia, cartesiano, kantiano, que diz “penso, logo existo” e “eu sou livre”.
Só que nós estamos numa era de críticas a alguns aspectos dessa modernidade. Estamos quebrando alguns grandes pilares da modernidade, ou ao menos colocando em xeque. A liberdade é do indivíduo? Também. Você quer sair da realidade, injetar, cheirar, fumar, pôr em baixo da língua, beber, tudo o que quiser? Qual é o limite? Não pode fazer isso tendo uma criança para tomar conta, tendo um carro para dirigir, que pode ser uma arma.
A gente tem uma liberdade, a priori inalienável, de ir e vir. Deveria ter, porque também não temos. O capital regula a circulação de pessoas. Também temos grandes narrativas: todos somos iguais perante a lei. É verdade que afirmamos isso, mas não é verdade que realizemos. Estamos há 200, 300 anos tentando executar o projeto iluminista.
A princípio, dentro do quadrado da nação, você pode ir e vir. Mas, mesmo nele, quando você tem um vírus com altíssima mobilidade e que é potencialmente letal, aí temos que fazer o isolamento social. Isso não é contra meu direito.
Eu não sou livre para ir e vir sem ser regulado pelo Estado? Sim, seria. Por isso que é interessante discutir essa premissa da liberdade individual. É um grande pilar da modernidade. Eu sou livre, autônoma e racional. Não é Deus que vai dizer vá para cá ou vá para lá, não é uma guerra entre deuses e demônios para te fazer ser gay ou heterossexual, ser rei ou não ser. É Hamlet. É a grande questão shakespeariana: “Ser ou não ser, eis a questão”. Isso é o sujeito moderno por excelência.
Isso o século 19 já quebra. Freud cifra o sujeito ultramoderno com a ideia de que não temos plena consciência. Não somos movidos por aquilo que a gente deseja, porque o desejo é sobretudo inconsciente. Desejo, inconsciente, pulsão. É a crítica da subjetividade moderna, é a subversão do “cogito” cartesiano. Você é livre? Não. É escravo? Não, você é livre e escravo. Não é totalmente livre, porque age de acordo com seus impulsos basais. E também é identificado ao outro, é submetido aos imperativos do outro que você introjeta. Superego, “Úber-ich”. Todos carregamos um pedaço que é do outro dentro da gente.
Agora, vou andar cem anos, de Freud até hoje, sobretudo com as redes sociais que dizem o que a gente deve ser ou não e o que os outros aprovam ou não [às vezes] de uma maneira superegoica como a cultura do cancelamento. Então a gente vai ser o quê? O que a gente acha, o que o outro acha? É o que eu acho que você acha? O que eu vou postar? O que eu acho que você acha que eu vou gostar? E aí vai, num movimento infinito de suposições, de ideias egoicas que estão sempre fora de mim. E chega um momento em que eu nem sei mais se quero ou não ir para a rua. Nem sei o que eu quero, do que eu gosto, o que eu posso, quem sou eu.
Se você no seu país, se colocou como adulto —a Nova Zelândia é o grande exemplo, governando por uma mulher que não precisa de um estratagema ficcional de governo calcado na fantasia e na mentira, como no Brasil e nos EUA—, nesse momento que você tem um problema, não pode tudo.
E se você não tinha acreditado no Freud, agora observe. Se eu vou mostrar, se quero mostrar, isso é todo esse jogo narcísico das redes sociais. E, se quer mostrar e quer que eu veja, que eu tenha inveja, ótimo.
Você é o sujeito pós-moderno por excelência, que é uma máquina de produzir inveja no olhar do outro para ter o seu valor reconhecido. A gente ampliou a lógica do reconhecimento. Não é sua família, é uma massa anônima que te dá “like”.
Isso nos torna ainda menos livres do que éramos há cem anos? Nesse aspecto eu diria que sim. A gente se complicou. Esse avatar que você constrói na rede é libertador? Não, não diria isso. Ou, então, deixaria essa pergunta para o leitor. Quão livre você é, tendo que construir continuamente um avatar para ser amado? Estamos mais livres do paradigma da demanda de amor, de que um Deus nos ame e nos aceite no Juízo Final? Sou otimista? Não diria isso... A gente está é inventando mais trabalho.
Então, no fim, só os preguiçosos serão salvos? [Rindo] E os tolos... Não sei se tenho sorte. Eu apanho, claro. Mas eu tenho um grande privilégio de ser muito livre para falar, pensar... A menina de dez anos, o estupro, o aborto, o que o Jair falou... Tem tanto material no Brasil que, se você deixar, não para de trabalhar.
Em que medida o isolamento social favorece o acirramento da polarização que vivemos? A quarentena é uma operação gigantesca de desvelamento. Nessa situação de estresse e sofrimento, tudo vem à tona. Você está apertando subjetividades individuais e coletivas, e as estruturas vêm à tona, o Brasil veio à tona. O que é o bolsonarismo, o que são os filhos [de Bolsonaro], o que é a lógica miliciana, da corrupção, da política? Como a gente compra o centrão, o meio, a borda? Está tudo a céu aberto, é como se fosse um declínio da contenção, da inibição, crise do recalque, e todas as potências vêm à tona. Acho interessante como psicanalista. Sem isso você não faz tratamento. Você precisa saber bem o que é o Brasil. Tem racismo, misoginia, exploração, homofobia, desigualdades, tradições escravocrata, autoritária, violenta, assassina, bandida. Tudo isso faz parte da história do Brasil.
Precisa parar de se enganar, de maquiar, de pôr a culpa no outro, porque aí a gente vai fazer uma polarização que diz “Eu tenho o bem, você não tem”. Todo o bem está comigo, a raça superior, o futuro da nação, Novo Reich, todo o mal está com você que tem que ser exterminado. Isso é uma regressão para um mecanismo psíquico muito arcaico.
O racismo é problema nosso. Tivemos séculos de escravidão. Sempre tivemos transformação política via autoritarismo. Foi sempre com golpe. A Independência, a República, acreditamos na força. Milhões de pessoas elegem o cara com o símbolo de arma porque a gente acredita na força. Acreditamos na autoridade suprema e a desejamos para “parar com essa bagunça”. Esse binarismo mental entre o caos, a desordem, a puta zona e a ordem; a força, a violência, o “AI 5 quero, sim”, isso revela crenças, estruturas do que somos.
Temos que saber que são questões constitutivas, têm a ver com o que somos. É um processo analítico. O Brasil deveria entrar agora num processo analítico coletivo, como qualquer sujeito. “Eu estou com insônia, tenho síndrome do pânico’; ou “estou com vontade de matar quatro e já matei dois”. “Estou indo para análise. O que está acontecendo comigo?” É a ponta do iceberg, são problemas de séculos.
Assim, o bolsonarismo não ocorreu por acaso. Não existe acaso no inconsciente. Nem no consciente. Acaso não existe. Mas existe, sim, o acaso/contingência? Claro. Tem toda uma estrutura por trás para possibilitar esse acaso. A vida é estrutura e acaso. Ela é tudo aquilo que já está montado. Se 58 milhões de pessoas entraram nesse delírio, isso está muito profundamente arraigado. Não existe acaso que eleja uma ficção com um imaginário tão delirante. Assim como o lulismo é outra construção que tem um aspecto profundamente imaginário. Não só, mas também, e é em alguma medida próximo a Bolsonaro —que consegue maior aprovação ao dar esse dinheiro mensal a uma parcela miserável da população.
É isso o que explica o aumento da popularidade do Bolsonaro? Uma parte são os R$ 600 [do auxílio emergencial]. Outra parte é a ideia do salvador da pátria. Esse caudilhismo autoritário é curioso. Ele é de extrema esquerda porque é desenvolvimentista, estatista, vide o Exército no poder —como Chávez e Maduro, na Venezuela— com o verniz ultraliberal. É tão confuso que a gente tem generais no poder com o Paulo Guedes.
Será que não temos uma potência, uma pluralidade de pensamentos? Mas não estamos sabendo sentar à mesa e falar o que queremos. A gente quer a perpetuação do extrativismo, da miséria, o máximo de desigualdade, o máximo de dinheiro para esse grupo? Essa plutocracia que a gente está exercendo, queremos continuar nessa?
Tem muita gente boa, acho que dá para sentar à mesa e dizer “Olha nós vamos ceder, vamos negociar”.
Há uma disputa entre esses potenciais transformadores e algo como uma pulsão de morte que perpetua essa situação? Tem muita pulsão de morte, claro. Uma pulsão de morte que, no momento, está vencendo. Quando você leva o pior do estado do Rio de Janeiro para o poder central, você vai ter uma “milicianização” global do poder do Estado. E nós estamos vendo isso. Estamos numa encruzilhada seríssima. Como vamos restaurar um mínimo pacto da lei? Como vamos barrar o gozo do outro? Se não barramos, é pulsão de morte, tânatos.
É isso que queremos? É o que estamos fazendo. É uma pergunta analítica. É realmente isso que você quer? É isso que você, Brasil, está fazendo da sua vida. Ou sentamos à mesa e explicitamos o que estamos fazendo, quem somos nós, ou vamos ser deixados fazer inconscientemente.
Agora que vieram à tona as pulsões mais delirantes, mais doentias, mais loucas do Brasil, vamos escutar e falar. O Brasil está doente. Não tenho dúvidas, o Brasil está doente. É preciso olhar no espelho.
Maria Homem
Psicanalista, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, professora da Faap, autora de livros como “No Limiar do Silêncio e da Letra: Traços de Autoria em Clarice Lispector” (Boitempo, 2012) e “Coisa de Menina? Uma Conversa sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo” (Papirus 7 Mares, 2019), em parceria com Contardo Calligaris. Seus cursos e palestras, como os que faz na Casa do Saber, se popularizaram nas redes sociais