sábado, 23 de fevereiro de 2013

O que deu nele? Para o teólogo Leonardo Boff, ex-aluno, ex-colaborador e alvo do rigor ratzingeriano, papa foi lúcido ao separar a pessoa da função


O Estado de S.Paulo
LAURA GREENHALGH
Roma tem uma enzima que transforma todo mundo." Há quase um ano, em entrevista ao Aliás, o teólogo brasileiro Leonardo Boff assim se referiu ao ambiente de maquinações da Cúria Romana e, em particular, à guinada de Joseph Ratzinger, seu ex-professor na Universidade de Munique e uma das vozes do Concílio Vaticano II - guinada rumo a um catolicismo ortodoxo, tradicional e dogmático. "Era um professor adorado pelos alunos, mas mudou radicalmente ao assumir a Congregação para a Doutrina da Fé", disse então o entrevistado. Seguramente, nos últimos dias a enzima voltou a rondar os pensamentos desse ex-aluno do mestre alemão, por quem Boff foi punido com o silêncio obsequioso (em razão de divergências teológicas), levando-o a abandonar a ordem franciscana para declarar-se leigo.
Numa semana patrocinada por tantas surpresas vindas de Bento XVI, o papa renunciante, Boff voltou a ser ouvido pelo Aliás. Encontra-se nas opiniões expressas a seguir um desafeto que demonstra grande respeito pelo sujeito de sua contenda. Boff calcula o tamanho e as implicações da renúncia do pontífice. Reconhece-lhe a grandeza do gesto. Fala das pressões a que estaria sendo submetido, da possibilidade de ter sido traído num ambiente infestado de bajuladores e, baseando-se na convivência que ambos tiveram no passado, arrisca-se a dizer que Bento XVI poderá mesmo se recolher a uma vida de silêncio e oração, enquanto espera pelo Juízo. "Esse tipo de postura piedosa tem a ver com o catolicismo bávaro, no qual ele foi formado", acrescenta. Eis como Leonardo Boff analisa a decisão histórica que deve sacudir pilares de uma instituição monolítica, fundada no sagrado, mas respaldada pelo humano:
A pessoa e a função
"A renúncia em si não chegou a causar surpresa porque Bento XVI havia acenado algumas vezes nessa direção. Seu irmão Georg, também padre e mais velho do que ele, disse há poucas semanas, como pude ler num jornal alemão: 'Meu irmão deveria renunciar e viver tranquilo seus últimos tempos'. Esse papa soube distinguir a pessoa da função. Quando se deu conta de que, como pessoa, não poderia mais cumprir adequadamente a função, que é a de dirigir a Igreja, humildemente reconheceu a dura lei da natureza que impõe limites. E renunciou. Não é fácil um ancião adoentado governar uma China inteira de fiéis, algo como 1,2 bilhão de católicos. Louvo seu desprendimento e sua lucidez.
O nível das pressões
"Se Bento XVI estiver convencido de que a linha pastoral e política que vinha imprimindo à Igreja é a correta, seguramente vai influenciar os cardeais, ao menos os que nomeou, para que prossigam no mesmo curso. Mas suspeito que os vários escândalos, particularmente dos pedófilos e do Banco do Vaticano, tenham lhe mostrado que outro caminho para a Igreja talvez possa conter menos riscos e um futuro papa consiga gerenciar melhor as crises. Ele vinha sofrendo muita pressão, imagino até que estava com a cabeça embaralhada nos últimos tempos. Quando cardeal, fez circular um documento com sigilo pontifício determinando o rebaixamento dos envolvidos nos casos de pedofilia, mas proibindo que fossem entregues aos tribunais civis. Mais recentemente, como papa, ao tomar conhecimento de casos envolvendo não só padres, mas bispos e até um cardeal, publicamente pediu desculpas e abriu o caminho para o julgamento deles fora da Igreja. Imagine a raiva que despertou e a oposição que passou a enfrentar... E o que dizer dos documentos sigilosos que desapareceram da sua mesa de trabalho, surrupiados pelo próprio mordomo? Não tenho dúvida de que ele sentiu o golpe da traição. Tudo isso deve tê-lo feito pensar na renúncia.
Próximo ato
"Pode ser, e creio mesmo nisso, que Bento XVI vá se retirar efetivamente e viver como monge, dedicando-se à vida espiritual. Isso tem muito a ver com o catolicismo bávaro no qual ele se formou. Poderá mergulhar num silêncio piedoso, profundo, para viver de oração e esperar pelo Juízo.
Calculando o impacto
"Seu gesto pode abrir uma brecha para mudanças na Cúria Romana. Na verdade, uma brecha que oficialmente já fora apresentada por Paulo VI, com o decreto de 23 de novembro de 1970, Ingravescentem aetatem, pelo qual aposentava todos os cardeais ao atingirem 80 anos, excluindo-os de participar do conclave para a eleição de um novo papa. Paulo VI decretou também que todos os bispos, aos 75 anos, deveriam pedir a renúncia, podendo ou não ser aceita por Roma. Tais mudanças, lá trás, irritaram enormemente os cardeais da Cúria. E mais: o decreto dava a entender que o limite de idade de 80 anos também poderia valer para o papa. Hoje se sabe que Paulo VI queria se retirar. Só não o fez porque foi advertido de que grupos conservadores poderiam não acolher o novo pontífice e continuar obedecendo a ele, mesmo tendo abdicado. Isso dividiria a Igreja, como aconteceu no passado, quando se chegou a ter até três papas que se excomungavam entre si. Não me admiraria se algo parecido acontecesse agora. Mas tudo depende da linha que o novo pontífice tomar. Se for aberto demais, cristãos fundamentalistas e conservadores podem dar obediência ao papa renunciante Bento XVI e negá-la ao outro. Espero que isso não aconteça. Seria uma tragédia ter uma Igreja com duas cabeças.
Mensagem ao clero
"Creio que a referência que ele fez ao Vaticano II, ao falar aos padres essa semana, é um recado para fora, para além da Cúria, que sempre se opôs às resoluções do Concílio. O papa hoje se dá conta de um certo fracasso seu por não ter levado adiante a agenda reformadora do Vaticano II. Mas, por outro lado, tem sido complacente com os lefebvrianos (seguidores do arcebispo francês Marcel Lefebvre) que rejeitam o Concílio in totum. Ao retomar o tema agora, Bento XVI faz um apelo para a reforma da Igreja. Mas não qualquer reforma, somente aquela que se inscreve dentro dos parâmetros do Concílio. Isso é um bom sinal. E uma advertência à Cúria.
Colégio eleitoral
"A Cúria Romana é uma fogueira das vaidades, administrada por todos aqueles celibatários não integrados ao mundo, à realidade. Brigam até pela proximidade física do papa, para ver quem fica mais perto dele, coisas assim. Acho tudo isso um horror. O colégio de cardeais hoje é formado majoritariamente por conservadores e o que se vê, lá dentro, é a ausência de mentes brilhantes e proféticas. Na média, são despreparados e preguiçosos. Talvez votem na linha da continuidade até para não ter o trabalho de enfrentar a mudança. Agora, a Igreja também surpreende. Depois de Pio XII, um papa conservador e controvertido, quem foi eleito? João XXIII, o reformador. Então, tudo é possível. Se de repente resolvem eleger alguém que venha de uma região mais periférica, e se esse novo pontífice chegar com ideias diferentes, ele poderá ser o agente de mudanças numa estrutura que depende sempre de uma cabeça absolutista. Seja como for, o que se precisa hoje é de um homem que una a Igreja.
Diálogo entre religiões
"Se o sucessor seguir a linha de Bento XVI, o diálogo será difícil. Porque o papa Ratzinger orientou-se pelos dogmas e pela reafirmação da exclusividade da Igreja de Roma como suprema autoridade sobre todas as demais. Enquanto não se questionar o centralismo do sistema romano, monárquico e absolutista, não haverá união das Igrejas e o diálogo se transformará numa retórica de civilidade. Em relação às religiões, Bento XVI fez uma leitura medieval, segundo a qual fora da Igreja Católica não há salvação. Isso está no documento Dominus Jesus, de 2000, quando ainda era cardeal. Como papa, manteve-se coerente. Não significou que tenha perdido a elegância ao visitar mesquitas, sinagogas e outros templos. Mas as categorias teológicas que maneja o impedem de ver densidade divina em tais manifestações. Para ele, essas categorias não passam de esforços humanos que não atingem a meta só alcançada por mediação da Igreja Católica. Uma coisa podemos dizer: Jesus jamais faria isso. E nem São Pedro, que acolheu o oficial romano mesmo antes que fosse batizado, como relatado nos Atos dos Apóstolos."

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Novela cubana



22 de fevereiro de 2013 | 2h 09
Nelson Motta - O Estado de S.Paulo
Se os eficientíssimos serviços de repressão cubanos, que há anos espionam Yoani Sanchez dia e noite, tivessem descoberto a menor prova de suborno, a "agente milionária da CIA" já estaria presa. É sintomático que, para eles, alguém só discorde do governo se levar dinheiro. Freud diria que estão falando deles mesmos. 

Antigamente eles queriam ser mais realistas que o rei, hoje tentam ser mais tirânicos que os tiranos, como mostraram os protestos contra Yoani em Recife, Salvador e Feira de Santana, não só com gritos e faixas, mas esfregando dólares falsos no seu rosto e puxando os seus cabelos.

Mas Yoani até gostou dos protestos, como um sopro de democracia para quem vive numa ditadura sufocante, e se divertiu ouvindo velhas palavras de ordem "que nem em Cuba se ouvem mais". O resultado foi uma repercussão muito maior - maciçamente a favor da blogueira - do que teria a sua viagem ao Brasil.

No sertão baiano, uma milícia de talibãs tropicais impediu a exibição do filme Conexão Cuba-Honduras, porque não queriam discutir nada, mas calar o opositor no grito. Quando conseguiu falar, Yoani disse que vive numa sociedade "onde opinião é traição" e eles vaiaram. Mas deveriam aplaudir, porque no Brasil que eles sonham também será assim. A maior fragilidade da democracia é poder ser usada livremente pelos que querem destruí-la, a começar pela liberdade de expressão. 

Yoani escreve, descreve e analisa muito bem o cotidiano de Cuba, mas suas criticas não são violentas, debochadas ou incendiárias. Muitas vezes são crônicas sobre as dificuldades para comprar um ovo, o elevador quebrado há oito anos, a escassez de quase tudo, os roubos e malandragens sistêmicos, a internet lenta e censurada, os privilégios da elite.

Como quase todos num país ainda na idade do byte lascado, Yoani não tem conexão em casa. É obrigada a postar em hotéis a preços absurdos porque as poucas lan houses são só para estrangeiros e seu blog não pode ser acessado na ilha. 

Agora Yoani quer usar o dinheiro dos seus prêmios culturais ganhos no exterior para fundar um jornal independente. Ley de Medios em Cuba já!

Chacina à latino-americana


Mac Margolis - O Estado de S.Paulo
Chacinas, por razões evidentes, estilhaçam a fé e zombam da razão. Mas há uma pergunta que me acompanha sempre que estoura mais uma. Como é que os Estados Unidos têm tantas? Como um país que tem tanto se presta a tamanha miséria? Poderoso e com uma queda para o espetáculo cinematográfico. O assassino em série bem que poderia ser o grande símbolo atual da América contemporânea. 

Exagero? Afinal, dificilmente passa um mês sem que um tresloucado junte mais um arsenal do diabo, invariavelmente encomendado pela internet, vista o boné e o colete de Kevlar, como manda o script, e parta para a escola. Em minutos, o cenário de humilhações da sua infância vira palco da vingança saneadora da alma, ato fechado por um suicídio. Inicia-se outra rodada de luto e revolta nacional, ao toque de sirenes e sermões antiarmamentistas.

Claro, nenhum país detém o monopólio das chacinas. Em 2011, um atirador matou 12 crianças na escola onde estudou, em Realengo, no Rio, e um jovem com metralhadora disparou contra o público de um cinema no Morumbi, em 1999. No entanto, esses atos impressionam menos como delitos originais do que plágios da letalidade à americana, potencializada por um mundo globalizado. Connecticut, Colorado, uma base militar no Estado do Texas. Não importa o endereço nem quão protegido possam parecer. O chacinador suicida sempre acha sua brecha. 

Mas por que só (ou quase só) ocorre nos EUA? Uma das respostas mais frequentes é a suposta banalização das armas. Que mais esperar de um país em que se pode adquirir ferramentas letais com o dedilhar do teclado e um cartão de crédito? James Holmes, que estreou seu próprio filme num cinema do Colorado, precisou de apenas um laptop e US$3 mil para juntar seu paiol. 

Hoje, o Congresso e a sociedade americana pregam o fim do bazar livre das armas. No entanto, a reza óbvia pode ser enganadora. Considere o novo relatório sobre violência no mundo, elaborada pela ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal. Nele, há o novo ranking das 50 cidades mais violentas do mundo. 

As dez piores metrópoles são da América Latina. Honras para San Pedro Sula, segunda cidade de Honduras, com 169 homicídios por cada 100 mil habitantes. Em seguida, vêm Acapulco, no México (143 por 100 mil) e Caracas (118). O Brasil amarga 14 capitais na lista vermelha, liderada por Maceió, com quase 86 assassinatos por 100 mil habitantes. Os EUA tampouco escapam. Das seis cidades americanas na lista das mais perigosas incluem-se Detroit (17.º lugar), New Orleans (21.º), San Juan (33.º), Saint-Louis (40.º) Baltimore (41.º) e Oakland (43.º). 

Causas. No entanto, é a América Latina, com 41 das piores 50, que mais chama atenção. Entre as razões da violência, há algumas bem familiares. Drogas, gangues e impunidade. A grande ausente da lista: a proliferação das armas de mão. A posse e o porte de armas e seu uso "não são a causa da violência", afirma a pesquisa. 

Um exemplo é o México, país convulsionado por narcotraficantes, que amarga 60 mil mortos nos últimos seis anos, mas onde o porte particular de armas está vetado e sua posse, severamente controlada. Já a sangrenta Venezuela ocupa o modesto 27.º lugar mundial em posse particular de armas de fogo, segundo o site Gunpolicy.org

Mais surpreendente, concluem os autores do estudo: "Em países com menos restrições às armas há muito menos violência que outros onde prevalecem proibições e restrições." A principio, soa música para os ouvidos dos ultraconservadores americanos, que se opõem a controles maiores sobre o comércio e porte de armamento. É direto da cartilha do Partido Republicano a ideia da ONG mexicana de que "o desarmamento não detém os delinquentes violentos que sempre têm sua forma de obter armas".

Muito mais relevante é a já clássica reclamação latino-americana. Polícia atrapalhada. Bandido que usa uniforme. Tribunal que não pune. No México, em Honduras e na Venezuela - campeões da barbárie -, 90% dos casos de homicídios nem sequer chegam aos tribunais. Sem policiar a polícia, fortalecer a Justiça e castigar o bandido, retirar armas é tiro de festim.
* Mac Margolis é colunista do 'Estado', correspondente da Newsweek e edita o site www.brazilinfocus.com.