sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Atentado inaceitável, Hélio Schwartsman, FSP

atentado contra o candidato presidencial Jair Bolsonaro merece veemente repúdio —e sem nenhum tipo de ponderação adversativa ou reserva mental.
Há um paradoxo na democracia: ela funciona, ainda que tenhamos dificuldade em apontar com precisão o porquê. Sua efetividade aparece numa série de medidas empíricas, que englobam várias dimensões.
Com a exceção de alguns Estados petrolíferos, países democráticos tendem a ser mais ricos do que aqueles governados por autocratas ou relegados à anomia. Também encontramos correlações positivas entre o nível de democracia de uma sociedade e sua performance em saúde, educação e respeito aos direitos humanos. Nunca na história moderna duas democracias entraram em guerra uma contra a outra.
O espantoso é que, apesar de definirmos a democracia como o regime no qual os cidadãos escolhem periodicamente seus dirigentes, também acumulamos fartas evidências de que o voto é o ponto fraco do sistema. Eleitores costumam ser incoerentes, desinformados e impulsivos na hora de votar. Pior, não têm nem estrutura cognitiva nem disposição para fazer escolhas racionais.
A literatura tenta conciliar esses dois corpos de achados especulando que o sucesso das democracias se deve menos à forma de selecionar governantes e mais a outros elementos que vêm embutidos no pacote democrático, como a segurança jurídica, a consolidação de um núcleo forte de liberdades individuais e, principalmente, a realização de eleições livres e periódicas, porque elas canalizam os conflitos políticos presentes em qualquer sociedade para uma forma pacífica de disputa.
A violência política contra qualquer candidato põe assim em risco todo o sistema e deve ser rejeitada. É positivo que as condenações tenham vindo de todos os lados do espectro ideológico e tenham se dado em termos menos ambíguos do que os registrados quando a caravana de Lula foi atacada no início do ano.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

gnácio de Loyola Brandão - O livro é uma festa - OESP

Até hoje vejo meu pai, aos 70 anos, me surpreendendo no lançamento de 'Zero', em 1975

Ignácio de Loyola Brandão, O Estado de S.Paulo
31 Agosto 2018 | 02h00
Com a camiseta amarela da Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, o secretário de Cultura daquela cidade, Iury Feres Abrão, veio com a família inteira. Na mesma mesa de Evandro Ferreira e Leo Lama, no café da livraria, vi Euclides da Cunha, sentado, muito magro e sério. Um senhor revelou: “Li o final primeiro. Agora quero ver como o senhor chegou a essa situação”. Os primeiros da fila foram de Araraquara, Maristela Petrili e Pancho, depois Lena Fortes e o marido Haroldo acabados de chegar de minha terra. Traziam um bilhete de Ruth Segnini, minha professora do primário, ainda viva e esperta: “Vejam lá o que o menino anda fazendo”.
Tenho a sensação de que as filas em noites de lançamento me angustiam mais do que aos que estão ali para que eu assine. Mas todos chegavam, sorriam, abraçavam faziam a foto. De repente vejo Eduardo Logullo, com quem trabalhei na Vogue anos e anos, me entregar o livro: “Estou aqui há uma hora e 40”. Logo, o embaixador Rubens Barbosa, fleumático, cavalheiro, companheiro aqui do Estadão, imperturbável. Hora e 40 a duas horas era o tempo para chegar à minha mesa. Fico comovido com tais lealdades. “Que bom! O livro é festa”, alegrou-se a escritora portuguesa Lidia Jorge em e-mail.
Não tenho a memória expandida do Humberto Werneck, mas tais noites têm um quê proustiano. Como a amiga de muito tempo, e ponha tempo nisso. Não nos víamos há uma eternidade. Desafiou: dou um doce se lembrar meu nome. Escrevi Wildi Celia Melhem. Como esquecer? Outra estava me entregando o livro e antes de ver o papel com o nome, estremeci: “Malvina?”. Ela arregalou os olhos azuis: “Sim”. A única pessoa com esse nome de toda uma vida. Amiga de infância em Araraquara, elo perdido há séculos. Conversamos e de repente indaguei: “E a Alair?”. Melhor amiga dela, a moreninha mais linda das festas da Matriz, eu devia ter 10 anos. Diziam dela, a rainha das quermesses. Quando vendia rifas, esgotava sua cota de números num sopro. Quanto gastei do meu dinheiro para as matinês comprando rifa para agradar a Alair. Está viva em Bauru.
Um senhor, jeito bonachão, risinho irônico, caminha lento. Sei quem é, é familiar. Quem? O nome não me vem, só que conheço, quem é? Junto a mim, estende o livro: “Só você me faria sair de casa aos 93 anos e pegar uma fila dessas”. A voz me revelou Mário Glauco Patti, chefe de redação da Última Hora, começo dos anos 60, sujeito divertido, adorava carros, velocidade, dirigiu depois o Autódromo de Interlagos, era o Senhor da Fórmula 1. Ao terminar o “expediente”, saíamos em grupo para o circuito de bares e boates, do Clubinho ao Holliday, Michel, Paribar, Redondo, João Sebastião Bar.
Assim, fui me revendo/revivendo em momentos variados. Crianças com os pais, jovens de 18 anos. E calmos na longa fila, acadêmicos como Ana Maria Martins, 93, que escreve ternas crônicas sobre trens, e José de Souza Martins, 80, que tem a memória profícua sobre São Paulo, suas histórias são eletrizantes, José Gregory, 80 e tantos, conheceu todos os bares que conheci, hoje faz QG no O Balcão.
No meio da festa, um alerta, estavam acabando os livros. Operação de emergência repôs no momento em que era vendido o último exemplar. Este Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela é meu livro número 45. A capa, título preto sobre fundo amarelo, é criação de Thomaz Souto Corrêa que, em 1966, me tirou do jornal Última Hora e me levou para a revista Claudia. Dez dias atrás, me ligaram da editora Global. “Os primeiros exemplares do ‘amarelinho’, estão saindo...” Apanhei um táxi, em minutos fui de Pinheiros à Liberdade, agarrei o romance, voltei ao táxi, folheei, o motorista comentou: “Cheiro bom tem esse livro”. Coisa de quem tem afeição por leitura, é seduzido até pelo cheiro. Fui “lambendo a cria”, não tem autor que não faça isso.
Aconteceu agora, assim como aconteceu às 4 da tarde de um dia de setembro de 1965, quando Caio Graco Prado, da editora Brasiliense, me ligou: “Seu livro está em minhas mãos”. Desliguei e caminhei como Joel Ciclone (esta é para poucos) do Anhangabaú, onde trabalhava, até a Rua Barão de Itapetininga, entrei direto na sala do Caio, ele estava desligando o telefone. Riu abismado: “Já?”. Queria ver o meu livro de contos, Depois do Sol. Meio século depois, minha ânsia continua a mesma, sou igual, o que mudou foi a técnica que adquiri, a experiência, ganhei em ironia. Os lançamentos são diferentes, agora têm a foto, todos fazem selfie. Onde chegam essas imagens? Aquele homem de 29 anos, que percorreu 13 editoras até Caio Graco me aceitar, e este de 82, já sem dificuldades de editar, continua o mesmo na emoção do parto. O polegar direito aguentou firme, saudoso dessa dorzinha aguda.
Noites de autógrafos. A memória afetiva me trouxe não os grandes nomes que me comoveram e me intimidaram ao vê-los à minha frente, como Cacilda Becker a quem dei, trêmulo, o primeiro autógrafo de minha vida, ou Jorge Amado em um encontro na casa dele na Rua Alagoinhas 33, em Salvador. Até hoje vejo meu pai, aos 70 anos, me surpreendendo na porta da Livraria Folhetim, no começo da noite, tendo viajado quase o dia inteiro de ônibus de Araraquara ao Rio de Janeiro, para participar do lançamento do Zero, em julho de 1975.
Sexta-feira passada, certo momento, olhei e vi, ocupando um pedaço de minha mesa, aos risos e estripulias, meus netos Pedro e Stella animados com um jogo, enquanto eu assinava. O outro, Felipe, estava desaparecido entre livros, mas ninguém se perde entre eles. Lucas, o terceiro, não foi, jogava basquete, tomara um dia seja como o araraquarense Rosa Branca, meu amigo que chegou às Olimpíadas de Roma e Tóquio.
Impaciente, ia chamar a atenção de Stella e Pedro, desisti. Uma lembrança impediu. A de um lançamento na Livraria Capitu, Rua dos Pinheiros, final dos anos 70. Duas crianças corriam para lá e para cá, entravam embaixo da mesa, apanhavam e esparravam amendoins e confeitos, olhavam os papeizinhos com os nomes, largavam os copos na mesa, empoleiravam-se a me olhar. Uma senhora sentiu-se incomodada: “Essas crianças não têm um pai ou mãe para ensiná-las a se comportar?”. Levantei os olhos: “Têm sim, o pai sou eu”. Eram Daniel e André, meus filhos, hoje com 46 e 44 anos. A mulher ia saindo de fininho, chamei-a, assinei o livro entre risos. A história se repete. O livro é sempre uma festa.

Conversar é uma arte; calar é sabedoria pura, Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo

Há dois tipos de conversa muito bons. O primeiro é o franco e direto, diálogo vivo que inclua seu eu mais profundo com alguém que você ama e confia. Como é bom falar de temas densos, de questões biográficas e estruturais. É libertador abrir-se sem medo. As horas voam e você não percebe. Caso você tenha alguém assim, aproveite muito. Conversa íntima é uma vacina contra a insanidade.
O outro tipo de boa conversa pode ou não estar contido no modelo anterior. Trata-se da conversa inteligente. Você enuncia uma ideia e sua companhia complementa, redargue, aprofunda, exemplifica, ouve e se faz ouvir com bons argumentos. Um diálogo inteligente é sedutor, quase erótico, um jogo gostoso como as gavinhas de uma hera que sobe pela parede do cérebro com elegância. Dois momentos intensos de felicidade dialógica: aquela que atrai a confiança e a que seduz o intelecto. Se você tem na mesma pessoa confiança e inteligência, entrega e criatividade, quase mais nada será sentido como falta na sua biografia.
Sejamos francos: a maioria das interações humanas foge dos tipos descritos. Nossa vida é dominada pela conversa de elevador, de consultório, de táxi, de avião, de festa. No geral, são falas sociais com o desconhecido ao seu lado com temática ampla e superficial. A ilha do diálogo denso, adaptando a metáfora do doutor Simão Bacamarte de Machado, é cercada pelo oceano do comum, do raso, do anódino e do placebo retórico.
No Brasil domina a ideia de que não é educado ficar em silêncio com outro ser humano. Mesmo que você não o conheça, além da saudação formal, nossa cultura exalta o imperativo da fala. Na Terra de Santa Cruz, falar é educado, o calar é tomado por grosseria. Em grande parte da Europa, ficar em silêncio é bem-aceito. 
Para enfrentar nossa sociabilidade tropical, urge aperfeiçoar o “papo-furado”. O conceito não é para amadores ou para conversadores triviais. Os iniciantes na delicada arte de falar nada com sofisticação começam pelo tempo: “Que calor, hem?”. O recurso meteorológico é técnica de debutante. Resolve o silêncio constrangedor, mas evidencia a falta de traquejo.
O erro oposto, também típico de inábeis, é tornar a conversa densa em demasia. A conversa-fiada não poderia incluir seu fluxo de consciência, suas angústias ou devaneios, nem sequer seus sonhos dourados. Tais temas assustam o ouvinte e constituem excesso de tempo e de abertura pessoal. Raso demais ou denso em exagero são arestas evitáveis.
Como na Teoria do Medalhão de Machado de Assis, há que se treinar a arte de nada dizer com certo requinte. Imagine a cena: você entra no elevador e há alguém. Impossível não notar. Um meneio de cabeça indica que houve percepção do outro. Saudamos o ocupante do meio de transporte mais seguro do mundo. Nada de encarar ou exceder o volume. Algo discreto. O celular é ferramenta nova e boa: basta acessar e ficamos blindados e livres da interação. Papo-furado sim, mas jamais insultem a arte comentando que o elevador é lento ou rápido demais. Descrição fática derruba a arte. Seja criativo. Na placa do elevador existe uma advertência legal: verificar se o mesmo está parado ali. Adoro o “mesmo”. Imagino o “mesmo” em um canto, rosnando assustado. O comentário jocoso pega bem. O interlocutor fica satisfeito, ninguém invade ninguém e o constrangimento passa. Ao sair, ele dará um tchau feliz, quase arrependido de ter de abandonar aquele espaço compartilhado com você. 
No avião não existe a proteção do celular. A viagem pode durar horas. De novo um sorriso, um pedido de licença, o tempo preparatório para você afivelar-se e pronto: de São Paulo até Fortaleza serão mais de três horas. Não convém excesso de informações do tipo: “Estamos na fila 18, boa escolha para o Judaísmo” ou “O lugar 8 é de bom augúrio na China”. Por mais interessante que seja a numerologia histórica, pode irritar pelo pedantismo. Apresentar-se ajuda e a etimologia é caminho certeiro para a simpatia superficial. “Ah, você é Filipe, então você ama cavalos”; “Letícia? Você deve ser feliz”; “Cláudia, você manca?” Também existe pavonice erudita aqui, todavia, ao envolver o nome do interlocutor, o narciso dele atenuará a exibição do seu. A única coisa que perdoamos na vaidade alheia é se ela tiver por objeto a nossa. Como você vê, querida leitora e estimado leitor, há um mundo de técnica e talento na conversa rasa. Associar o nome da pessoa a uma personalidade ou santo é muito eficaz. Um homônimo de jogador de futebol famoso é terreno perigoso: pode sair do campo confortável do papo-furado para o da paixão. 
Conversar é uma arte; calar é sabedoria pura. Em tempos que ninguém cala e jamais escuta o outro, conversar bem, calar e ouvir viram tripé inovador. Infelizmente, quem mais necessita não lerá a reflexão que você acompanhou. É preciso ter esperança.