terça-feira, 3 de novembro de 2020

A noite em que Antônio Maria foi Carlos Heitor Cony, Alvaro COsta e Silva, FSP

 Nos anos 60, Carlos Heitor Cony publicava um romance por ano ("Matéria de Memória", "Antes, o Verão", "Balé Branco"), e a maioria esmagadora de seus leitores era do sexo feminino. Sabendo disso, o cronista Antônio Maria não se surpreendeu ao notar que no assento ao lado, na viagem de avião do Rio para São Paulo, a linda garota devorava o último Cony.

Com o cuidado de descobrir se na orelha do livro não havia uma foto do autor, Maria deu o bote, apresentando-se como o próprio, em carne e osso, Carlos Heitor Cony, a seu dispor: um homem torturado, sozinho, infeliz, descrente do amor. Impressionada, ela aceitou o convite para jantar naquela mesma noite.

"E aí?", perguntou dias depois o verdadeiro Cony ao ouvir no telefone o relato do farsante Maria. "Saímos do restaurante e fomos direto para a cama. Ou melhor, você foi para a cama com ela." "E aí, e aí?", o romancista não se segurava mais de ansiedade. "Aí, você brochou, Cony, você brochou", respondeu Maria, caindo na gargalhada.

Antônio Maria pondo no papel as histórias que colhera nas noites cariocas
Antônio Maria pondo no papel as histórias que colhera nas noites cariocas - Reprodução

Verdadeira ou não, a história é ótima --embora mostre todo o machismo da época. Tão boa que, recontada, foi incorporando outros personagens da vida literária e boêmia do Rio. Tendo sempre Cony como vítima, já fizeram o papel de Antônio Maria: Vinicius de Moraes, Paulinho Mendes Campos, Carlinhos Oliveira e os quase sósias Rubem Braga e Samuel Wainer. Em algumas versões, Cony assume a voz do vilão, dando o troco em Maria. A mais estapafúrdia delas coloca Clarice Lispector ou como a conquistadora ou como a mulher enganada. E Nelson Rodrigues só não entrou na lista porque não punha os pés num avião.

Uma coisa é certa: aquela turma de cronistas tinha talento de sobra para narrar ou inventar situações. Escreviam livros fabulosos, eram sedutores e charmosos. Eventualmente, brochavam. Mas o que me revolta é a garota ter passado a noite chupando o dedo.

O escritor Antônio Maria nos anos 60 batucao numa bandeja de metal
Antônio Maria nos anos 60: batucando numa bandeja - Reprodução
Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

Hélio Schwartsman Uma eleição paradoxal, FSP

 Quanto mais avançada é uma democracia, menos importantes são os resultados eleitorais. O paradoxo tem uma explicação. Para o regime funcionar bem, isto é, para que a alternância se dê de forma pacífica, é preciso que os custos para o grupo que deixa o poder sejam mínimos.

Para tanto, é necessário que a troca de comando não produza resultados irreversíveis nem mesmo muito dramáticos. Não é que a democracia rejeite mudanças, mas elas precisam vir em doses moderadas, para que não seja mais tentador para quem perde a eleição agarrar-se ao poder pela força do que ir para a oposição e depois voltar pelo voto.

Os EUA são uma democracia avançada, mas, ao contrário da maioria dos pleitos anteriores, o resultado de hoje faz enorme diferença. O que está em jogo não é apenas a possível alternância entre um programa mais à esquerda e um mais conservador, mas sim entre um candidato que sempre se pautou pelas regras da democracia e outro que, no poder, passou os últimos quatro anos testando seus limites. Pior, um candidato que se recusa até mesmo a comprometer-se em aceitar os resultados da eleição se estes não lhe forem favoráveis.

E não foram apenas valores da democracia que Trump procurou erodir ao longo de seu mandato. Ele também sabotou a moralidade e a própria decência, fomentando a polarização entre os americanos, misturando seus interesses pessoais com a administração pública e se recusando a gestos praticamente obrigatórios para um presidente, como condenar o racismo.

A maioria dos americanos se deu conta de que Trump não merece confiança e deve rejeitá-lo nas urnas. Há poucas dúvidas de que perderá por boa margem no voto popular. As idiossincrasias do sistema eleitoral americano, contudo, permitem antever cenários em que ele saia vitorioso ou, pelo menos, possa causar celeuma para deixar o posto --o que apenas confirmaria sua vocação antidemocrática.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

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Um passo para o BC, EDITORIAL FSP

 No último quarto de século, o Brasil registrou a menor inflação desde que se tornou uma economia urbana e industrializada. Mais do que a pacotes engenhosos, o feito se deve ao aperfeiçoamento paulatino da atuação do Banco Central.

Se o Plano Real, lançado em 1994, pôs fim a mais de uma década de preços em disparada, a estabilidade da moeda desde então tem sido perseguida por um BC que gozou de autonomia —com a contrapartida de transparência e prestação de contas— durante a maior parte do período. Agora, o país se encontra maduro para um novo avanço.

Trata-se de conceder mandatos fixos para o presidente e os diretores do órgão, como prevê projeto de lei complementar pronto para votação no Senado a partir desta terça-feira (3). Institucionaliza-se, com o texto, uma prática que tem se mostrado viável e eficaz.

O BC conta com mais credibilidade quando consegue atuar a salvo de ingerências do governante de turno —que pode se ver tentado, por exemplo, a vetar uma alta de juros, mesmo necessária, em momentos de eleição ou dificuldade política. Com mais coerência e credibilidade, conseguem-se resultados melhores a custos menores.

Cumpre desfazer mitos que cercam a proposta. Não é uma panaceia, como alguns de seus defensores fazem parecer: um presidente da República irresponsável pode aparelhar o BC com nomes desqualificados; uma gestão imprudente do Orçamento pode minar a efetividade da política monetária.

Tampouco a autonomia formal implica, como acusam críticos mais exaltados, uma política de juros dissociada das preferências consagradas pelo voto popular: o comando do BC seguirá sendo indicação direta do presidente da República.

A proposta em exame no Senado estabelece que o órgão terá como missões o controle da inflação, a suavização das oscilações da atividade econômica e o fomento do emprego —objetivos que, por vezes, podem parecer em contradição.

A experiência global demonstra, porém, que a estabilidade monetária favorece a economia e o mercado de trabalho no longo prazo.

Pelo projeto, o presidente e os oito diretores do BC serão avaliados pelo Senado, como já ocorre hoje, e terão mandatos de quatro anos, não coincidentes entre si e, portanto, nem sempre coincidentes com o do presidente da República.

Provavelmente caberá à Câmara dos Deputados, que ainda se debruçará sobre a matéria, definir o cronograma mais adequado para a aplicação do novo modelo.

Em qualquer hipótese, a aprovação do projeto representará um passo importante da agenda econômica, hoje claudicante, e um aprimoramento institucional já consolidado nas nações desenvolvidas.

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