- João Paulo Charleaux
05 Fev 2017
(atualizado 05/Fev 00h25)
Em seus primeiros dias na Casa Branca, o presidente dos EUA, Donald Trump, publicou uma série de medidas que acabaram questionadas na Justiça, nas ruas e até mesmo dentro de sua própria equipe de governo.
Embora todas as “ordens executivas” e “memorandos presidenciais” publicados na primeira semana constassem numa plataforma eleitoral que havia sido vitoriosa meses antes, sua implementação não foi fácil.
A resistência de vários setores colocou em questão os limites do poder de políticos que, referendados nas urnas, acreditam ter o respaldo para governar sem dar satisfação aos “derrotados”.
Ação e reação
O MURO DO MÉXICO
Entre as promessas de campanha cumpridas agora está a autorização para a construção de um muro, fechando 3.000 quilômetros de fronteira com o México. No dia seguinte a esse anúncio, Trump teve como resposta o cancelamento da visita que o presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, faria a Washington.
A POLÍTICA IMIGRATÓRIA
Trump também restringiu drasticamente a entrada de refugiados nos EUA e impediu que cidadãos de sete países pisassem em solo americano. Como resposta, milhares de pessoas protestaram no aeroporto JFK, em Nova York, enquanto advogados, no saguão do aeroporto, produziam habeas corpus para estrangeiros que estavam presos na imigração por conta da nova ordem da Casa Branca.
MEDIDAS CONTRA O ABORTO
A série de medidas polêmicas incluiu ainda a retomada das construções de oleodutos que estavam paradas por ordem do governo anterior e a proibição de financiamento de ONGs que promovem o aborto no exterior. Nos dois casos, a imprensa apontou abusos e os cidadãos protestaram nas ruas.
O debate sobre os limites presidenciais
Alguns eleitores e políticos republicanos acusaram a imprensa de agir como um partido de oposição a Trump, e muitos manifestantes foram tomados por maus perdedores de uma disputa eleitoral que recém terminara.
Para entender os limites do mandato presidencial e as característica da democracia, como um regime de maiorias, o Nexo fez três perguntas a dois especialistas:
- Wagner Pralon Mancuso, graduado em filosofia e em ciências sociais, mestre e doutor em ciência política, professor da USP
- Thomaz Pereira, professor de direito constitucional na FGV Rio, mestre e doutorando pela escola de direito de Yale, nos EUA
Se a democracia é o sistema de governo da maioria, por que Trump deveria ceder à agenda de seus opositores depois de eleito?
WAGNER PRALON MANCUSO O chefe de um governo democrático e constitucional não recebe carta branca ao ser eleito. Ele é obrigado a obedecer à Constituição. Então, Trump não é obrigado a ceder à agenda dos opositores, mas é obrigado a respeitar a Constituição. Tecnicamente falando, Trump nem obteve a maioria dos votos populares, mas isso nos EUA não importa, porque lá é eleito quem obtiver a maioria dos votos do colégio eleitoral, composto pelos representantes dos Estados, e isso sim ele obteve. Mas o fato de ser um presidente legítimo não o autoriza a contrariar a lei maior do país [a Constituição].
THOMAZ PEREIRA Há duas preocupações em regimes de maioria. Uma delas é evitar que se consolide um poder político arbitrário, daquele líder que, eleito por maioria, começa a tomar atitudes que não têm o apoio da maioria que o elegeu. A outra preocupação é com o contrário disso, que é o líder que, eleito por maioria, impõe aos demais uma ditadura da maioria.
Trump foi eleito por uma maioria que não é sequer a maioria do voto popular, por conta de especificidades do modelo americano. Ele não teve a maioria dos votos americanos, mas ganhou em mais Estados, ele ganhou o voto do colégio eleitoral, que tem a ver com a representação dos Estados no sistema. Então ele não fala pela maioria da população. Mas, mesmo que ele falasse, isso é algo que tem de ser o tempo todo testado. Nenhuma maioria dá cheque em branco.
Se um presidente é eleito para executar o plano de governo que propôs nas eleições, por que esperar que Trump promulgue leis que sejam diferentes do plano de governo que ele mesmo apresentou na campanha?
WAGNER PRALON MANCUSO Numa campanha vale praticamente tudo para ser eleito, até seduzir o eleitorado com promessas que não podem ser cumpridas. A essência da democracia é a propaganda e o slogan, dizia Joseph Schumpeter [1883-1950], autor de uma das teorias democráticas mais influentes na ciência política contemporânea. Entretanto, no exercício do governo não vale tudo. Decisões governamentais que contrariam a Constituição não podem ser cumpridas, mesmo que tenham sido prometidas nos discursos de campanha e que figurem no plano de governo. Teoricamente caberia ao eleitor ter senso crítico para perceber que as promessas de seu candidato são inviáveis, mas nem sempre isso ocorre.
THOMAZ PEREIRA É esperado que ele tente cumprir o programa proposto na campanha. Porém, há coisas que Trump está tentando ou tentará fazer, por meio de ordens executivas ou não, equivalentes a decretos presidenciais no Brasil, que precisam ser testadas no Legislativo e que precisam ser constitucionais.
Há eleitores que votaram nele por apoio a uma proposta “A”, mas com grande discordância em relação à proposta “B”. O eleitor moderado de Trump pode votar nele, confiando que as instituições o impedirão de fazer certas coisas. Esse eleitor tem uma expectativa legítima de que as instituições limitarão o poder do presidente eleito. O eleitor não vota só no Trump, vota sabendo que ele é um presidente num sistema que impõe limites. Se o poder dele fosse ilimitado, talvez muita gente nem tivesse votado nele.
Se a imprensa, a Suprema Corte ou o Congresso agirem para impedi-lo, não estão indo contra a vontade da maioria, e, portanto, contra a democracia?
WAGNER PRALON MANCUSO A democracia também envolve liberdade de imprensa, bem como independência e controle mútuo entre os Poderes.
A imprensa não pode impedir Trump, mas pode divulgar suas decisões e promover um debate crítico e de qualidade sobre elas. O problema é quando este debate não é pautado por princípios como veracidade, multiplicidade de pontos de vista etc. Se o debate respeitar esses princípios e mostrar fragilidades das decisões de Trump, informando e mobilizando a opinião pública, a imprensa estará apenas cumprindo seu papel.
Quanto ao Congresso, os parlamentares também foram eleitos. Num sistema de separação de Poderes, são funções do poder Legislativo fiscalizar o Poder Executivo, assim como debater e votar suas propostas. O ex-presidente [Barack] Obama enfrentou grandes dificuldades para aprovar sua agenda junto a um Congresso muitas vezes hostil. Isso faz parte do jogo democrático. O partido de Trump [Republicano] tem maioria na Câmara dos Representantes e do Senado. Se, mesmo assim, suas medidas forem vetadas pelo Congresso, isso significa que o presidente dos EUA foi incapaz de angariar apoio até mesmo dos próprios correligionários. Neste caso, suas medidas não devem prosperar. Não há nada de antidemocrático nisso, pelo contrário.
Finalmente, a Suprema Corte é por natureza uma instituição antimajoritária. Seu papel envolve justamente vetar decisões dos outros Poderes sempre que elas contrariam a Constituição, mesmo quando tais decisões representem a vontade de uma maioria conjuntural, circunstancial, do eleitorado.
THOMAZ PEREIRA Não. Em primeiro lugar porque não existe essa presunção de que tudo o que Trump faz tem o apoio da maioria. Ele sequer foi eleito pela maioria dos americanos. Mas, mesmo que ele tivesse sido eleito pela maioria geral da população americana, isso não significa que tudo o que ele faça depois de eleito automaticamente tenha respaldo na vontade da maioria.
Uma das coisas que a imprensa faz é informar e manifestar sua opinião sobre certas questões. Ao Judiciário cabe fazer valer os limites legais e constitucionais para o exercício do poder. E uma das coisas que o Congresso, que também foi eleito por maioria, faz é verificar a força da maioria obtida pelo presidente, num choque que é salutar para a busca de consensos numa democracia.
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