domingo, 3 de fevereiro de 2019

Livro discute reviravoltas da política e perspectivas do governo Bolsonaro, FSP

Em coletânea de 22 ensaios, pesquisadores fazem diferentes interpretações sobre a última eleição

Naief Haddad
SÃO PAULO
campanha que opôs Jair Bolsonaro (PSL) a Fernando Haddad (PT) no segundo turno da disputa para a Presidência da República em 2018 não acabou. 
Devido ao vale-tudo da internet, com a profusão de robôs e fake news, e ao discurso antissistema do presidente eleito, que inclui a virulência constante contra a esquerda, entre outros fatores, o embate eleitoral se tornou permanente. Não se limita a ciclos, como estávamos acostumados.
Desenvolvida de formas diferentes, essa ideia aparece nos ensaios do advogado especialista em tecnologia e colunista da Folha Ronaldo Lemos e do professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes.
Os textos de ambos integram o recém-lançado “Democracia em Risco? 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje”, em que 24 autores discutem as motivações das recentes reviravoltas da política brasileira e refletem sobre as perspectivas do governo Bolsonaro.
“Era nosso desejo intervir no debate com rapidez”, escrevem os editores na apresentação da obra. Assim, os textos ficam a meio caminho entre densidade que caracteriza a produção acadêmica e a urgência jornalística. 
Os ensaístas são intelectuais habituados ao debate público, entre historiadores, sociólogos, cientistas políticos, advogados e economistas. Surgem no livro diferentes visões sobre o que representa o êxito bolsonarista.
“A eleição geral de 2018 foi disruptiva”, escreve o sociólogo Sérgio Abranches. “Encerrou o ciclo político que organizou o presidencialismo nos últimos 25 anos e acelerou o processo de realinhamento partidário que já estava em curso.” 
Socióloga e colunista da Folha, Angela Alonso adota uma linha próxima, interpretando o processo eleitoral de 2018 como uma ruptura.
“Com camisetas amarelas, a eleição de Bolsonaro encerra a Nova República, que com elas começou”, diz. Ela se refere ao amarelo que dominava as manifestações das Diretas Já, em 1983 e 1984.
Em contraste, o cientista político e colunista da Folha André Singer e o sociólogo Gustavo Venturi não aderem à tese de um desvio mais profundo em consolidação. 
Para eles, a eleição indica, por ora, um deslocamento temporário dos setores médios para a direita. Esse novo arranjo pode se tornar duradouro se a gestão do PSL for bem-sucedida em áreas como economia e segurança.
Para os historiadores que participam do livro, um ponto-chave é observar o passado para entender a chegada à Presidência de “um candidato explicitamente comprometido com um ideário político de extrema direita, manejando uma agenda de valores ultraconservadora”, nas palavras de Heloisa Starling.
Ela e seus colegas historiadores Boris Fausto e Daniel Aarão Reis acreditam que parte expressiva da sociedade brasileira, incluindo os militares, jamais se dispôs a refletir sobre a ditadura instalada com o golpe de 1964. Ao evitar a revisão desse período histórico, o país cria as condições para a ascensão de políticos com o perfil de Bolsonaro.
“Discutir de forma aberta o longo período 1964-84 permitiria aos militares ter um comportamento mais arejado e afirmativo na sustentação da democracia”, escreve Boris Fausto.
Irmão de Boris, o filósofo Ruy Fausto também está presente no livro. Em linhas gerais, ele dissocia o fascismo do bolsonarismo, um movimento com “características particulares”.
Ruy arrisca um neologismo, “democratura”, para definir a “onda autocrática que assola o mundo moderno”. Além do Brasil, diz ele, a maré atinge países como EUA, Itália, Hungria e Filipinas.
A hegemonia da economia ultraliberal, a adesão do poder público aos valores cristãos (católicos ou protestantes) e o temor da violência urbana pela população estão na base da “democratura”. 
Páginas adiante, aparece outro neologismo, “populisprudência”, cunhado por Conrado Hübner Mendes. É a versão judicial do populismo, uma das marcas que desabonam o Supremo Tribunal Federal (STF).
Para o professor, só “um STF mais atento à Constituição e à preservação de sua combalida autoridade” será capaz de enfrentar o jogo duro que pode vir pela frente.

DEMOCRACIA EM RISCO? 

Autores: Angela de Castro Gomes, Celso Rocha de Barros, José Arthur Giannotti, João Moreira Salles, Matias Spektor e outros.
Editora: Companhia das Letras.
328 págs.
R$ 55 (versão digital: R$ 30).

As mineradoras precisam de uma Lava Jato, Elio Gaspari, FSP

As empreiteiras também acharam que, apesar do barulho, aquele tal de juiz Moro estava perdendo seu tempo

Os doutores das mineradoras precisam conferir o prazo de validade da vitória que conquistaram depois do desastre de Mariana. Morreram 19 pessoas, foram aplicadas 56 multas totalizando R$ 716 milhões, ninguém foi para a cadeia e até hoje a Samarco (sócia da Vale) só desembolsou R$ 41 milhões. Se as empresas tivessem a qualidade de seus advogados, nenhuma barragem teria rompido.
As mineradoras foram competentes para construir uma barragem política, judicial e administrativa. Projetos de aperto na fiscalização das barragens estão travados no Senado, na Câmara e na Assembleia de Minas. Uma iniciativa que elevaria para R$ 30 milhões o valor das multas cobradas às empresas atolou no Congresso, e o teto ficou em R$ 3.200.
O Código de Mineração foi escrito em computadores de um escritório de advocacia de São Paulo entre cujos clientes estava a Vale.
O setor do Ministério de Minas e Energia que cuida de geologia e mineração foi dirigido e aparelhado por quatro veteranos da Vale. Uma empresa da família do deputado Leonardo Quintão (MDB-RJ) explorou a bacia de rejeitos de Brumadinho. Por coincidência, o doutor relatou o Código de Mineração na Câmara. Como não se reelegeu, aninhou-se na Casa Civil de Bolsonaro. A Agência Nacional de Mineração tem 35 fiscais para 790 barragens de rejeitos.
Disso resultou que as sirenes da barragem de Brumadinho não foram acionadas, e a Vale explica esse detalhe atribuindo o silêncio "à velocidade com que ocorreu o evento". Os circuitos cerebrais do inventor dessa patranha devem estar desligados há anos.
No caso de Mariana, a Vale assumiu uma atitude de rara arrogância. Primeiro tentou dissociar-se do desastre dizendo que, apesar de sócia do negócio, a barragem era de outra empresa, a Samarco. Clovis Torres, então diretor jurídico da Vale, foi mais longe: "A Samarco não é um botequim. Não é uma empresa qualquer". Ofendeu os donos de botequim.
A barragem das mineradoras teve solidez. Assemelhou-se à das grandes empreiteiras em 2009, quando a Camargo Corrêa foi varejada pela Operação Castelo de Areia. Estava tudo lá, grampos, propinas e superfaturamentos.
Graças ao mecanismo da blindagem, a investigação foi desmanchada no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Em 2014, um juiz pouco conhecido chamado Sergio Moro entrou na Operação Lava Jato e deu no que deu. No ano seguinte, a Camargo Corrêa tornou-se a primeira grande empresa a colaborar com as autoridades abrindo uma fila onde entraram todas as outras.
A estratégia vitoriosa em Mariana foi a Castelo de Areia das mineradoras. Brumadinho deveria ser um apelo para que comece uma nova Lava Jato. As astúcias minerais e os malfeitos expostos pela Lava Jato têm diferenças na dinâmica, mas convergem no desfecho.
As empreiteiras distribuíam dinheiro para lesar a Viúva. As mineradoras blindaram-se para sedar a fiscalização e para controlar o poder público. Convergiram no dano, umas lesando o Tesouro, outras matando gente.
O prazo de validade da Castelo de Areia expirou com a Lava Jato. A estratégia usada em Mariana precisa ter o prazo de validade anulado.
Como as mineradoras conseguiram blindar Mariana, adormecer o Congresso e aparelhar a máquina fiscalizadora? Uma nova Lava Jato poderá trazer as respostas. Bastaria um juiz Moro e uma equipe de procuradores como a que surgiu em Curitiba. O resto vem por gravidade. O doleiro Alberto Youssef achou melhor falar, depois veio o engenheiro Paulo Roberto Costa, e assim foi. Se alguém fizer as perguntas certas, alguém falará.

A LIÇÃO DE CORDEIRO

O marechal Cordeiro de Farias foi uma espécie de coringa nas revoltas militares do século passado. Esteve na Coluna Prestes, na Revolução de 30 e nos levantes de 1945 e 1964.
Em 1974, quando o comunista Luiz Carlos Prestes declarou-se condômino da vitória eleitoral do MDB, o deputado Thales Ramalho espinafrou-o. Cordeiro tinha um afeto paternal por Thales e, ao encontrá-lo, disse-lhe:
"Não faça mais isso, seja qual for a tua divergência com o Prestes, ele é um personagem da história".
Thales foi um marquês do Império na política da República e narrava o episódio com humildade. O pessoal que impediu a ida de Lula ao enterro do irmão Vavá tisnou as próprias biografias.
(No governo do general Figueiredo, o delegado Romeu Tuma, da Polícia Federal, tirou Lula da cadeia para o enterro da mãe.)

UM CONSERVADOR

Os atrasados não são conservadores, são só atrasados.
Em 1974, pegou fogo um edifício comercial no centro de São Paulo e nele funcionavam escritórios do Citibank. Morreram 189 pessoas.
Quando Walter Wriston, presidente mundial do banco soube que alguns de seus empregados tinham sido queimados e que John Reed, seu futuro sucessor, estivera no prédio dias antes, determinou que todas as sedes do Citi no mundo seguissem as normas do Corpo de Bombeiros de Nova York.
A adaptação custou milhões de dólares.
Anos depois, ao ouvir essa história, o presidente brasileiro do Banco de Boston comentou: "É por isso que o Citi não consegue vender suas sedes". Em 2011, o banco foi vendido ao Itaú. (Em tempo, o banqueiro não era Henrique Meirelles.)
Wriston nunca teve empregada em casa, e quando foi sondado para ser secretário do Tesouro, recusou, porque não via razão para mostrar suas finanças ao governo. Impôs uma política de cotas ao RH e não promovia fumantes.
Era apenas um conservador.

MOURÃO FALADOR

Estranha turma a de Bolsonaro. Está contrariada porque o vice-presidente fala demais.
Mas foi precisamente por falar demais que o general Hamilton Mourão entrou na chapa do candidato.
Mourão calado é uma fantasia.

DR. EREMILDO

A imprensa persegue os governos.
Em 2009, o repórter Luiz Maklouf Carvalho mostrou que a biografia oficial de Dilma Rousseff apresentava-a como doutora em economia pela Unicamp sem que ela tivesse apresentado a tese que lhe daria o título.
Agora a repórter Anna Virginia Balloussier mostrou que a ministra Damares Alves se apresenta como "mestre em educação, em direito constitucional e direito da família" sem ter qualquer título de mestrado. A doutora explicou que a fonte de seu qualificativo é bíblica.
Eremildo, o idiota, é mestre em capoeira e xadrez.

É FRIA

Os çábios que orientam a defesa de Fabrício Queiroz acham que ele deve ir ao Ministério Público levando um texto e mantendo-se em silêncio.
Marcelo Odebrecht teve a mesma ideia. Meses depois começou a falar, ao vivo e em cores.
Os procuradores não têm pressa, só perguntas.

ENCRENCA

A próxima encrenca que azucrinará a vida de políticos do Rio poderá ser a comprovação de que dinheiro das milícias caía na conta de funcionários de gabinetes de alguns deputados.
Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".