Para ganhar agilidade e prestar serviços de melhor qualidade, o governo tem de promover um 'choque de gestão' e reinventar as relações de trabalho no setor público
José Fucs
05 Novembro 2016 | 18h19
Imagine um país em que o governo, apesar das inevitáveis restrições orçamentárias, exercesse o seu papel com agilidade e eficiência. O número de ministérios, que chegou a 39 e depois caiu para 24, seria de apenas 15. A corrupção, antes endêmica, estaria ao menos sob controle. A burocracia, que atravancava os negócios e a vida dos cidadãos, teria diminuído consideravelmente. Os exemplos viriam de cima. Privilégios de autoridades, bancados com o dinheiro dos pagadores de impostos, como viagens em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira), apartamentos funcionais em Brasília, gordas aposentadorias com apenas oito anos de trabalho e férias de 60 dias, seriam extintos.
Para melhorar a qualidade do atendimento à população, sem aumentar impostos, sem inflar a máquina administrativa e sem estourar as contas públicas, o governo desse país imaginário recorreria às parcerias com empresas privadas e organizações sociais. Dividiria com elas a tarefa de prestar serviços públicos, como educação e saúde, e de gerenciar empreendimentos de infraestrutura, como estradas, portos e aeroportos. Para fiscalizar os serviços prestados por terceiros, seriam estabelecidas metas qualitativas e quantitativas de desempenho e feitas avaliações rigorosas de resultados. Com poucos cargos disponíveis para nomeações políticas, os funcionários públicos seriam motivados a prestar um bom serviço e poderiam alcançar os mais altos postos da carreira, por seus próprios méritos. Os servidores mais bem avaliados receberiam um bônus por seu desempenho e os que apresentassem resultados insatisfatórios com frequência seriam demitidos.
Provavelmente, para muitos brasileiros, desencantados com a política e os políticos, esse país poderia ser qualquer um, menos o Brasil. No Brasil dos pixulecos, das regalias oficiais, do patrimonialismo e do corporativismo, em que os políticos têm à disposição milhares de cargos de livre nomeação e aprovam leis em causa própria, é difícil imaginar que o Estado possa funcionar de maneira razoável, promovendo o bem comum. Boa parte do funcionalismo, instalada em trincheiras montadas no aparelho de Estado, está sempre pronta a defender os seus interesses, mesmo que nada tenham a ver com os da população a que deveria servir. Quer mais é preservar seus privilégios, como a estabilidade no emprego e a isonomia salarial – a bandeira erguida pelos sindicatos da categoria contra a bonificação por desempenho, que distingue os funcionários que se destacam dos que não fazem por merecer a premiação. “O Estado brasileiro funciona com uma silenciosa aliança entre o sistema político e a burocracia do setor público. Os políticos nomeiam um sujeito de confiança e não incomodam a burocracia e a burocracia aceita, acomoda-se ao status quo e quem paga a conta é a sociedade”, diz o cientista político Fernando Schüler, professor do Insper, uma escola de negócios de São Paulo.
Agora, porém, uma conjunção de fatores parece conspirar a favor da mudança. Com o impeachment e a Lava Jato, que ameaça jogar no xilindró boa parte dos políticos de Brasília, abriu-se uma oportunidade única para o País dar uma guinada. Ampliada pelo fim da farra fiscal e pela provável aprovação da PEC 241 – a Proposta de Emenda Constitucional que estabelece o teto dos gastos públicos – ela revela uma nova perspectiva no horizonte. O momento é propício para enfrentar o corporativismo estatal e promover um “choque de gestão” no governo federal, que possa se irradiar por estados e municípios. “O setor público no Brasil precisa ser chacoalhado”, afirma o cientista político americano, Steven Kelman, da Escola Kennedy de Governo, da Universidade Harvard.
Embora a expressão “choque de gestão” esteja meio desgastada hoje em dia, ela reflete com perfeição a profunda reforma pela qual o Estado brasileiro tem de passar, com a adoção de ferramentas de administração da iniciativa privada, para deixar de sugar recursos cada vez maiores da sociedade e entregar serviços de cada vez melhores aos cidadãos e às empresas. A ideia cultivada desde sempre no País, de que, para melhorar a atuação do governo e os serviços públicos é só gastar mais, terá de ceder espaço, enfim, à busca por mais eficiência, à otimização das despesas e às parcerias com o setor privado e as organizações sociais. Ao final do processo, quem sabe, talvez possa emergir um Estado mais enxuto, mais ágil e com menos corrupção, como no país imaginário retratado acima. “A PEC do teto vai provocar uma mudança cultural no meio político”, afirma o consultor Vicente Falconi, fundador da empresa de consultoria que leva seu sobrenome e um dos mais respeitados especialistas em gestão do País, com vários projetos desenvolvidos na área governamental. “A gente vai ter de fazer mais com menos e estabelecer prioridades”, diz Claudia Costin, professora visitante da Universidade Harvard e ex-ministra da Administração e da Reforma do Estado no governo Fernando Henrique. “Não adianta gastar um pouquinho em tudo e fazer tudo mal feito.”
Apesar de ser menos discutida que as reformas fiscal, da Previdência, política e trabalhista, a reforma do Estado, também chamada de reforma administrativa, é essencial para reduzir o peso da máquina pública e para o País realizar as suas potencialidades. Em setembro, a reforma do Estado ganhou uma comissão especial na Câmara dos Deputados para estudar o assunto. Também vem recebendo apoio crescente de pesos pesados do mundo dos negócios, como Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do conselho de administração do Grupo Gerdau, e Rubens Ometto Silveira Mello, presidente do conselho de administração da Cosan, que atua nos setores de energia e infraestrutura.
Com o objetivo de contribuir para aperfeiçoar a gestão pública, o Movimento Brasil Competitivo (MBC), uma organização fundada por Gerdau e dirigida ao aumento da competitividade do País, lançou o Pacto pela Reforma do Estado. Formado no final de 2015, o Pacto já conta com o apoio de 19 governadores, entre eles Geraldo Alckmin, de São Paulo, e Luiz Fernando Pezão, do Rio de Janeiro. O Pacto prevê a concentração de esforços para implementar uma série de medidas destinadas à melhoria da eficiência no setor público. Até agora, seu resultado mais expressivo foi a construção do modelo de Lei de Responsabilidade Fiscal Estadual, já aprovado no Rio Grande do Sul e em tramitação nas Assembleias Legislativas do Rio e de Goiás. “Não se trata de uma questão de Estado máximo ou mínimo, mas sim de um Estado que atenda à população com serviços de qualidade, com custos viáveis”, afirmou Gerdau, ao lançar o movimento, em encontro realizado em São Paulo, que teve a presença de 15 governadores. “Esse Pacto não é um documento. É uma chamada para ação, um compromisso de cidadania.”
A pauta da reforma do Estado atinge praticamente todos os campos da administração, da redução de ministérios e cargos de confiança ao aperfeiçoamento da Lei de Responsabilidade Fiscal e à reavaliação generalizada de processos; da reestruturação das carreiras públicas à implantação da bonificação e da meritocracia para o funcionalismo (leia o quadro). Na área de gestão propriamente dita, apesar de todos os esforços feitos nos anos 1990 para dar mais agilidade à máquina, o quadro é desalentador. Não há planejamento de longo prazo nas políticas públicas, nem um sistema de metas, para direcionar as ações governamentais. O governo toma decisões sem rumo definido, ao sabor dos acontecimentos. Segundo Falconi, o governo tem de criar uma organização de Estado para pensar alguns temas relevantes para o Brasil do futuro, que reúna pessoas de reconhecida competência em seus campos de atuação e representantes das Forças Armadas, das universidades e dos centros de pesquisa e tecnologia. “Como vão ser os transportes, as matérias primas e a energia daqui a 50 anos? Qual será o nosso modelo energético? De que forma a mudança climática poderá afetar o País? Como a gente vai se preparar para ela?”, pergunta Falconi. “Ninguém pensa nisso. Não tem direção futura de nada.”
Falconi conta que, no governo Dilma, sua consultoria fez um trabalho para racionalizar a estrutura dos ministérios, que poderia ser implementada sem grandes complicações. A empresa comparou a estrutura do Brasil, que na época tinha 39 ministérios, com as de três ou quatro países avançados, além de México e Argentina. Identificou os ministérios que eram comuns a todos os países e agrupou os demais, por afinidade. No final, a empresa propôs ao governo uma redução para 15 ministérios, o mesmo número dos Estados Unidos, um a menos que na Argentina e dois a menos que no México. Só que o projeto não andou. “A Dilma até queria, mas não levou o projeto adiante, porque, no Brasil, você não consegue governar se não negociar ministério. Ainda mais com esse monte de partido existente hoje no País”, afirma Falconi. “Cada um quer um ministério ou dois e você tem que dar. Depois, cada um faz uma coisa, sem qualquer articulação com os demais, e você não pode interferir.” Posteriormente, com o impeachment, o presidente Michel Temer cortou o número de ministérios, dos 32 que sobreviveram com Dilma para 24, mas ainda há muito a fazer para chegar aos 15 ministérios propostos por Falconi.
Um bom ponto de partida para ajustar a máquina, de acordo com Claudia Costin, seria realizar um “pente fino” nos gastos do governo, em cada área do Estado, em cada ministério, tanto de programas públicos quanto de pessoal, com o objetivo de identificar eventuais distorções e procurar corrigi-las. Eventualmente, um programa pode consumir um volume de recursos significativo, mas ter um impacto reduzido na sociedade. Também é fundamental rever os processos administrativos, para dar mais agilidade à gestão e acelerar a execução de projetos, que muitas vezes acabam não saindo do papel, apesar da liberação dos recursos necessários para a sua implementação. “Para mim, essa é a verdadeira reforma administrativa”, diz Claudia.
No campo das licitações e compras públicas, as travas para a atuação do governo prejudicam muito a gestão. Na ânsia de combater a corrupção e acabar com a impunidade, a Constituinte estabeleceu regras extremamente rígidas para as aquisições de produtos e serviços pelo Estado. Em 1993, com a Lei 8.666, que regula a questão, o governo tentou flexibilizar um pouco as normas, mas não conseguiu obter os resultados esperados. A legislação, paradoxalmente, acabou dificultando a boa gestão, mas não impediu o crescimento da corrupção. Existe também um excesso de órgãos de fiscalização – Procuradoria, Ministério Público, Tribunal de Contas, Polícia Federal. “Hoje, um dos maiores problemas que a gente tem é a boa intenção dos legisladores. Há uma compulsão nacional pelo aumento de legislação, regulação e fiscalização”, afirma o cientista político Luiz Felipe d’Avila, presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), uma organização voltada para a formação de novos líderes políticos. “No Brasil da Lava Jato e dos escândalos em série de corrupção, a tendência é ser ainda mais rigoroso e diminuir ainda mais a autonomia do gestor público. Mas, embora seja contraintuitivo, a gente tem de rever essas coisas, porque não funcionam e vão engessando o sistema cada vez mais.”
Para tudo isso funcionar, a máquina administrativa tem de estar bem azeitada – e isso está longe, muito longe, de se tornar uma realidade. Com 20,3 mil cargos de livre nomeação no governo federal, em todos os níveis, a interferência política tem um efeito perverso na administração (veja o gráfico). Além de muitos dos que ocupam os cargos em comissão não terem conhecimento da área em que atuam, prejudicando a profissionalização da gestão, a nomeação de apadrinhados políticos para as posições mais cobiçadas representa um importante fator de desmotivação dos servidores de carreira. Segundo o consultor Vicente Falconi, o ideal, com base nos parâmetros internacionais, seria que os cargos de livre nomeação não passassem de 1.000, apenas para abrigar as pessoas de confiança das autoridades do primeiro escalão e especialistas que sejam convidados a participar do governo. Todas as demais posições, de secretário-executivos de ministério, inclusive, para baixo, deveriam ser ocupadas por servidores de carreira. “Hoje, a máquina pública é utilizada como meio de negociação política. Os partidos disputam cargos até o quinto, sexto escalão. Nas estatais, os cargos são disputados a bala”, afirma. “É uma coisa horrorosa.”
Na visão de Falconi, o governo teria de fazer uma reestruturação completa nas carreiras do funcionalismo. Ele sugere que isso seja feito por meio de um sistema de pontos, que leve em conta os salários pagos pela iniciativa privada, o conhecimento necessário e o nível de responsabilidade de cada posição. Os valores das generosas aposentadorias garantidas pelo setor público também teriam de entrar na conta e ser abatidas, proporcionalmente, dos salários de cada função. A partir daí, os cargos seriam uniformizados em todos os ministérios e carreiras de Estado. Também teria de ser desenvolvido um sistema de avaliação que permita a implementação da meritocracia entre os servidores. Os funcionários mais bem avaliados ao longo do tempo estariam em melhores condições para disputar as promoções.
Além da reestruturação das carreiras e da implantação da meritocracia, o governo teria de realizar também uma espécie de censo do funcionalismo, para conhecer melhor o perfil de cada servidor e para saber onde tem gente demais, onde está faltando, quais posições são mais carentes e quais têm mais servidores do que o necessário. Nos governos de Lula e Dilma, não apenas o número de funcionários públicos se multiplicou, mas cresceu de maneira errada. O número de servidores em funções administrativas, de apoio, aumentou muito mais que o de posições técnicas. O professor Nelson Marconi, coordenador do Centro de Economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, diz que, com a criação de novas universidades federais houve, naturalmente, a necessidade de contratação de pessoal. Só que, em vez de concentrar as contratações nos professores, como seria de se esperar, o governo inchou o quadro administrativo. Marconi afirma que a quantidade contratada de professores foi praticamente a mesma de servidores de apoio. “É uma distorção. Não tem muita lógica uma universidade ter a mesma quantidade de servidores administrativos e de professores.”
Como se pode observar, por tudo o que o governo precisa fazer para aumentar a eficiência da máquina administrativa e melhorar a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos e às empresas, trata-se de uma tarefa não para uma, mas para várias gestões. Talvez, se realmente surgirem líderes que queiram enfrentar o desafio, só os nossos filhos ou netos, com cabelos brancos, possam testemunhar o final do processo. Ainda assim, apesar de todas as resistências às mudanças e da complexidade da tarefa, é possível começar, desde já, a criar as bases para o Brasil de amanhã.
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