terça-feira, 14 de junho de 2022

Estamos nos tornando prisioneiros da atenção, Ronaldo Lemos, FSP

 Ronaldo Lemos

SÃO PAULO

Na semana passada fiz minha estreia no teatro. A convite da MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo) fiz a voz de um robô no espetáculo chamado "O Vale da Estranheza". Não precisei subir no palco, nem nenhum outro ator precisou.

O palco era ocupado apenas por um humanoide articulado, cuidadosamente forjado para se parecer com o escritor alemão Thomas Melle, autor do texto. Durante 60 minutos o robô faz uma conferência sobre o estado atual da tecnologia, usando para isso a biografia de Alan Turing, inventor da computação moderna, e a história de vida do próprio Melle.

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Ronaldo Lemos interpreta a voz de um robô no espetáculo "Vale da Estranheza" - Arquivo pessoal

No meio da peça, o robô articulado tem ataques de pânico e síncopes nervosas, derivadas da condição maníaco-depressiva do seu autor. Além disso, faz uma reflexão poderosa sobre nosso fascínio com a tecnologia e como ela se tornou uma maçã envenenada (Alan Turing se matou comendo uma maçã mergulhada em cianeto). Precisei recriar tudo no português, experiência dolorosa.

A razão é que a peça do grupo Rimini Protokoll toca em pontos capazes de perturbar qualquer pessoa. Thomas Melle, por exemplo, projetou no robô toda sua condição mental de depressão-maníaca. No entanto, o robô que está no palco reproduz essa condição —essencialmente humana— como parte de sua programação pré-determinada. Em toda sessão ele terá as mesmas reações.

O público da peça também se comporta dentro de um script. Ri das partes com humor, faz reflexões nas partes mais meditativas e aplaude quando a peça termina. Aplaude quem ou o quê? Por fim, se aglomera ao final, com o robô já desligado, para tirar fotos dele, agora inanimado.

A forma como essa dualidade entre programação e aleatoriedade (ou sistema e organismo) é retratada na peça é incômoda. O robô zomba o tempo todo do público que se identifica com ele e com seus sofrimentos, mesmo quando ele expõe de forma explícita suas engrenagens e sua artificialidade.

Esse é o ponto mais poderoso da peça: a forma como ficamos facilmente fascinados com nossas próprias ferramentas. Como elas são capazes de capturar nossa atenção, até mesmo em uma peça de teatro interpretada por um robô. Ninguém saiu da peça criticando se o robô era "bom ou mau ator", nem cogitou analisar se a "direção" dele estava correta.

Podem ter criticado a minha voz na recriação das suas falas, porque minha voz é humana e por isso criticável. Já a máquina paira acima. É poupada dessas análises mundanas. Ela apenas fascina e captura a atenção.

É aí que mora o perigo. Georges Bataille escreveu em 1950 que "a atenção é sempre um esforço, uma busca por resultado. Ela é uma forma de trabalho". E mais: "A atenção não é jamais contemplação: ela nos captura no desenvolvimento de um indefinido, servidão sem fim".

A tecnologia da informação hoje cumpre esse papel. Ela é um sorvedouro gigantesco da atenção individual. Seu objetivo é simples: capturar toda a atenção de cada indivíduo de forma permanente e incessante, sem deixar qualquer brecha ou respiro. Isso pode até servir como uma forma de anestesia, mascarando manias e depressões, mas o preço cobrado é muito elevado. É o preço descrito por Bataille.


Já era não ter criptomoedas

Já é HODL (segurar criptomoedas sem vender)

Já vem BUIDL (o grito de guerra da Web 3)

Mathias Alencastro - Transição global da indústria automobilística é desafio para São Paulo, FSP

 Uma notícia desta semana que ficará na história do capitalismo passou despercebida na imprensa brasileira. O Parlamento Europeu aprovou o fim da venda de veículos com motor a combustão a partir de 2035. A decisão parte de diversas motivações. Os automóveis, principais emissores de gases poluentes, viraram o novo cigarro para os especialistas de saúde pública.

Com um aumento de 55% no número de mortes globais relacionadas à poluição do ar desde 2000, o carro passou a matar mais pela poluição no ar do que pelos acidentes na estrada. Em seguida, contra as análises mais pessimistas que previam uma estagnação da luta contra o aquecimento global depois da Guerra da Ucrânia, os tecnocratas europeus viram na regulação climática uma arma para acelerar
a grande divergência energética entre Europa e Ásia.

Trânsito para a saída de um feriadão nas estradas de São Paulo - FolhapressAdriano Vizoni - 11.out.2017/Folhapress

Para a indústria automobilística, a decisão europeia marca o fim da hegemonia iniciada pelo motor do Ford T, que transformou a economia global no começo do século 20. Não é por acaso que o coronavírus se disseminou por Wuhan, a "cidade dos motores", e pela Lombardia, polo de peças e componentes.

Era sobre os carros que assentava o modelo de exportação da Europa para a Ásia, colocado em xeque pelas próprias crises sanitárias e geopolíticas. Nos Estados Unidos, novos capitães da indústria como Elon Musk, que combina o discurso libertário com o subsídio de Estado, estão transformando o mercado de consumo doméstico, com a venda de veículos elétricos dobrando de 2020 a 2022.

Seria ingênuo pensar que a emergência de modelos alternativos mais sustentáveis não replicaria os padrões extrativistas do passado. Se a Tesla de Musk conseguiu o feito inédito de abalar grupos de interesses seculares, ela também se desenvolve à custa do que os geógrafos chamam de "regiões sacrificadas" pela exploração de minerais na África e na Oceania.

No pior dos mundos, a revolução elétrica vai apenas agravar a desigualdade climática: os cidadãos de primeiro mundo viverão em cidades mais limpas e silenciosas, enquanto nós vamos continuar servindo de receptáculo para um modelo de transporte obsoleto e nocivo por décadas.

Para impedir essa fatalidade, os impactos dessa transição global devem ser discutidos nas eleições para governador em São Paulo, cuja formação econômica está intimamente ligada à produção de automóveis. Se existe um ponto consensual na literatura, é que regiões com maior experiência histórica têm mais chances de liderar novos movimentos de inovação e tecnologia. Mas até em regiões de vanguarda como São Paulo a modernização é uma escolha, e não um destino.

O debate programático no Estado conheceu um novo avanço em evento deste sábado (11), com a entrega do programa da Rede à campanha de Fernando Haddad (PT). Impressiona a atualidade da visão dos quadros da Rede em relação aos discursos primitivos dos setores estabelecidos. Muito longe dos clichês do século passado, é impossível pensar a transição energética e industrial nos dias de hoje sem os ambientalistas.