As transformações mais revolucionárias entram silenciosamente em nossas vidas e, de repente, se instalam de forma absoluta e definitiva. Foi assim com a internet, o GPS, o streaming. E não seria diferente com o mais recente agente transformador: a inteligência artificial.
Motivo de enorme ansiedade e expectativa, essa tecnologia é capaz de atemorizar as pessoas devido à sua capacidade de tomar decisões sem interferência. Se você tem medo dela é porque ainda não dimensionou o impacto da ignorância humana.
A inteligência artificial se configura quando máquinas são capazes de aprender sozinhas e se autoprogramar diante de novos desafios, tomando decisões de forma independente e distintas de critérios subjetivos humanos. A grande massa de dados que hoje produzimos são alimento infinito para fazer essa inteligência crescer. Contudo, enquanto ela existir apenas para nos prover instruções de caminhos, interface de linguagem natural e capacidade de predição de nossos interesses, não enxergaremos uma ameaça real, mas um dedicado assistente virtual que às vezes parece nos conhecer melhor do que nós mesmos.
Porém, é no campo da criatividade que a inteligência artificial pode de fato ameaçar um lugar que nós entendemos que pertence somente aos humanos. A capacidade de criar música, arte, poesia, movimento corporal e novas linguagens originais é uma faculdade reservada a mentes que viveram os sentimentos impactados pelas narrativas da vida humana, o amor, o trauma, a morte, a sobrevivência, o êxtase e a solidão. Algo que não imaginamos que uma máquina possa simular.
Precisamos aceitar que a nossa sensibilidade tem algo de previsível e que uma máquina pode entender quem somos
Só que não. Todos esses sentimentos são observáveis e transformáveis em código. Uma máquina consegue entender esta complexidade com relativa facilidade, então é possível deduzir que ela também possa produzir obras reflexivas a esses impulsos. Precisamos aceitar que a nossa sensibilidade tem algo de previsível e que uma máquina pode entender quem somos.
Nos últimos anos, uma miríade de obras de arte criadas em conjunto com computadores têm marcado presença em bienais, exposições e leilões, desafiando os visitantes pela originalidade singular e pela habilidade de se renovar e reinventar infinitamente. Artistas sempre foram os melhores tradutores do nosso zeitgeist mas, talvez, uma antena mais dedicada esteja surgindo apta de enxergar as coisas um pouco antes delas acontecerem.
Ampliar a consciência e a capacidade cerebral e produzir inter-relações mais sofisticadas fará com que possamos crescer como espécie
Então, o que será de nós? O grande desafio que apresenta-se para a nossa espécie é um desafio criativo. Como não nos tornar meros consumidores e passivos robôs de uma inteligência superior? Uma inteligência capaz de nos controlar, assim como nos entreter. A resposta passa por uma clara necessidade de fazermos um upgrade em nossos cérebros. Uma augmentação criativa que nos conduza a um novo patamar de cognição e de inventividade. Precisamos encontrar métodos que nos façam utilizar mais da nossa massa cinzenta disponível e cada vez mais liberta das funções estafantes que a mecanização nos aliviou. Ampliar nossa consciência, aumentar nossa capacidade cerebral e produzir inter-relações mais sofisticadas fará com que possamos crescer como espécie. Isso teria um impacto evolutivo similar ao que foi a invenção da linguagem pelo Homo sapiens.
Mas como fazê-lo? Em alguns momentos da história algumas pistas foram deixadas para intuirmos. A exploração da consciência e da percepção iniciada nos anos 1960 produziram, com o uso de psicodélicos, algumas das mais inovadoras mudanças na criatividade artística humana. Algumas imersões meditativas praticadas por artistas como Marina Abramović, David Lynch, Yoko Ono, Leonard Cohen e Jack Kerouac contribuiram para o desbloqueio da criatividade gerando a produção de obras e conceitos de alto impacto. Essa transformação não precisa acontecer com a espécie humana como um todo, mas sim nas cabeças criativas que têm o papel de interpretar e de dar o caminho e o sentido para que o todo tenha as senhas e se renove além da previsibilidade.
Precisamos quebrar a monotonia que as regras de mercado adoram, de antever o gosto e a sensibilidade das pessoas. A humanidade precisa cultivar sua capacidade de inovar e surpreender e isso só vai acontecer se conseguirmos subir nosso patamar cognitivo para um novo nível. Um nível que nos cause estranheza e, ao mesmo tempo, nos guie para um novo lugar de criatividade. Talvez sejam necessários aditivos bioquímicos, psíquicos, mentais, digitais e relacionais para criar estas novas misturas que as máquinas ainda levarão um tempo para aprender e nos entender novamente. Precisamos estar à frente dessa transformação sob pena de virarmos irrelevantes no campo da originalidade. A história é feita de espasmos criativos e vamos ter que viver um em breve.