sexta-feira, 3 de junho de 2022

RENATO SÉRGIO DE LIMA - A força das polícias militares no Brasil, FSP

 Renato Sérgio de Lima

Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Desde 2014, quando o general Hamilton Mourão tecia críticas públicas à presidente Dilma Rousseff e se projetava para a política, muito se tem dito sobre o papel do Exército na cena política brasileira e dos riscos à democracia dele derivados.

O ápice desse movimento foi o famoso tuíte do então comandante do Exército, general Villas Bôas, com ameaças ao STF caso ele soltasse o ex-presidente Lula, em 2018. De lá para cá, numa simbiose ideológica, o "projeto de nação" idealizado por eles tem sido posto em prática pelo governo de Jair Bolsonaro.

Porém, se a hegemonia da força terrestre na política é incontestável, a força dos militares como um todo tem sido negligenciada, sobretudo a das polícias militares, a começar pela relação entre militares na ativa e aposentados.

O Brasil tinha em 2019, segundo dados da Receita Federal, 5.840.722 militares federais (Marinha, Exército e Aeronáutica) e estaduais (PM e Bombeiros), mas apenas 13,8% da ativa. Dito de outra forma, 86,2% dos militares brasileiros estão na reserva ou reformados e, portanto, afastados da gestão operacional das forças militares e não detêm o poder imediato de mobilização de tropas, mesmo que em cargos públicos.

Mas o impacto é ainda maior: esse contingente total, considerando o número médio de 3,7 pessoas nas famílias brasileiras, segundo o IBGE, nos remete ao fato de que estamos falando de cerca de 18,34 milhões de pessoas diretamente ligadas ao mundo militar (policiais, cônjuges, filhos). E, pelos dados da Receita Federal, as PMs, sozinhas, respondem por 57,8% de todo o efetivo de militares da ativa do país.

E, se detalharmos o perfil das PMs, veremos que, segundo informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil contava, em 2021, com 406.426 PMs na ativa. Desses, cinco estados têm PM com mais de 20 mil integrantes. Juntos, eles concentram 53,1% do efetivo total de policiais militares do país (SP, RJ, MG, BA e CE).

Além disso, a PM do Distrito Federal, responsável pela segurança da capital do país, se destaca por ter um efetivo de mais de 10 mil integrantes. No caso, a PMDF é a única que tem quase todos os seus gastos reembolsados pela União.

Mas é na região Norte do país, que convive com um movimento de sobreposição de crimes ambientais com a expansão do crime organizado na floresta Amazônica e a atuação de mais de 20 facções criminosas, que um dado chama atenção: enquanto as Forças Armadas federais têm cerca de 18 mil soldados na região, as PMs de Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima somam o dobro disso, com cerca de 36 mil policiais.

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Jair Bolsonaro em cavalo da PM durante ato de apoio ao seu governo, em Brasília - Pedro Ladeira - 31.mai.2020/Folhapress

Isto posto, na prática, as PMs são hoje as grandes fiadoras da ordem no Brasil. E, no atual quadro político, se o Exército sinalizar que não interferirá, elas poderão servir como fator de desestabilização institucional caso atuem de forma leniente diante de manifestações violentas que questionem a legitimidade das próximas eleições.

O problema é que, como instituições, as PMs são pouco controladas em seus protocolos operacionais. Elas estão acostumadas com uma excessiva autonomia para decidir sobre o que significa ordem pública e se sentem confortáveis, por exemplo, para fazer como a PMRJ, que acusou o STF como responsável último pela operação que resultou em 23 mortes na Vila Cruzeiro no último dia 24.

Essa excessiva autonomia, aliada a péssimas condições de vida e trabalho, bem como ao fato de que, em uma estimativa por baixo, a família militar e policial equivale ao menos a 8,2% do eleitorado brasileiro, coloca os policiais militares e seus familiares em posição estratégica na cena política e eleitoral do país.

São essas as razões que motivam o interesse de Jair Bolsonaro pela categoria, que tenta fidelizar o grupo como uma de suas principais bases eleitorais. E, para tanto, Bolsonaro passou a congregar simpatias e apoios se colocando como o único que efetivamente se importa com os policiais, ao elogiar operações, ir a formaturas ou velórios. Porém, ele sabe que não conta com todos os votos do grupo e precisa reforçar seu discurso na crítica frequente a governadores e/ou sociedade civil.

Ao contrário do que a mídia e alguns analistas acreditam, os dados sobre o tamanho das polícias militares trazidos na arte acima e o fato de elas gozarem de grande autonomia operacional revelam que o debate sobre o papel e os riscos de radicalização das polícias militares e de rupturas antidemocráticas está desfocado e muito centrado na ação partidária de Bolsonaro.

Isso está posto, mas a questão não é condenar a politização de policiais, já que uma das acepções desse conceito está em linha com o previsto em nossa Constituição e diz respeito ao processo de conscientização de direitos que formam a cidadania no país. O problema é quando a política invade as instituições e faz com que elas desconsiderem o ordenamento constitucional e se radicalizem ao confundir projetos político-ideológicos com a forma de ser e fazer polícia no Brasil.

Não cabe às instituições militares desenharem ou adotarem "projetos de nação" ou criticarem decisões judiciais —policiais individualmente e sem farda podem, como cidadãos, fazer isso, mas nunca como porta-vozes das instituições. Por tudo isso, sem uma forte política de controle e supervisão da atividade policial, estaremos eternamente suscetíveis aos usos partidários de tais forças e reféns da ideia de que elas é que decidem nosso futuro e o significado de ordem e liberdade.

Reinaldo Azevedo Golpe está em curso; outubro pode marcar o início do 'desgolpe', FSP

 Tudo indica que Jair Bolsonaro subscreverá uma carta da Cúpula das Américas em defesa da democracia e da presença de observadores internacionais em eleições continente afora, o que inclui as nossas, é claro!, cujo resultado o presidente põe em dúvida de antemão. Joe Biden, com quem ele vai se encontrar, conhece a máxima: "Se eu perder, então houve fraude".

Se a garatuja do "Mito" estiver no documento, estamos livres da virada de mesa? A pergunta está errada. O golpe no Brasil é um "estar sendo", já em curso, e se faz um pouco por dia. Em outubro, temos de começar a "desgolpear" o Brasil. Vamos a uma digressão elucidativa e volto ao ponto.

O presidente Jair Bolsonaro (PL) - Adriano Machado - 25.mai.22/Reuters

Ainda que Bolsonaro possa, tudo indica, sonhar com um desfile de tanques na Esplanada dos Ministérios e com as respectivas cabeças de pelo menos nove ministros do STF fincadas em postes —Arthur Lira e Ciro Nogueira estariam na segunda fileira, por motivos diversos—, uma disrupção dessa natureza é improvável.

Nessa hipótese, o "Brasil pária", sonhado por Ernesto Araújo, se tornaria realidade, o que isolaria também as Forças Armadas do resto do mundo. Nem Putin iria querer conversa. A corrupção de valores dos fardados impressiona, mas a tal grau de estupidez não chega.

O jogo de Bolsonaro é mais claro do que ele e Braga Netto supõem. No extremo do delírio, ter-se-ia o "Cenário Capitólio", com incompetência ou desídia das Polícias Militares na contenção dos "revoltosos", caso em que seria necessário recorrer ao Artigo 142 da Constituição para que as Forças Armadas fossem chamadas a garantir a "independência dos Poderes".

O "capitão", então, como comandante supremo, tentaria negociar com os generais o futuro do Brasil. Seria um desastre para todos, inclusive para os golpistas, e um monte de gente acabaria na cadeia.

Lendo o colunismo "terceira-coluna", fica-se com a impressão de que as ameaças de Bolsonaro são uma invenção do PT para tentar forçar o voto útil. É mesmo? Lula seria, então, o culpado até pela retórica de seu principal adversário? Encoste o ouvido ao peito desses valentes, como recomendaria Ivan Lessa, e você lhes ouviria o coração a bater: "Não fosse o Supremo, e o petista nem estaria na liderança da disputa..." Há momentos em que essa gente e o bolsonarismo transitam na mesma, digamos, "via" —uma herança do trogloditismo lava-jatista, que nos jogou neste abismo.

Volto ao ponto. Não percebem? Já vivemos sob a égide do golpismo nas instituições, na independência dos Poderes, na eficácia das leis, nos direitos humanos, na possibilidade —ainda que fosse distante— de uma vida realmente civilizada. A herança de Bolsonaro para a (in)cultura democrática é devastadora. E a degradação está em toda parte.

Por isso afirmei nesta coluna, na semana passada, que golpe mesmo ele daria (ou dará?) se vencesse (ou vencer?) a eleição. Nesse caso, as agressões a direitos fundamentais, que hoje são matéria de fato, se transformariam também em matéria de direito.

Forças de segurança torturam e matam à luz do dia, na certeza da impunidade. Os massacres, sob o pretexto de combater o crime, viram rotina. Balas perdidas encontram a carne preta de crianças no suceder sangrento dos dias.

Morros desabam sobre a cabeça de miseráveis porque chove... Ah, o mandatário não responde por aquilo que cai do céu, mas é o culpado pela desestruturação do Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Nunca tantos trabalharam por tão pouco, destituídos de direitos, de proteção, de alguma perspectiva de futuro. Os pobres, como é evidente, sentem muito mais o "estar sendo" do golpe.

Os contornos formais da institucionalidade estão borrados —e não há exercício regular do direito se inexiste a forma. O Orçamento virou peça de ficção na disputa do Centrão pelos despojos do povo brasileiro, ao som do "Tchê tchererê tchê tchê" da cafajestagem. Incapaz de formular políticas públicas, a mais recente indignidade da ala que teme que o butim lhe fuja das mãos é cogitar um decreto de calamidade do vale-tudo.

Ou se entende que outubro pode marcar o início do "desgolpe", ou não se entende nada. Não é a carta de Biden que garante a democracia. É o voto. É a escolha.

Mauro Calliari - Na beirada de São Paulo, a esperança de uma cidade mais viva, FSP

 Como tantas outras na cidade, a região do Cantinho do Céu é carente. Como tantas outras, tem um nome que evoca paz e serenidade. Como tantas outras, surgiu às margens da legalidade. Como poucas, porém, está sendo objeto de uma intervenção que vai além da infraestrutura.

Originalmente, as margens da Billings eram totalmente cobertas pela mata atlântica. Na década de 1980, empreendedores particulares subdividiram ilegalmente uma chácara e venderam lotes para a população de baixa renda. Assim, uma única propriedade deu origem a três bairros, Parque dos Lagos, Jardim Gaivotas e Cantinho do Céu, com 40 mil pessoas em 10 mil casas, muitas das quais em áreas de risco, outras bem na beira da represa. As casas ocupam todo o espaço disponível dos terrenos de 125 metros quadrados, com um, dois ou mais andares. Na ausência de calçadas, pedestres disputam espaço com motos, carros, vans escolares, ônibus e caminhões de entrega. As árvores sumiram.

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Obras do parque Linear Cantinho do Céu, às margens da represa Billings, na zona sul de São Paulo
Obras do parque Linear Cantinho do Céu, às margens da represa Billings, na zona sul de São Paulo - Divulgação/Sehab

A ideia de requalificar a área não veio por um plano estratégico, mas sim para fazer frente a duas demandas. A primeira, dos moradores, que brigavam por asfalto, água, esgoto e coleta de lixo. A segunda foi uma ação civil pública que na década de 1990 exigiu a remoção de casas por causa do risco ambiental. Diante da impossibilidade de se reverter a situação, diminuindo a densidade e até removendo tanta gente que morava havia anos no local, a Secretaria de Habitação de São Paulo elaborou um plano urbanístico mantendo os lotes existentes e propôs um sistema de drenagem em fundos de vale, eliminação de áreas de risco e implantação de espaços públicos.

As obras na região começaram em 2005, como parte de um programa municipal chamado Mananciais, que ganhou impulso com recursos federais adicionais a partir de 2010. A parte invisível fica embaixo: são obras de infraestrutura como a integração na rede de água e esgoto. A parte visível está nas ruas —pavimentação, coleta de lixo, equipamentos— e nas margens —o projeto de paisagismo.

Entre a água e as casas, o parque linear que surgiu na borda da represa é uma boa surpresa. Ali, há árvores, decks de madeira, bancos, anfiteatro, campo de futebol, pista de skate, trilhas e espaços abertos. No futuro, serão mais de oito quilômetros de bordas interligadas. Nas áreas em que já foi instalado, o parque é um alento, pela qualidade dos materiais e pelo cuidado com os detalhes: bancos confortáveis, piso acessível, acabamento digno. Pessoas sentam no deck, passeiam ou empinam pipa.

Num pequeno passeio de barco ao longo das margens, dá para ver a beleza original da região. Ao longe, a ilha do Bororé, uma porção rural de São Paulo, e, na outra margem, parte da vegetação ainda intocada. Para a secretária Executiva para Mananciais da Sehab, Elisabete França, a intervenção é uma oportunidade de oferecer à população local um espaço de qualidade, que pode até vir a ser parte das opções de lazer de paulistanos que hoje nem conhecem a região.

A história do Cantinho do Céu faz pensar sobre a complexidade de São Paulo e suas contradições.

A primeira é o contraste entre a cidade ‘formal’ e a ‘informal’. Durante décadas, loteamentos legais e ilegais, favelas e outras ‘habitações subnormais’, como são chamadas, foram surgindo cada vez mais longe do centro, sem estrutura nenhuma e, o que é pior, sem o reconhecimento de sua existência. Era comum ver grandes áreas vazias nos guias de rua, como se casas, ruas e pessoas simplesmente não existissem. Nas últimas décadas, os conceitos mudaram. Hoje, fala-se em integração dessas regiões à cidade e não mais em remoção, como era comum até a década de 1980.

Projetos de reurbanização de favelas, com cuidado urbanístico, como os feitos em Paraisópolis ou Heliópolis, as maiores da cidade, trazem melhorias que são bons exemplos dessa integração. A própria concessão de títulos de posse dos terrenos, parte do projeto, trará à legalidade propriedades que hoje, na prática, ainda são irregulares.

Essa história também expõe outra faceta característica da urbanização paulistana: uma legislação muito restritiva associada a uma fiscalização pífia. Assim, nada pode ser construído em determinado local, mas tudo se constrói. A leniência histórica do poder público ajudou a gerar uma falsa dicotomia: habitação ou preservação.

Se é preciso encontrar soluções para moradias dignas, não é possível ignorar a questão mais básica de toda a cidade do mundo: a água. A Billings abastece o ABC e parte de São Paulo. Ocupações irregulares, que jogam dejetos na água, tanto contribuem para a poluição como acabam se prejudicando por causa dela. Em 2017, um estudo com 350 moradores de ocupações irregulares nas margens da represa mostrou que mais da metade tinha infecções intestinais e doenças de pele relacionadas à água. Não é uma escolha entre o meio ambiente e o desenvolvimento. Ambos vão ter que caminhar juntos ou não teremos uma cidade no futuro.

O trabalho também mostra um aspecto raro na gestão municipal, a continuidade. Desde a conclusão da primeira fase, passaram-se mais de dez anos e agora o projeto já está na fase 7. Eu havia feito uma visita nessa época e é um alívio constatar que o trabalho foi mantido mesmo diante de mudanças nas gestões e remanejamento de verbas. Na equipe da Secretaria de Habitação, há uma arquiteta com responsabilidade exclusiva pelo acompanhamento do projeto. Além dela, uma equipe de assistentes sociais negocia com os moradores. É uma conversa difícil. Barracos surgem literalmente da noite para o dia e se estabelecem em meio aos tratores, se equilibrando na beira da represa. Diante da precariedade e do risco, quase 700 famílias tiveram de ser reassentadas. Apesar de poderem optar por uma verba de aluguel ou um apartamento em conjunto habitacional, várias famílias temem ficar longe do local que conhecem.

Finalmente, vale constatar uma preocupação com a qualidade das intervenções. O escritório Boldarini Arquitetos Associados é o responsável pelo projeto desde o início. Numa volta pela região, o arquiteto discorre sobre os desafios do território ou a importância do espaço público para as pessoas, enquanto aponta para um detalhe de um banco, a particularidade do material do piso ou as espécies de árvores nativas a serem preservadas.

Uma intervenção como essa vai custar mais de R$ 220 milhões. É complexo e caro, mas escancarar os problemas, aceitar a complexidade e alocar os recursos certos parece ser o único jeito de fazer mudanças que façam alguma diferença na cidade.