quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Sentado nas quatro

O mar rugiu nesta mesma página 8, na semana passada. Prostituto da vida, como salientou o Christian Carvalho Cruz, o Atlântico se ressentiu de não ter engolido um surfista americano lá na praia portuguesa de Nazaré. Pois nesse ritmo de mar que vai e volta, ei-lo aqui arrematando de novo uma história que, como disseram os maledicentes, também "parece coisa de lusitano": passear de ônibus numa praia. Seis rio-clarenses afundaram o busão da família na Jureia e perderam R$ 50 mil para as ondas. A notícia vazou pelo litoral e pelo interior como As Férias Frustradas do Ano, e quem pôde se escondeu na ignorância dos fatos. Os Herminis juram de pé firme que foi tudo na inocência. A veire, então.

Em junho, Marcia e Bardô Hermini sentaram com as gêmeas para pensar numa fuga de Rio Claro. Fuga rápida, com volta marcada, bem diferente da primeira, há duas décadas, quando Badô teve um infarto aos 33 anos. O golpe no miocárdio o levou a reformar a vida maluca e um ônibus velho, no qual enfiou a mulher e as crianças com a ideia de estabelecer uma rotina mansa em Porto Seguro. Ali o técnico em eletroeletrônica vendeu o transporte, já um trambolho, e serviu no que sabia, em oficinas mecânicas e cozinhas de hotel, porque também é chegado num fogão e num tempero caseiro.  

Mas as gêmeas obviamente cresceram, e sem escola não dava. Voltaram todos para as bandas de São Paulo, achando que a estância paulista de Analândia merecia um investimento. Abriram pizzaria, restaurante, trabalharam e moraram num camping. "Mas a vida muda por motivos vários, quebra, começa de novo, e vai, e vai", diz Badô, num tom lamentoso. O fato é que ele retornou à terra natal para trabalhar como chef e organizador de festas, muitas festas, já com o próprio bufê. Então num susto, "de onde era aquele homem, meu Deus?", viu um senhor preparando um porco no rolete. Pimba na gorduchinha! O bicho todo pururucado, aquela homarada em volta tomando cerveja, o mulherio pedindo a carne mais branquinha, o povo do sítio querendo a cabeça para comer as bochechas em casa... 

Badô olhou para a tradição - o porco, melhor dizendo, a leitoa no rolete é famosa em Toledo, no Paraná - e resolveu personalizar. Bolou uma máquina que desmonta em três partes, mas que sustenta bem um suíno de 60 quilos, e há um ano e meio comprou um Mercedes Benz Incasel 1980 de uma banda sertaneja - a Diligence Company - para tornar o porco itinerante. Acoplou cinco jogos de bancos, adaptou uma cozinha com pia e botijão, parafusou dois freezers de 480 litros cada no fundo do coletivo e estampou um adesivo na lateral: B&M. "Já perguntaram se é Bruno & Marrone ou Bob & Marley", diz Graziela, uma das filhas de Badô e Marcia. 

O carro-chefe da Nave do Porco era a leitoa no rolete, que eles compram de um fornecedor totalmente desobstruída das vísceras, sem gordura quase, só uma pancettinha... Mas o Busão também carregava costelão bovino, frango, peixe, bebidas e acompanhamentos, dependendo do pedido. E incluía, caso fosse o desejo, o tal carneiro à paraguaia, aberto pelo dorso, "que a gente chama de chupa-cabra, mesmo não sabendo se chupa-cabra existe", confessa Gabriela. A Nave viajava, mas para perto. O mais longe que tinha chegado era Araçatuba. Como o fim de ano tinha sido bom, decidiram que era hora de alçar voo alhures e descansar um pouco. Se fossem de busa, pra dormir tinham onde, pra fazer comida tinham onde. Só precisavam de água, luz e banheiro. 

Precisavam de um camping, enfim. Alguém comentou sobre a Jureia. Entraram no Google e lá estava o Camping do Milico, no costão, a 18 km da Barra do Ribeira, com acesso pela areia. Eles aceitavam ônibus? Não sabiam. Alguém ligou pra lá? Ninguém. Mas, se não desse certo, tudo certo. Na perspectiva dos Herminis, eles dariam meia volta e iriam para Ilha Comprida. Sairiam de férias assim meio na louca, como tantos, mas chacoalhando num ônibus, como poucos. "Vamo? Vamo!"

Na segunda retrasada, a Big Monday deles, a Nave estacionou às 2 da manhã à beira da balsa que leva para Barra do Ribeira, bairro de Iguape. Levava dentro Badô, Marcia, a filha Graziela, Luciano (o namorado dela), Marcelo e Miller (chegados da casa). De imediato, ouviram um não. Ônibus não pega a balsa para o outro lado, avisou um funcionário do ferry. Badô mostrou uma placa com preços da Dersa proibindo apenas ônibus e caminhão trucados. O cara respondeu que era uma placa padrão, nada a ver com o lugar. Badô diz que concordou: "Ô, parceiro, trabalhei com isso, sei como é: se entra na frente e baixa a balsa, e se a traseira encosta do lado e a roda fica boba no ar, acabou. Só o trator pode tirar. Valeu, obrigado". Trancaram o ônibus e passaram a pé. 

Tomaram uma cerveja, conheceram o lugar e tal. Voltaram pela balsa às 3h15 e foram dormir, com o plano de zarpar no dia seguinte para outra ilha, a Comprida. Acontece que o Miller, quando levantou, foi fumar um cigarro lá fora e deu de cara com outro funcionário da balsa: "Pode vir, pode vir, que eu deixo passar". Badô coçou os olhos, penteou o bigode com os dedos, sentou no volante, funcionou o ônibus e foi pra vila. Na praça, perguntou do Camping do Milico. "O senhor vira li, sai na praia e vai andando pela areia." Na praia? "Sim, na praia, é a Avenida Beira-Mar, aqui não tem estrada lateral, paralela."

Logo o Busão cruzou com carro indo e vindo, moto indo e vindo, tudo ali. Badô achou que procedia, parecia asfalto. "Também não sou um tonto, minha família inteira dentro do ônibus, não vou entrando na praia de trouxa", frisou. Eram 9h30. A maré baixa permitia uns 100 metros entre a mata e a água. Badô rodou uns 8 km, mas chegou num ponto em que, de repente, a coisa melou. A Nave do Porco assentou nas quatro de uma vez, não andou nem pra frente nem pra trás. Atolou implacavelmente. Empacou. 

Logo chegou um guarda-parque perguntando se Badô tinha visto um sinal dele. "Eu vi a caminhonete com o braço pra fora, até tirei o pé do acelerador pra voltar, mas ele estava no meu retrovisor há uns 50 metros." Adenir e Redivaldo, os guarda-parques, falam por si: "A praia mudou muito de uns cinco anos pra cá, virou uma praia de saibro a partir de um certo trecho, um areião", diz Adenir, dez anos de Jureia. Se um dia houve uma placa alertando pra isso, ele não sabe se a água levou ou se alguém tirou. Mas a prefeitura não se predispôs a colocar outra. "Eles vieram com a cara e a coragem, ninguém mais praticamente vai pro Camping do Milico, estavam na inocência mesmo." Rivaldo foi mais sucinto: "Deu dó".

Sem sinal de celular, a família indicou o Miller para acompanhar o guarda-parque até a base, onde ligariam para o Índio, mecânico e desentalador do lugar. "O Índio chegou lá pela 1 e meia, a maré já subindo, e com uma Hilux", ri Badô, aquele riso tenso. "Depois veio com um guinchinho velho, caindo aos pedaços, desmanchando, e todo mundo falando que tinha de ser um trator." Puxa daqui, cava de lá, a Nave só fazia chafurdar. Mas o circo de palpites e pitacos que se armou em volta se desfez com a noite. E os seis viraram uma meia dúzia de náufragos, com os colchões e um punhado de roupa lá em cima, no mato, à espera do dia seguinte.

Até lá haveria uma nuvem de borrachudos e pernilongos - e, ironia de Poseidon, uma lua cheia que prateou o ônibus e fez subir a maré num tanto que girou a Nave, deixando-a de focinho pro mar. Badô saiu do mato e grudou no volante. O motor, que ficou ligado o dia inteiro, não podia morrer, para não entrar água pelo escapamento. Ao mero sinal vermelho no painel, ele acelerava. Rezou, implorou a Deus, fez promessa pra Nossa Senhora, apelou para o capeta. "Não podia perder a única coisa que tinha pra trabalhar", justifica. "Mas a água passava por cima do ônibus e entrava por baixo, batia aqui no meu peito, eu me senti dentro de um aquário. Não existe nada mais forte que o mar."

Num certo momento arrearam, ele e seu ganha-pão. Badô virou a chave, foi pro fundo do ônibus, pulou pela janela e sentou lá em cima, com a família, vendo o areião virar praia de tombo e o ônibus um berço de ninar, gingando de um lado pro outro. Às 2 e meia da manhã a água os alcançaria novamente, molhando os colchões e as roupas, até então queimadas pelo dia. Na terça-feira, a pele é que iria esturricar.

Excursão de turista? Nenê Agrícola tem esse nome porque o pai era Antônio Agrícola. E o pai era Antônio Agrícola porque a mãe, muito fervorosa, viu no calendário que no dia 4/11 era dia de Santo Agrícola, que protegia a lavoura. Funcionário do Instituto de Terras, candidato a vereador não eleito, ele tem uma casa em Iguape e outra no Prelado, vila a uns 8 km de onde o ônibus encalhou. Na segunda-feira, quando avisaram do acontecido, pensou que era excursão de turista ou de aluno. Mas no dia seguinte contaram outra história pra ele: "Nenê, é uma família, seis pessoas, tudo branquelo, os caras estão cozinhando no sol". 

O servidor público mandou rebocar os Herminis e seus agregados, mas já era tarde para alguns. Graziela e a mãe tinham insolação, Márcia também inchou com a alergia a picadas, e os pés e o couro cabeludo de Miller ferviam com queimaduras de terceiro grau. De nada adiantou a tendinha branca que armaram na arquibancada do desespero. O protetor solar tinha ido para o beleléu e eles já começavam a depenar o ônibus, tirando o freezer, a pia, os mantimentos, o que deu. 

"Não entendo por que ninguém falou em estivar o ônibus", pergunta-se Nenê. "Podiam ter jogado uns galhos embaixo, o guarda-parque deveria saber disso, teriam tirado ele sem grandes danos. Cavaram e ajudaram o mar." Ele acampava muito na Praia do Rio Verde, depois do maciço, onde tem o areião. No seu entender, a água foi comendo, comendo, comendo e depositou tudo do lado de cá, onde a nave se atascou. "Virou um saibo grosso, uma areia movediça, onde se atola até o tornozelo só de caminhar, e ninguém pra avisar isso."

Badô, que já foi Vadô por ser José Salvador, só foi ter com Nenê de madrugada. Passou a terça às voltas com a Patrol e outra máquina que, no jogo de puxa e estica, acabaram quebrando o para-brisa da Nave, deixando-a caolha. Por baixo, os trancos nervosos quebraram o metalon e a ponta de eixo. De tanto subir e descer descalço do ônibus para segurar o volante, o empresário do rolete nem sentiu os cacos de vidro a lhe filetar os pés. Por isso, quando finalmente ouviu a bendita W20 passar pela casa onde dormia, não se pôs atrás. Por isso e por desânimo. Quem viu contou que a carregadeira, vinda de Ilha Comprida, em menos de 1 hora e meia encaixou a pá na traseira da Nave, empurrou pra frente até um ponto de areia dura, amarrou um cabo de aço e saiu arrastando. 

A família doou quase todo o recheio da Nave, menos o motor do porco, uma caixa de ferramenta, a barraquinha dobrável e as roupas pessoais. Voltaram de carona para Rio Claro, enquanto o ônibus dorme na oficina do Índio. Agora a dor de cabeça é o que fazer com a Nave, que não tinha seguro por ser de 1980. Badô fala que não tem dinheiro nem para o conserto, muito menos para tirá-la de Iguape. Índio diz que desmontou o motor, montou novamente e o ônibus funcionou. Tem outras coisas pra fazer, mas agora ficou com o pé meio atrás. "Eu vou ligar pra ele e falar assim: 'Badô', o que você quer com esse ônibus? Quer que eu deixe em condições de você levar, recuperar, mandar pro Lata Velha? Importante que você saiba que aqui, pra mim, você deve X e tem que me trazer esse montante. Ou o ônibus é meu e posso falar pro mundo que é meu? Se for, eu quero que você reconheça a firma desse recibo em meu nome e me mande via sedex o recibo."

Badô recebeu o recado, mas mandou avisar que a Nave ainda é dele e ninguém devia tascar nada, pelo menos até passar o carnaval. Águas e porcos vão rolar, e ele ainda tenta digerir mais um ciclo de vida. "Mas não podia ser algo mais light? Tá meio pesado..." 

Mais canções contra eles virão


Dinho Ouro Preto - O Estado de S.Paulo
Eu cresci em Brasília. Passei parte da minha infância e adolescência lá. Quando criança, a cidade parecia uma dádiva divina. Estou me referindo ao Plano Piloto, é claro. As cidades-satélites não eram nada idílicas. Mas a parte que o resto do País conhece de cartões postais era uma delícia. Passávamos o dia inteiro na rua. Acho que se alguém me perguntasse eu diria que amava o Niemeyer e o Lúcio Costa. A cidade era um parque, e não havia violência urbana. Eu saia de casa de manhã, acabava almoçando na casa de amigos e só reaparecia em casa para jantar. 

A música entrou na minha vida ainda nessa idade. Aos 11 anos conheci o Herbert Vianna, o Bi Ribeiro e também o Dado Villalobos. Crianças, não tínhamos a menor ideia de que o País vivia seus anos de chumbo. Também não nos passava pela cabeça que um dia nos tornaríamos músicos profissionais. Naquele momento só nos interessava jogar bola e andar de skate.Esse paraíso, para nossa surpresa, foi se evaporando na medida em que nos tornávamos adolescentes. Aos 16 conheci outro grupo, que se autodenominava A Turma da Colina. Foi então que conheci o Renato Russo, e o Fê e o Flávio Lemos, que tocam comigo até hoje. A cidade era a mesma, mas de uma hora para outra tudo mudou. Ficamos repentinamente mais sérios. Suponho que a juventude de todos seja assim. Resumindo, nossa vida adquiriu tons mais sombrios. Os livros eram do Aldous Huxley e do George Orwell, os filmes, europeus, e a trilha sonora, punk rock. 

A música sempre foi o fio condutor da minha vida. Mas quando conheci os punks do Cerrado passei a ter a sensação, ou talvez a ilusão, de que por meio dela poderíamos contribuir para mudar o País. Éramos de uma pretensão descabida, nos achávamos perigosamente subversivos. As letras das bandas eram como nós, profundamente politizadas. E, embora naquela época eu ainda fosse só espectador, participava dos debates estudantis secundaristas com fervor revolucionário.

Mais tarde, quando entrei para o Capital Inicial, isso se manteve. Escrevemos ao longo dos anos várias músicas que de alguma forma abordam temas sociais ou políticos. No nosso mais recente disco, lançado em dezembro, procuramos resgatar a sonoridade do nosso começo, e fizemos um disco deliberadamente cru. Uma das faixas se chama Saquear Brasília. Ela foi escrita durante o julgamento do mensalão, mas minha intenção não foi dirigi-la ao PT, e sim ao que eu percebo como um dos nossos maiores problemas: o fisiologismo, que transforma o Congresso num balcão de negócios. Lá, selam-se acordos entre "cavalheiros" em nome da estabilidade que acabam sendo um desastre para nosso País. Eles descaracterizaram tanto o governo do Lula e do FHC quanto agora o da Dilma. Evocando princípios republicanos, acabaram gerando governos disfuncionais. O Brasil precisa se livrar desse vício. Entretanto, nós, cidadãos, assistimos de camarote a mais um acerto lavrado entre quatro paredes, com direito a voto secreto, ser levado adiante; mesmo debaixo de fogo cerrado.

Preciso agora fazer uma pequena nota de protesto em nome dos brasilienses. Sempre nos incomodou o fato de que os políticos, na sua maioria eleitos em outros pontos do País, sujem o nome da nossa cidade. Que façam com que ela, para muitos brasileiros, seja automaticamente associada com o que há de pior no Brasil. Esses personagens merecem mais do que uma música: merecem discos e mais discos. Pois eu prometo: mais canções contra eles virão.

E finalmente chego aonde eu queria: o espetáculo humilhante que todos testemunhamos nos últimos dias. Ao longo da semana muito foi dito nos maiores jornais e na blogosfera a respeito da posse dos novos presidentes do Senado e da Câmara. Todos os articulistas que conheço esmiuçaram o assunto com uma clareza que confesso invejar. No entanto, talvez eu tenha algo para contribuir com o debate. Tenho contato com multidões toda semana. É um privilégio do qual procuro me aproveitar. Costumo falar com frequência sobre política, e nos shows faço uma pergunta recorrente. É algo simples, mas me parece esclarecedor. Eu pergunto à plateia se ela se sente representada pelos nossos congressistas. E, invariavelmente, a resposta é uma imensa vaia.

É claro que um dado como esse não tem nenhum valor estatístico real. Fora, possivelmente, que os fãs da nossa banda não gostam de políticos. Entretanto, pesquisas reais e confiáveis apontam para a mesma direção. Entre as instituições brasileiras, a percebida pelos cidadãos como a mais confiável é o Corpo de Bombeiros. No extremo oposto, o Congresso. Confrontado com esse resultado, não consigo evitar uma dose de perplexidade - afinal, aquelas pessoas foram eleitas. Ora, se a vontade popular as colocou onde estão, por que tamanha rejeição?

A primeira resposta que me vem à cabeça é que existe uma espécie de metamorfose entre o sujeito candidato e o sujeito empossado. Logo, a resposta seria que os brasileiros não enxergam em Brasília as pessoas nas quais votaram. Por exemplo, a ética à qual o Renan Calheiros apaixonadamente se declarou diz respeito ao rigoroso e confiável cumprimento de acordos e conchavos de seu partido. Só isso. Mas suspeito que essa resposta seja superficial, ou no mínimo incompleta. 

Há um fosso entre nós e o Congresso. E não é só no sentido figurado. Parece piada, mas há um fosso real em Brasília. Ele é eufemisticamente chamado de "espelho d'água" e foi construído durante a gestão do ACM na presidência do Senado. Mas pontes talvez pudessem ser construídas para que não deixássemos nossos nobres colegas com a sensação de estarem ilhados, longe do resto do País. Aliás, essa sensação de isolamento alimenta a indiferença com a qual os excelentíssimos nos tratam. É a isso que me refiro quando canto "Vamos saquear Brasília!". Precisamos colar nas excelências, tirar delas essa confortável sensação de isolamento.

Todos nós vimos mais esse constrangimento (a posse da dupla dinâmica) a caminho. Foi um acidente ou acinte esperando acontecer, fartamente noticiado. O estrago que a posse dessas duas figuras causaria à já quase irreparável imagem do Congresso foi analisado e debatido até por membros da coalizão que sustenta o governo. E, no entanto, nada. Foi-se em frente - e que o País engula mais esse sapo. 

Logo, a pergunta que realmente passa a ser relevante é: como evitar que nos tratem assim? Sim, há a Ficha Limpa. Mas como esses senhores estão lá, apesar dessa lei? Suponho, de boa fé, que seja por não terem sido condenados ainda. Só pode ser. Ambos são políticos profissionais e são congressistas há décadas; por isso teriam o privilégio de serem julgados pelo Supremo Tribunal. Mas até a eleição passada, aparentemente, não havia nada que os impedisse de concorrer, e todos nós somos inocentes até provados culpados. Ok, ilustríssimos, mas isso não quer dizer que não pairem nuvens carregadas de suspeitas sobre a dupla dinâmica, e é sempre bom lembrar da mulher de César. Checar a ficha corrida dos dois seria diversão garantida se não se tratasse da terceira e quarta pessoa na linha sucessória. É bom rezarmos pela saúde da Dilma e do Temer.

Então não há saída? Fatos como esse seriam inerentes à democracia representativa, o pior sistema já inventado? Acho que não. Não sou sociólogo nem cientista político, mas acredito que o sistema possa ser aperfeiçoado, para se tornar mais representativo de fato. Digo "de fato" porque a maioria das pessoas nem sequer se lembra de quem votou nas últimas eleições. É claro que nada se resolve num passe de mágica, e continua sendo um mistério como certas figuras, como Maluf e Tiririca, entre outros, conseguem se eleger. Mas, caso o congressista eleito representasse determinado bairro ou região de uma cidade, os eleitores saberiam quem ele é, o que fez, onde mora, o que prometeu fazer e, se insatisfeitos com o resultado, votariam em outro na eleição seguinte. 
Os efeitos seriam imensos, já que as satisfações teriam que ser dadas a um grupo menor e, portanto, mais mobilizado e consciente de eleitores. Assim não haveria palácio, fosso ou conchavo que os separasse da opinião pública, essa pequena marola para a qual Renan, Alves e seus amigos estão se lixando.
* Cantor, compositor e autor da música "Saquear Brasília", faixa do novo álbum da banda Capital Inicial.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O instinto da Loba e a batalha da Maria Antonia, in Carta Capital


Emiliano José*

Eu passei pela Consolação outro dia, subindo, olhei pro lado, e pensei na Maria Antônia, na batalha de Maria Antônia. Foi ali que conheci Zé Dirceu, que convivi com Travassos, que ouvi Genoíno na tribuna, que me aproximei de Adura mais e mais, de Trindade, de tantos outros. Era uma espécie de comitê central do movimento estudantil, para onde todos nós, universitários e secundaristas, acorríamos em busca de luzes, de diretrizes para a continuidade da luta contra a ditadura que assustava o País, menos a nós, que nos considerávamos invencíveis ou ao menos nunca queríamos retroceder. Coisas dos nossos ideais e de nossa juventude, e ainda bem que em muitos de nós ainda sobra disposição para a luta nos dias que correm.
O hoje Centro Cultural Maria Antonia. Ícone de exibição de monicaewagner Foto: Galeria de monicaewagner/Flickr
O hoje Centro Cultural Maria Antonia. Ícone de exibição de monicaewagner
Foto: Galeria de monicaewagner/Flickr
Não quero falar de tudo isso. Fica pra outra hora. Quero apenas falar da Loba e de seu instinto de luta e de amor pela vida – quero retornar no tempo, chegar a 3 de outubro daquele extraordinário ano de 1968, outubro, já próximo da tragédia do AI-5, do qual nós, na nossa inocência e triunfalismo, sequer desconfiávamos. Falar de Mirtes – se quiserem o nome todo já revelo: Mirtes Semeraro de Alcântara Nogueira, hoje recolhida à beira das praias de Fortaleza, cheia de carinho com seus netos.
Foi protagonista da já famosa Batalha da Maria Antônia, embate que envolveu estudantes do Mackenzie vinculados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e os da Faculdade de Filosofia da USP, unidades que ficavam frente a frente todo dia, e que naquele dia enfrentaram-se. Aqueles constituindo-se como um grupo paramilitar, armados das mais variadas maneiras. Os da USP, reagindo com paus e pedras. Mirtes estava lá, no meio do fogo, na ousadia, no vigor e no frescor de seus 16 anos.
Em maio daquele ano, fora expulsa do Colégio Estadual Justiniano de Serpa, em Fortaleza, por decisão da diretora Adísia Sá. Simples: como presidente do Grêmio, opôs-se à cobrança de taxas no estabelecimento. A expulsão de Mirtes provocou reações, ganhando corpo com “A revolta das saias”, impressionante sublevação estudantil feminina, e a diretora acabou caindo, sem, no entanto, desistir da perseguição: delatou Mirtes à repressão.
A casa dela foi invadida por militares fortemente armados, metralhadoras em punho. Escalou muros e se abrigou no forro da casa de um vizinho. Cedo, muito cedo, teve que se tornar uma clandestina. A ditadura a empurrou para isso.
Mirtes era, também, da diretoria do Centro de Estudantes Secundaristas do Estado do Ceará (CESC) e já militava na organização revolucionária Ação Popular (AP). Foi escolhida para representar os estudantes secundaristas cearenses no Encontro Nacional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), que se realizou em Guaratinguetá, São Paulo, fim de setembro, início de outubro.
Nesse encontro, fui eleito um dos vice-presidentes da entidade, e foi quando conheci Mirtes, de pernas tão lindas, me desculpem o detalhe, e mais à frente o leitor compreenderá. A diretoria tinha Marco Melo na presidência, e vários vice-presidentes, entre os quais Bernardo Jofilly, Antonio Luís, Euler Ivo, Fernando, e a minha memória não alcança os demais.
O pretexto dos mackenzistas da extrema-direita foi um pedágio organizado pelos secundaristas na Maria Antonia, em frente ao prédio da USP e ao do Mackenzie, naturalmente. Queriam conseguir recursos para voltar aos seus estados de origem, procedimento muito comum do movimento estudantil de então, e sempre muito bem recebido pela população.
De repente, o fogo. Um ataque cerrado contra a meninada, e os universitários da USP vieram em socorro deles, inclusive Luís Travassos, presidente da UNE, e Zé Dirceu, além de outros dirigentes que estavam na Maria Antonia. Os secundaristas e os universitários da USP tentaram arrombar os portões do Mackenzie em reação a tanta violência. Medo não era coisa que habitava nossos corações àquela época e àquela idade.
Mirtes, de repente, sentiu algo quente, muito quente, cair nela, em suas pernas.
- Puta que pariu! Estão jogando mijo na gente! Baixinho, o fedor é grande! ela gritou, num quase pedido de socorro.
Caiu.
E percebeu que fora atingida gravemente:
- Tô ferrada. Não consigo ficar em pé, cara!
Fora atingida por duas garrafas de ácido sulfúrico. Isso mesmo: ácido sulfúrico. A direita em fúria não brinca.
Travassos viu quando ela caiu. Correu, estreitou-a nos braços, suspendeu-a, deu-lhe colo, carregou-a, que Mirtes não conseguia mais andar.
Era um cenário de guerra: Socorro, secundarista de Goiás, também sentiu o ácido em seu corpo, outro estudante experimentou o ácido na proximidade dos olhos e na barriga e mais tarde os mackenzistas balearam e mataram José Guimarães, um secundarista. Lembro apenas desses exemplos para evidenciar que o CCC estava disposto a matar e a ferir, como matou e feriu.  A direita em fúria não brinca.
Travassos carregou Mirtes para o prédio da Faculdade de Filosofia, e os primeiros socorros dos colegas universitários consistiram em leite e manteiga nas queimaduras que se agravavam. Como a polícia estava pronta para invadir, tiraram-na de lá, junto com os outros feridos, e levaram-na para o Hospital das Clínicas. Alunos quintanistas prestavam os primeiros socorros, quando se soube que policiais chegavam em busca dos que tinham sido atingidos.
Mirtes foi retirada em cadeira de rodas para o subsolo do hospital, onde funcionava a ortopedia. De lá, ela e Socorro, depois de algum tempo escondidas, foram levadas para o Conjunto Residencial da Cidade Universitária da USP (CRUSP). Na primeira noite, Jean Marc, que seria o próximo presidente da UNE, dormiu ao lado de Mirtes e Socorro.
O CRUSP, entanto, rapidamente deixou de ser seguro. Havia ameaça de invasão iminente. Um médico do CRUSP olhou as pernas de Mirtes, e manifestou muita apreensão: havia risco de gangrena, e isso reclamava cuidados médicos e hospitalares urgentes, impossíveis ali. A todos, ainda por cima, causava horror a condição das pernas de Mirtes, que já fediam, os curativos desmanchavam-se.
Após três dias, Mirtes e os demais foram retirados do CRUSP. Poucas horas depois, tropas invadiram o conjunto residencial. Mirtes terminou acolhida por um anjo protetor e destemido, que é como ela chama Therezinha Zerbini. A mãe de Therezinha, dona de farmácia, disse que as gazes deviam ser retiradas, e as feridas, limpas. Chamou o médico Samuel Pessoa, que insistiu na gravidade do caso e do risco de gangrena.
Alguns dias transcorreram, as queimaduras se agravavam e o risco de perder uma das pernas, crescia. Therezinha se decidiu: levou-a ao Hospital Samaritano: é minha afilhada, queimou-se numa experiência de química. Mirtes fez várias cirurgias, enxertos, e as marcas no corpo e na alma nunca se dissiparam, sem que isso tudo conseguisse torná-la uma mulher amarga.
Cinco médicos se debruçaram amorosamente sobre suas feridas, quatro cirurgias, três raspagens para a retirada dos tecidos necrosados, acompanhadas de tratamento tópico para debelar o processo infeccioso e inflamatório, com muito antibiótico. Para passar o tempo, Mirtes deu-se de cartomante, e lia a mão de todo mundo: atendia funcionários, pacientes e acompanhantes de todos os andares do hospital, distribuía aconselhamentos a torto e a direito, não sabe se tão úteis e precisos assim. Que fez sucesso, fez. E que isso ajudava a amenizar o sofrimento dela, não há dúvida.
Há algum humor no sofrimento, senão como resistir? Dois companheiros nossos, da diretoria da UBES, Antonio Luís, de Minas Gerais, e Euler Ivo, de Goiás, resolveram visitá-la. Mirtes pôs-se a descrever todos os aspectos da enfermidade e do tratamento a que estava sendo submetida. Já não havia mais tecidos necrosados em suas pernas, mas por baixo dos algodões, gases e ataduras, embebidos em soro fisiológico e líquido de Daken, havia uma infecção purulenta amarelo-esverdeada. Mirtes ponderou que não era aconselhável que assistissem à troca de curativo que estava prestes a acontecer: “vocês podem se impressionar, levar um susto, não aguentar”.
Reagiram ofendidos, estavam com ela no melhor e no pior, como não ficar pra ver? Quando algodões gases e ataduras foram removidos, e os dois depararam com as pernas fétidas e desfiguradas, os nobres e valentes cavalheiros subitamente empalideceram e simplesmente desmaiaram. O hospital cuidou carinhosamente dos dois até que voltassem a si e compreendessem que as mulheres conhecem até onde os homens podem ir. E grosso modo, podem menos do que elas.
Voltou para o Ceará. Meados de 1969, foi presa numa pichação contra Rockfeller. Ao ser liberada, um mês depois, caiu na mais absoluta clandestinidade, sempre na AP. Avó de José Lucas, Carlos Eduardo e Clarice, sobreviveu recordando Leon Bloy – “sofrer passa, ter sofrido não passa nunca”. Lembra-se sempre, para falar de coisas boas da humanidade, de seus anjos bons – além de Therezinha Zerbini, recorda-se de Ada, de Jovina Pessoa, de Samuel Pessoa, do doutor Madeira, todos profundamente solidários e dispostos a correr todos os riscos, e nenhum deles tinha qualquer relação anterior com ela.
Conheci Therezinha Zerbini, estive na casa dela em 1968, ou 1969, e poucos não estiveram naqueles ásperos tempos. Mais conhecida que as outras, dela não preciso falar, Paulo Moreira Leite a apresentou brilhantemente no seu livro A mulher que era o general da casa. Jovina Pessoa, também conhecida. De Ada Oliveira, gostaria de falar muito, mas não será aqui. Foi uma lutadora rara, dessas mães à Gorki, me lembro de sua casa na Zuquim, caminho da roça para o Jaçanã à época, onde eu morava. Mãe de Pedro, de Ana, de Luiz, de Marina e de Ângela, sua casa era um abrigo acolhedor e intelectualizado da esquerda em Santana. Ela e Therezinha e Jovina lideravam o movimento “Mães Paulistas Contra a Violência”.  
Já fiz isso num outro artigo para o jornal A Tarde: dou a palavra a Mirtes, palavras escolhidas a esmo de seu conto – ou novela ou confissões de um tempo que não passa – denominadoEstrovenga:
“Aviso: sigo minha própria sombra, nado em fumaças. Vasta chuva no molhado e a inspiração de brumas. Alucinação ou fumaça, meu intervalo de culpas prega-se em fios. Débil grito principio, entretanto venho aos uivos, quase instinto de loba. A tosse do século passado remonta-se. Barulheira sob túmulos. Página virada, volto à estrada caminho de luzes. Um dia nosso pouso será todo paz.”

*Emiliano José é jornalista e escritor


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Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"
Assessoria de Imprensa
Thaís Barreto