segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A luta contra a burocracia, Especial OESP - A Reconstrução do Brasil



Para ganhar agilidade e prestar serviços de melhor qualidade, o governo tem de promover um 'choque de gestão' e reinventar as relações de trabalho no setor público


José Fucs
05 Novembro 2016 | 18h19

Foto: Farrell
A importância da reforma do Estado na série
Imagine um país em que o governo, apesar das inevitáveis restrições orçamentárias, exercesse o seu papel com agilidade e eficiência. O número de ministérios, que chegou a 39 e depois caiu para 24, seria de apenas 15. A corrupção, antes endêmica, estaria ao menos sob controle. A burocracia, que atravancava os negócios e a vida dos cidadãos, teria diminuído consideravelmente. Os exemplos viriam de cima. Privilégios de autoridades, bancados com o dinheiro dos pagadores de impostos, como viagens em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira), apartamentos funcionais em Brasília, gordas aposentadorias com apenas oito anos de trabalho e férias de 60 dias, seriam extintos.
Para melhorar a qualidade do atendimento à população, sem aumentar impostos, sem inflar a máquina administrativa e sem estourar as contas públicas, o governo desse país imaginário recorreria às parcerias com empresas privadas e organizações sociais. Dividiria com elas a tarefa de prestar serviços públicos, como educação e saúde, e de gerenciar empreendimentos de infraestrutura, como estradas, portos e aeroportos. Para fiscalizar os serviços prestados por terceiros, seriam estabelecidas metas qualitativas e quantitativas de desempenho e feitas avaliações rigorosas de resultados. Com poucos cargos disponíveis para nomeações políticas, os funcionários públicos seriam motivados a prestar um bom serviço e poderiam alcançar os mais altos postos da carreira, por seus próprios méritos. Os servidores mais bem avaliados receberiam um bônus por seu desempenho e os que apresentassem resultados insatisfatórios com frequência seriam demitidos.
Provavelmente, para muitos brasileiros, desencantados com a política e os políticos, esse país poderia ser qualquer um, menos o Brasil. No Brasil dos pixulecos, das regalias oficiais, do patrimonialismo e do corporativismo, em que os políticos têm à disposição milhares de cargos de livre nomeação e aprovam leis em causa própria, é difícil imaginar que o Estado possa funcionar de maneira razoável, promovendo o bem comum. Boa parte do funcionalismo, instalada em trincheiras montadas no aparelho de Estado, está sempre pronta a defender os seus interesses, mesmo que nada tenham a ver com os da população a que deveria servir. Quer mais é preservar seus privilégios, como a estabilidade no emprego e a isonomia salarial – a bandeira erguida pelos sindicatos da categoria contra a bonificação por desempenho, que distingue os funcionários que se destacam dos que não fazem por merecer a premiação. “O Estado brasileiro funciona com uma silenciosa aliança entre o sistema político e a burocracia do setor público. Os políticos nomeiam um sujeito de confiança e não incomodam a burocracia e a burocracia aceita, acomoda-se ao status quo e quem paga a conta é a sociedade”, diz o cientista político Fernando Schüler, professor do Insper, uma escola de negócios de São Paulo.

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Trincheira fisiológica
Agora, porém, uma conjunção de fatores parece conspirar a favor da mudança. Com o impeachment e a Lava Jato, que ameaça jogar no xilindró boa parte dos políticos de Brasília, abriu-se uma oportunidade única para o País dar uma guinada. Ampliada pelo fim da farra fiscal e pela provável aprovação da PEC 241 – a Proposta de Emenda Constitucional que estabelece o teto dos gastos públicos – ela revela uma nova perspectiva no horizonte. O momento é propício para enfrentar o corporativismo estatal e promover um “choque de gestão” no governo federal, que possa se irradiar por estados e municípios. “O setor público no Brasil precisa ser chacoalhado”, afirma o cientista político americano, Steven Kelman, da Escola Kennedy de Governo, da Universidade Harvard.
Embora a expressão “choque de gestão” esteja meio desgastada hoje em dia, ela reflete com perfeição a profunda reforma pela qual o Estado brasileiro tem de passar, com a adoção de ferramentas de administração da iniciativa privada, para deixar de sugar recursos cada vez maiores da sociedade e entregar serviços de cada vez melhores aos cidadãos e às empresas. A ideia cultivada desde sempre no País, de que, para melhorar a atuação do governo e os serviços públicos é só gastar mais, terá de ceder espaço, enfim, à busca por mais eficiência, à otimização das despesas e às parcerias com o setor privado e as organizações sociais. Ao final do processo, quem sabe, talvez possa emergir um Estado mais enxuto, mais ágil e com menos corrupção, como no país imaginário retratado acima. “A PEC do teto vai provocar uma mudança cultural no meio político”, afirma o consultor Vicente Falconi, fundador da empresa de consultoria que leva seu sobrenome e um dos mais respeitados especialistas em gestão do País, com vários projetos desenvolvidos na área governamental. “A gente vai ter de fazer mais com menos e estabelecer prioridades”, diz Claudia Costin, professora visitante da Universidade Harvard e ex-ministra da Administração e da Reforma do Estado no governo Fernando Henrique. “Não adianta gastar um pouquinho em tudo e fazer tudo mal feito.”
Apesar de ser menos discutida que as reformas fiscal, da Previdência, política e trabalhista, a reforma do Estado, também chamada de reforma administrativa, é essencial para reduzir o peso da máquina pública e para o País realizar as suas potencialidades. Em setembro, a reforma do Estado ganhou uma comissão especial na Câmara dos Deputados para estudar o assunto. Também vem recebendo apoio crescente de pesos pesados do mundo dos negócios, como Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do conselho de administração do Grupo Gerdau, e Rubens Ometto Silveira Mello, presidente do conselho de administração da Cosan, que atua nos setores de energia e infraestrutura.
Com o objetivo de contribuir para aperfeiçoar a gestão pública, o Movimento Brasil Competitivo (MBC), uma organização fundada por Gerdau e dirigida ao aumento da competitividade do País, lançou o Pacto pela Reforma do Estado. Formado no final de 2015, o Pacto já conta com o apoio de 19 governadores, entre eles Geraldo Alckmin, de São Paulo, e Luiz Fernando Pezão, do Rio de Janeiro. O Pacto prevê a concentração de esforços para implementar uma série de medidas destinadas à melhoria da eficiência no setor público. Até agora, seu resultado mais expressivo foi a construção do modelo de Lei de Responsabilidade Fiscal Estadual, já aprovado no Rio Grande do Sul e em tramitação nas Assembleias Legislativas do Rio e de Goiás. “Não se trata de uma questão de Estado máximo ou mínimo, mas sim de um Estado que atenda à população com serviços de qualidade, com custos viáveis”, afirmou Gerdau, ao lançar o movimento, em encontro realizado em São Paulo, que teve a presença de 15 governadores. “Esse Pacto não é um documento. É uma chamada para ação, um compromisso de cidadania.”
A pauta da reforma do Estado atinge praticamente todos os campos da administração, da redução de ministérios e cargos de confiança ao aperfeiçoamento da Lei de Responsabilidade Fiscal e à reavaliação generalizada de processos; da reestruturação das carreiras públicas à implantação da bonificação e da meritocracia para o funcionalismo (leia o quadro). Na área de gestão propriamente dita, apesar de todos os esforços feitos nos anos 1990 para dar mais agilidade à máquina, o quadro é desalentador. Não há planejamento de longo prazo nas políticas públicas, nem um sistema de metas, para direcionar as ações governamentais. O governo toma decisões sem rumo definido, ao sabor dos acontecimentos. Segundo Falconi, o governo tem de criar uma organização de Estado para pensar alguns temas relevantes para o Brasil do futuro, que reúna pessoas de reconhecida competência em seus campos de atuação e representantes das Forças Armadas, das universidades e dos centros de pesquisa e tecnologia. “Como vão ser os transportes, as matérias primas e a energia daqui a 50 anos? Qual será o nosso modelo energético? De que forma a mudança climática poderá afetar o País? Como a gente vai se preparar para ela?”, pergunta Falconi. “Ninguém pensa nisso. Não tem direção futura de nada.”
Falconi conta que, no governo Dilma, sua consultoria fez um trabalho para racionalizar a estrutura dos ministérios, que poderia ser implementada sem grandes complicações. A empresa comparou a estrutura do Brasil, que na época tinha 39 ministérios, com as de três ou quatro países avançados, além de México e Argentina. Identificou os ministérios que eram comuns a todos os países e agrupou os demais, por afinidade. No final, a empresa propôs ao governo uma redução para 15 ministérios, o mesmo número dos Estados Unidos, um a menos que na Argentina e dois a menos que no México. Só que o projeto não andou. “A Dilma até queria, mas não levou o projeto adiante, porque, no Brasil, você não consegue governar se não negociar ministério. Ainda mais com esse monte de partido existente hoje no País”, afirma Falconi. “Cada um quer um ministério ou dois e você tem que dar. Depois, cada um faz uma coisa, sem qualquer articulação com os demais, e você não pode interferir.” Posteriormente, com o impeachment, o presidente Michel Temer cortou o número de ministérios, dos 32 que sobreviveram com Dilma para 24, mas ainda há muito a fazer para chegar aos 15 ministérios propostos por Falconi.
Um bom ponto de partida para ajustar a máquina, de acordo com Claudia Costin, seria realizar um “pente fino” nos gastos do governo, em cada área do Estado, em cada ministério, tanto de programas públicos quanto de pessoal, com o objetivo de identificar eventuais distorções e procurar corrigi-las. Eventualmente, um programa pode consumir um volume de recursos significativo, mas ter um impacto reduzido na sociedade. Também é fundamental rever os processos administrativos, para dar mais agilidade à gestão e acelerar a execução de projetos, que muitas vezes acabam não saindo do papel, apesar da liberação dos recursos necessários para a sua implementação. “Para mim, essa é a verdadeira reforma administrativa”, diz Claudia.
No campo das licitações e compras públicas, as travas para a atuação do governo prejudicam muito a gestão. Na ânsia de combater a corrupção e acabar com a impunidade, a Constituinte estabeleceu regras extremamente rígidas para as aquisições de produtos e serviços pelo Estado. Em 1993, com a Lei 8.666, que regula a questão, o governo tentou flexibilizar um pouco as normas, mas não conseguiu obter os resultados esperados. A legislação, paradoxalmente, acabou dificultando a boa gestão, mas não impediu o crescimento da corrupção. Existe também um excesso de órgãos de fiscalização – Procuradoria, Ministério Público, Tribunal de Contas, Polícia Federal. “Hoje, um dos maiores problemas que a gente tem é a boa intenção dos legisladores. Há uma compulsão nacional pelo aumento de legislação, regulação e fiscalização”, afirma o cientista político Luiz Felipe d’Avila, presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), uma organização voltada para a formação de novos líderes políticos. “No Brasil da Lava Jato e dos escândalos em série de corrupção, a tendência é ser ainda mais rigoroso e diminuir ainda mais a autonomia do gestor público. Mas, embora seja contraintuitivo, a gente tem de rever essas coisas, porque não funcionam e vão engessando o sistema cada vez mais.”
Para tudo isso funcionar, a máquina administrativa tem de estar bem azeitada – e isso está longe, muito longe, de se tornar uma realidade. Com 20,3 mil cargos de livre nomeação no governo federal, em todos os níveis, a interferência política tem um efeito perverso na administração (veja o gráfico). Além de muitos dos que ocupam os cargos em comissão não terem conhecimento da área em que atuam, prejudicando a profissionalização da gestão, a nomeação de apadrinhados políticos para as posições mais cobiçadas representa um importante fator de desmotivação dos servidores de carreira. Segundo o consultor Vicente Falconi, o ideal, com base nos parâmetros internacionais, seria que os cargos de livre nomeação não passassem de 1.000, apenas para abrigar as pessoas de confiança das autoridades do primeiro escalão e especialistas que sejam convidados a participar do governo. Todas as demais posições, de secretário-executivos de ministério, inclusive, para baixo, deveriam ser ocupadas por servidores de carreira. “Hoje, a máquina pública é utilizada como meio de negociação política. Os partidos disputam cargos até o quinto, sexto escalão. Nas estatais, os cargos são disputados a bala”, afirma. “É uma coisa horrorosa.”
Na visão de Falconi, o governo teria de fazer uma reestruturação completa nas carreiras do funcionalismo. Ele sugere que isso seja feito por meio de um sistema de pontos, que leve em conta os salários pagos pela iniciativa privada, o conhecimento necessário e o nível de responsabilidade de cada posição. Os valores das generosas aposentadorias garantidas pelo setor público também teriam de entrar na conta e ser abatidas, proporcionalmente, dos salários de cada função. A partir daí, os cargos seriam uniformizados em todos os ministérios e carreiras de Estado. Também teria de ser desenvolvido um sistema de avaliação que permita a implementação da meritocracia entre os servidores. Os funcionários mais bem avaliados ao longo do tempo estariam em melhores condições para disputar as promoções.
Além da reestruturação das carreiras e da implantação da meritocracia, o governo teria de realizar também uma espécie de censo do funcionalismo, para conhecer melhor o perfil de cada servidor e para saber onde tem gente demais, onde está faltando, quais posições são mais carentes e quais têm mais servidores do que o necessário. Nos governos de Lula e Dilma, não apenas o número de funcionários públicos se multiplicou, mas cresceu de maneira errada. O número de servidores em funções administrativas, de apoio, aumentou muito mais que o de posições técnicas. O professor Nelson Marconi, coordenador do Centro de Economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, diz que, com a criação de novas universidades federais houve, naturalmente, a necessidade de contratação de pessoal. Só que, em vez de concentrar as contratações nos professores, como seria de se esperar, o governo inchou o quadro administrativo. Marconi afirma que a quantidade contratada de professores foi praticamente a mesma de servidores de apoio. “É uma distorção. Não tem muita lógica uma universidade ter a mesma quantidade de servidores administrativos e de professores.”
Como se pode observar, por tudo o que o governo precisa fazer para aumentar a eficiência da máquina administrativa e melhorar a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos e às empresas, trata-se de uma tarefa não para uma, mas para várias gestões. Talvez, se realmente surgirem líderes que queiram enfrentar o desafio, só os nossos filhos ou netos, com cabelos brancos, possam testemunhar o final do processo. Ainda assim, apesar de todas as resistências às mudanças e da complexidade da tarefa, é possível começar, desde já, a criar as bases para o Brasil de amanhã.

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Cardápio de mudanças

A Batalha contra os privilégios, Especial OESP



A batalha contra os privilégios

Para baixar os custos de pessoal, profissionalizar a administração e conter as greves nos serviços públicos, o governo terá de enfrentar o corporativismo dos servidores e a resistência do Congresso e do Judiciário às mudanças
José Fucs
08 Outubro 2016 | 18h00
O mamute – um paquiderme pré-histórico com espécies que chegavam a alcançar cinco metros de altura e a pesar até dez toneladas – é considerado um dos maiores mamíferos de todos os tempos. Para efeito de comparação, o elefante, seu parente moderno e o maior animal terrestre existente hoje, pesa, no máximo, seis toneladas e sua altura não supera quatro metros. Talvez, por isso, o Estado brasileiro – gigante, pesado e lerdo – seja frequentemente comparado a um mamute. Mesmo com sua força e seu tamanho, o elefante parece acanhado para simbolizar as proporções extraordinárias adquiridas pelo Estado no País.
 

O fardo estatal se faz sentir sobre os cidadãos e as empresas de forma implacável. Ele se expressa nos impostos de Primeiro Mundo que os brasileiros têm de pagar, em troca de serviços de Terceiro Mundo, na burocracia que emperra o cotidiano das famílias e o desenvolvimento dos negócios e na corrupção endêmica, que cria dificuldades para vender facilidades. Mas, hoje, talvez, nada simbolize tanto o peso que a sociedade tem de carregar para manter o mamute em pé quanto o funcionalismo e seus privilégios.
Nos últimos anos, impulsionado pelo estatismo pregado nos governos Lula e Dilma, com impacto em todo o País, o número de funcionários públicos deu um salto. Segundo uma pesquisa realizada pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-DAPP), o total de funcionários na ativa passou de 5,8 milhões, em 2001, para quase 9 milhões, em 2014, nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal) e nos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), – um aumento de 54,4%. Isso sem contar os funcionários terceirizados, principalmente nas áreas de limpeza, segurança e manutenção predial, que somam cerca de 18 mil só no governo federal. O maior crescimento do efetivo, de 94%, aconteceu nos municípios, em parte pelas novas atribuições recebidas com a Constituição de 1988, para criar e manter serviços públicos de alcance local. No Executivo federal, embora o crescimento tenha sido um pouco menor – cerca de 30%, – foram contratados 120 mil novos servidores no período, mais que o dobro do total de trabalhadores do Bradesco, um dos maiores bancos do País.
Também contribuiu para o aumento do número de funcionários a criação de novos Estados e municípios após a promulgação da Constituição de 1988. Desde então, o número de municípios cresceu cerca de 40%, de 3.900 para 5.570. Isso levou ao aumento das representações nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional, ao aumento das bases do Judiciário e à criação de estruturas administrativas para dar suporte aos novos entes federativos. “O povo, para sustentar as novas estruturas, continuou o mesmo”, diz o jurista Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.
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Mais com Menos
Com o tsunami de contratações, era inevitável que os gastos com pessoal crescessem em progressão geométrica. Mas eles aumentaram em ritmo ainda mais acelerado que ao das contratações, em decorrência da concessão de aumentos salariais bem acima da inflação para o funcionalismo. O “rombo” existente hoje nos orçamentos do governo federal e de vários Estados e municípios é decorrente, em boa medida, do inchaço da folha de pagamento nesse período. Desde 2001, as despesas com pessoal tiveram um aumento de 127,3%. Passaram de R$ 171,6 bilhões para R$ 390,2 bilhões em 2014, em valores já corrigidos pela inflação. A diferença daria para o governo federal pagar o Bolsa Família, concedido a 13 milhões de beneficiários, de acordo com dados oficiais, por sete anos. A conta das benesses, como sempre, sobrou para os pagadores de impostos. O gasto per capita dos brasileiros para pagar os salários do funcionalismo quase dobrou em 14 anos, de R$ 976 para R$ 1.925, em valores de 2014, também considerando os três níveis de governo e os três Poderes. “A despesa de pessoal do governo é muito grande e tem muita importância na composição de gastos do governo”, afirma o professor Nelson Marconi, coordenador executivo do Fórum de Economia na FGV de São Paulo e um dos responsáveis pela reforma administrativa realizada no governo Fernando Henrique. “O ajuste fiscal tem de passar pela questão de pessoal.”
Enquanto no setor público os salários subiram, em média, cerca de 50% nos três níveis de governo desde 2001, na iniciativa privada o aumento médio ficou em 21,4%, já descontada a inflação do período. O aumento real do funcionalismo, na média, foi mais que o dobro do obtido no setor privado. Essa diferença só encontra paralelo em Portugal, onde alcança 58%, segundo um levantamento feito pelo economista Marcos Köhler, consultor legislativo do Senado. Na Alemanha, os salários do funcionalismo são, em média, 7% menores que no setor privado. Na França, 8%. Mesmo em países em que os salários do setor público são maiores, como Espanha, Grécia e Itália, a diferença fica em torno de 30%, bem aquém do que acontece no Brasil (e em Portugal). “Havia uma grande influência sindical no governo”, diz Köhler. “Isso contribuiu para a obtenção de acordos salariais muito favoráveis pelo funcionalismo no nível federal, que acabaram influenciando o setor público como um todo.”
Obviamente, a média salarial do funcionalismo esconde os casos extremos, tanto na base como no topo da pirâmide. Mas, nos últimos anos, os salários iniciais das diferentes carreiras da administração, em especial na esfera federal, receberam aumentos reais generosos, distanciando-os também dos valores pagos no setor privado. Enquadram-se nessa categoria os motoristas da Câmara Federal, que ganham mais de R$ 12 mil e os garçons do Senado, com salário superior a R$ 17 mil, o menor para servidores efetivos, sem escolaridade, mas com comprovação de “capacidade técnica” para a função. É no andar de cima, porém, que se encontram os casos mais escandalosos, particularmente no Poder Judiciário, onde os valores dos benefícios recebidos “por fora” superam, muitas vezes, os valores dos salários ou chegam bem perto deles, engordando os vencimentos. São tantos os subterfúgios que, em muitos casos, o teto constitucional – que limita os salários do setor público federal aos vencimentos recebidos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aos dos governadores nos estados e aos dos prefeitos nos municípios – tornou-se uma peça de ficção.
Mesmo com salários bem acima da média do mercado, custeados pelos contribuintes, o apetite do funcionalismo parece não ter fim. No momento em que o Brasil real enfrenta a recessão interminável, o desemprego recorde e a queda na renda, os servidores federais, protegidos pela estabilidade no emprego e com a aposentadoria garantida com o mesmo salário da ativa, lotam as galerias do Congresso Nacional para reivindicar, sem constrangimento, a aprovação de aumentos reais de salário e a preservação de suas vantagens. “Alguém teria de dizer para eles que nós estamos numa crise fiscal muito grande e que o que estão pedindo não tem nexo com o mundo real”, afirma Marconi. 
Ao mesmo tempo, as greves e ameaças de greves em serviços essenciais, como saúde e segurança, sem desconto dos dias parados e sem risco de represálias, tornaram-se uma realidade que afeta de forma dramática o dia a dia da população, em especial nas faixas de menor renda, que dependem quase exclusivamente dos serviços públicos. “No Brasil, há uma classe que se aproveita de todo o setor privado e manda no País”, diz o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “O Brasil é vítima do corporativismo estatal que se apropriou de Brasília.” Segundo o advogado Almir Pazzianotto, o ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), é difícil enfrentar os interesses do funcionalismo, porque os servidores têm intimidade com os deputados, senadores e estão dentro do Congresso, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais, que deveriam ser os responsáveis pela aprovação de medidas para restringir os privilégios. “A corporação não está pensando no bem comum, mas em seus próprios benefícios”, diz Pazzianotto. “Nós trouxemos a ideia do corporativismo do fascismo. É uma coisa um pouco medieval também, das velhas corporações de ofício, que se organizavam para proteger as atividades profissionais de seus integrantes”.
Embora o espírito de corpo predomine no funcionalismo, nem todos rezam por essa cartilha, Muitos servidores públicos fazem jus ao título. Trabalham duro para servir à população e se preocupam em efetuar suas tarefas com dedicação e eficiência, muitas vezes sob os olhares enviesados dos colegas. As generalizações quase sempre acabam promovendo injustiças. Feita a ressalva, porém, não dá para negar o que qualquer brasileiro que já entrou numa repartição pública pode observar. Em geral, há um contingente razoável de funcionários que, escudados pela estabilidade, fazem o que se costuma chamar em português claro de “enrolação”. Nos cargos de livre nomeação, que somam cerca de 21 mil, conforme os dados oficiais mais recentes, boa parte dos interessados, de acordo com Pazzianotto, já se aproxima dos políticos mal-intencionada, para obter um privilégio, e não para se tornar um servidor exemplar. “O princípio do privilégio é o não comparecimento ao trabalho, não ter a obrigação de cumprir horário”, diz. “Você sempre tem aquele funcionário faltoso, acumula falta, sempre tem atestado médico e você sabe que ele é apenas um ocioso, não quer trabalhar.”
Pazzianotto afirma que, ao assumir a presidência do TST, encontrou em seu gabinete mais de 200 funcionários comissionados, quando precisava de apenas 20. “Eu tinha até funcionário da presidência em Nova York. O marido foi para lá e a mulher foi atrás, devidamente autorizada.” Ele conta que, na ocasião, chamou um funcionário do TST, que já conhecia, para uma conversa. “Eu disse: ‘Escuta fulano, em todos esses anos que estou aqui, vejo você namorando pelos corredores o dia inteiro, está sempre encostado com uma funcionária, não necessariamente a mesma. Comigo você não vai fazer isso. Você vai ter de trabalhar.”
Embora haja muitas áreas com excesso de pessoal, há outras em que falta gente. De acordo com Nelson Marconi, na área administrativa, é comum haver uma quantidade grande de servidores, com baixa produtividade, porque não há tanta cobrança como na iniciativa privada. “De forma geral, daria para cortar fácil, fácil, pelo menos 10% do pessoal”, diz Nelson Marconi. “Na esfera administrativa, poderia ter um corte até maior, de uns 20%.” Por ora, porém, parece pouco provável que, no atual cenário político e econômico, o presidente Michel Temer esteja disposto a abrir mais essa frente de batalha./COLABOROU ISABELA BONFIM, DE BRASÍLIA

No centro da reforma, a atrofia da 'máquina' e a baixa produtividade

A reforma da Previdência dos servidores, que responde por mais de 50% do déficit na área, é essencial ao ajuste
José Fucs
08 Outubro 2016 | 18h00
O quadro atual do funcionalismo, contaminado pelo corporativismo dos sindicalistas da categoria, revela a urgência de se iniciar uma discussão séria sobre os privilégios dos servidores e a melhoria da gestão pública no País – e isso vale para o Executivo e também para o Legislativo e o Judiciário, onde a autonomia administrativa funciona como uma espécie de salvo-conduto para a distribuição de benesses para si próprios e os funcionários dos dois poderes.
Da regulamentação da Lei de Greve no setor público, prevista na Constituição e até agora não realizada, à redução dos cargos em comissão, para diminuir a interferência política na administração e a nomeação de funcionários sem conhecimento das áreas em que vão atuar; da limitação da estabilidade no emprego, para enfrentar a acomodação, à revisão das aposentadorias dos servidores, não faltam propostas para enfrentar o problema. O que falta é vontade política de levar adiante a missão. “A nossa administração ainda se baseia em princípios atrasados”, afirma o advogado Almir Pazzianotto, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do TST. “Essa falta de agilidade, decorrente da estabilidade indiscriminada, não dá ao Estado condições de exercer uma gestão eficiente, porque o serviço público, envelhece, fica embolorado, as pessoas adquirem vícios.”
Segundo ele, uma das prioridades deve ser a regulamentação da Lei de Greve. Pazzianotto afirma que é contrário às greves do funcionalismo, por não ser “compatível” com a natureza do serviço público, de servir à população. Para ele, a Polícia Federal, o setor de saúde e o Judiciário, por exemplo, não poderiam ter o direito de fazer greve. “A greve no serviço público afeta quase exclusivamente as classes pobres. O rico não vai ao Sistema Único de Saúde (SUS). Na área escolar, também, há greves de dois, três meses. Eu não lembro de uma greve em colégios particulares como o Dante Alighieri, o Vértice, o Porto Seguro, o Bandeirantes (todas escolas de São Paulo). Não acontece. Não há registro histórico.”
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O peso do funcionalismo
Apesar de ser favorável à regulamentação da Lei de Greve, para evitar os abusos, ele parece cético em relação ao encaminhamento da medida. “Uma das dificuldades para regulamentar a Lei de Greve é que a iniciativa tem de ser do presidente da República, como tudo o que diz respeito ao servidor público – e ele não quer ter o desgaste de uma regulamentação dessa natureza”, afirma Pazzianotto. “Ele acha que perde mas do que ganha. Eu acho que ganha mais do que perde, porque o grevismo não é uma característica dos servidores públicos, mas de uma minoria aboletada em entidades sindicais e que, na condição de dirigente sindical, não precisa trabalhar.”
Outra questão essencial, de acordo com o professor Nelson Marconi, coordenador executivo do Fórum de Economia na FGV de São Paulo, é a Previdência do funcionalismo, que causa um forte desequilíbrio fiscal. Com pouco mais de um milhão de aposentados, contra 25 milhões de aposentados da iniciativa privada, a Previdência dos servidores federais responde por mais de 50% do déficit na área. Para enfrentar o “buraco”, ele defende um aumento na alíquota das contribuições, “no espaço que houver”, e o fim da paridade salarial entre os ativos e os inativos, que se beneficiam de todos os aumentos salariais que quem ainda está trabalhando recebe. Marconi propõe também ao governo a realização de um plano de recursos humanos, antes da contratação de novos funcionários, para fazer um diagnóstico completo da administração federal e avaliar onde sobra gente, onde falta, onde tem gente com perfil inadequado, onde as coisas estão funcionando bem. Ele afirma que muita gente já disse que iria levar a ideia adiante, mas não levou. Com certeza, numa época em que a adoção de ferramentas empresariais de gestão está mais em pauta do que nunca, seria uma boa medida para o governo Temer implementar. Depois, ao menos, ele saberia melhor onde está pisando.