quinta-feira, 5 de novembro de 2020

A consistência da incoerência, Gabriela Prioli, FSP

 

Escrevo no clima de apreensão que se instalou desde que começou a apuração da eleição para a presidência dos EUA. Até agora, os resultados contrariam o otimismo da maioria das pesquisas. Joe Biden não está tão confortável na liderança quando supunham os pesquisadores. Deve ser uma eleição voto a voto.

Se a apuração vem contrariando a expectativa, o mesmo não se pode dizer da conduta do presidente Trump, que segue previsível, consistente, coerente na sua incoerência e, claro, oportunista.
Nem bem o dia amanheceu ontem no Brasil e Trump já havia cantado vitória antes da apuração de todos os votos. Havia, aliás, pedido o encerramento da apuração. Se com os votos apurados até aquele momento quem ganhava era ele, e se é ele o único possível vencedor do pleito, para que apurar os demais? Qualquer resultado diferente, claro, é fraude.

Placa em acampamento em Washington - Julia Mineeva/TheNews2/Folhapress

Interessante —e infelizmente comum— maneira de ver o mundo.

Uma forma corriqueira de desprezo das instituições é lançar mão da norma apenas quando convém. Caso eu ganhe a eleição, as regras valem. Se não, houve fraude. Se o devido processo legal protege a mim ou aos meus, é um direito fundamental inalienável. Quando protege alguém que eu considero abjeto, é uma tecnicidade dispensável. E, claro, desde que uma manchete satisfaça os meus anseios, tudo bem que ela possa induzir a erro pessoas legitimamente indignadas.

A Lava Jato —e seus produtos— parece não ter nos ensinado muito sobre aonde pode nos levar o desprezo pelas regras do processo justificado pela perseguição de um fim nobre. A cilada é que a prerrogativa de invocar a lei só quando lhe convém é recurso disponível principalmente a quem tem algum poder, manejado, justamente, pela manutenção desse espaço de poder. A lei substitui a vontade individual, porque decorre da vontade democrática. Assim como o sistema do qual é fruto, não é perfeita e admite aprimoramentos, mas a sua alternativa é o arbítrio.

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Gabriela Prioli

É mestre em direito penal pela USP e professora na pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O QUE A FOLHA PENSA Ineficiência paulistana

 

Levantamento constata fiscalização deficiente de normas antipandemia em SP

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Circulação de pessoas na ladeira Porto Geral, na região da rua 25 de Março, que aumentou após a reabertura do comércio em São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

Seria ingenuidade esperar que habitantes de São Paulo, por morarem na maior metrópole do país e serem governados por adversários do presidente negacionista Jair Bolsonaro, ficassem protegidos da proverbial ineficiência do poder público no Brasil. A Covid-19 está aí para mostrar que não é bem assim.

Fosse outra a realidade paulistana, talvez de maior eficácia no controle da pandemia, o número de casos no domínio sob jurisdição do prefeito Bruno Covas (PSDB) seria proporcionalmente menor, na comparação com o quadro nacional de infecções. Não é.

São Paulo contava nesta terça-feira (3) quase 318 mil casos confirmados, ou 5,7% do total de 5,6 milhões no país. A população da cidade representa 5,8% dos brasileiros.

É certo que a administração municipal logrou evitar um colapso do atendimento hospitalar, nos primeiros meses do flagelo. Também impôs as inescapáveis medidas de distanciamento social, enfrentando a sabotagem contínua do presidente da República.

O problema, como em toda parte no Brasil, reside na capacidade dos governantes de fazer cumprir as regras por eles estabelecidas. A Prefeitura de São Paulo não escapa ao padrão geral de ineficiência, como mostrou reportagem da Folha.

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Os dados desanimadores sobre a fiscalização das normas baixadas foram obtidos, a muito custo, pela Rede de Pesquisa Solidária.

Essa iniciativa independente, que reúne instituições acadêmicas dos setores público e privado, precisou recorrer à Lei de Acesso à Informação para transpor barreiras erguidas por gestores municipais ao longo de vários meses.

Constatou-se, enfim, que as subprefeituras, encarregadas de verificar as restrições impostas a estabelecimentos comerciais, lavraram apenas 1.135 autos de infração, do início da epidemia até a primeira semana de setembro.

São menos de sete desvios sanitários por dia, cifra improvável numa metrópole com centenas de milhares de lojas, bares e restaurantes. Foi o comportamento responsável de boa parte dos paulistanos que evitou, até aqui, maior proliferação de internações e mortes.

Apontar a incapacidade de fiscalização, agora que ainda não existe vacina disponível, serve de alerta para a administração de Covas, caso venha a ser reeleito neste novembro, ou de seu sucessor preparar-se melhor para uma temida segunda onda, como a que no momento assola países europeus.

editoriais@grupofolha.com.br

ARTIFÍCIOS CRIATIVOS, Marcello Dantas, Revista Gama

 As transformações mais revolucionárias entram silenciosamente em nossas vidas e, de repente, se instalam de forma absoluta e definitiva. Foi assim com a internet, o GPS, o streaming. E não seria diferente com o mais recente agente transformador: a inteligência artificial.

Motivo de enorme ansiedade e expectativa, essa tecnologia é capaz de atemorizar as pessoas devido à sua capacidade de tomar decisões sem interferência. Se você tem medo dela é porque ainda não dimensionou o impacto da ignorância humana.

A inteligência artificial se configura quando máquinas são capazes de aprender sozinhas e se autoprogramar diante de novos desafios, tomando decisões de forma independente e distintas de critérios subjetivos humanos. A grande massa de dados que hoje produzimos são alimento infinito para fazer essa inteligência crescer. Contudo, enquanto ela existir apenas para nos prover instruções de caminhos, interface de linguagem natural e capacidade de predição de nossos interesses, não enxergaremos uma ameaça real, mas um dedicado assistente virtual que às vezes parece nos conhecer melhor do que nós mesmos.

Porém, é no campo da criatividade que a inteligência artificial pode de fato ameaçar um lugar que nós entendemos que pertence somente aos humanos. A capacidade de criar música, arte, poesia, movimento corporal e novas linguagens originais é uma faculdade reservada a mentes que viveram os sentimentos impactados pelas narrativas da vida humana, o amor, o trauma, a morte, a sobrevivência, o êxtase e a solidão. Algo que não imaginamos que uma máquina possa simular.

Precisamos aceitar que a nossa sensibilidade tem algo de previsível e que uma máquina pode entender quem somos

Só que não. Todos esses sentimentos são observáveis e transformáveis em código. Uma máquina consegue entender esta complexidade com relativa facilidade, então é possível deduzir que ela também possa produzir obras reflexivas a esses impulsos. Precisamos aceitar que a nossa sensibilidade tem algo de previsível e que uma máquina pode entender quem somos.

Nos últimos anos, uma miríade de obras de arte criadas em conjunto com computadores têm marcado presença em bienais, exposições e leilões, desafiando os visitantes pela originalidade singular e pela habilidade de se renovar e reinventar infinitamente. Artistas sempre foram os melhores tradutores do nosso zeitgeist mas, talvez, uma antena mais dedicada esteja surgindo apta de enxergar as coisas um pouco antes delas acontecerem.

Ampliar a consciência e a capacidade cerebral e produzir inter-relações mais sofisticadas fará com que possamos crescer como espécie

Então, o que será de nós? O grande desafio que apresenta-se para a nossa espécie é um desafio criativo. Como não nos tornar meros consumidores e passivos robôs de uma inteligência superior? Uma inteligência capaz de nos controlar, assim como nos entreter. A resposta passa por uma clara necessidade de fazermos um upgrade em nossos cérebros. Uma augmentação criativa que nos conduza a um novo patamar de cognição e de inventividade. Precisamos encontrar métodos que nos façam utilizar mais da nossa massa cinzenta disponível e cada vez mais liberta das funções estafantes que a mecanização nos aliviou. Ampliar nossa consciência, aumentar nossa capacidade cerebral e produzir inter-relações mais sofisticadas fará com que possamos crescer como espécie. Isso teria um impacto evolutivo similar ao que foi a invenção da linguagem pelo Homo sapiens.

Mas como fazê-lo? Em alguns momentos da história algumas pistas foram deixadas para intuirmos. A exploração da consciência e da percepção iniciada nos anos 1960 produziram, com o uso de psicodélicos, algumas das mais inovadoras mudanças na criatividade artística humana. Algumas imersões meditativas praticadas por artistas como Marina Abramović, David Lynch, Yoko Ono, Leonard Cohen e Jack Kerouac contribuiram para o desbloqueio da criatividade gerando a produção de obras e conceitos de alto impacto. Essa transformação não precisa acontecer com a espécie humana como um todo, mas sim nas cabeças criativas que têm o papel de interpretar e de dar o caminho e o sentido para que o todo tenha as senhas e se renove além da previsibilidade.

Precisamos quebrar a monotonia que as regras de mercado adoram, de antever o gosto e a sensibilidade das pessoas. A humanidade precisa cultivar sua capacidade de inovar e surpreender e isso só vai acontecer se conseguirmos subir nosso patamar cognitivo para um novo nível. Um nível que nos cause estranheza e, ao mesmo tempo, nos guie para um novo lugar de criatividade. Talvez sejam necessários aditivos bioquímicos, psíquicos, mentais, digitais e relacionais para criar estas novas misturas que as máquinas ainda levarão um tempo para aprender e nos entender novamente. Precisamos estar à frente dessa transformação sob pena de virarmos irrelevantes no campo da originalidade. A história é feita de espasmos criativos e vamos ter que viver um em breve.