domingo, 19 de fevereiro de 2017

Educação e adequação, Por Demi Getschko - O Estado de S. Paulo


Pode ser melhor passar em branco que ceder à vaidade de difundir algo com pressa
19/02/2017 | 04h00
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Em geral, não nos damos conta do quanto aprendemos com coisas simples. Duas delas, pessoais: fui alfabetizado com Caminho Suave, cartilha que fazia muito sucesso em 1959. Até hoje, lembro de memória cada associação de letras. Desde o A de abelha, B da barriga do bebê, até o Z de zabumba. A cartilha sabia a forma certa para atingir seu objetivo.

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    O segundo livro de textos – não lembro do nome – trazia historinhas, uma delas se chamava “As Três Peneiras”. Quando a li, tive uma reação indefinida e até mesmo certo desconforto. Lembro-me sem grande precisão, mas tratava de um garoto que chega da escola e, entusiasmado, quer dar certa notícia à mãe, ansioso por compartilhar a informação. 
    Como os outros leitores, também eu estava curioso em saber do que se tratava. Entretanto – e é aí que a porca torce o rabo – a mãe não parece nem um pouco ávida em saber da novidade. Ao contrário, antes mesmo que o garoto possa falar, ela esfria seu entusiasmo propondo três crivos, três peneiras pelas quais a informação deveria passar. “Meu filho, você tem certeza de que a notícia que quer me dar é verdadeira? Essa uma notícia tem bons propósitos; me fará bem saber dela? É ela algo relevante, que eu precisaria conhecer?”
    O garoto embasbaca. Fica claro que, aparentemente, a notícia não passaria por nenhum dos três filtros. A mãe conclui: “se a notícia que traz não é útil, nem boa, nem sequer você tem certeza que seja verdadeira, o melhor que tem a fazer, filho, é calar-se”.
    Se por um lado frustrei-me em não saber o que seria a novidade, por outro entendi que pode ser melhor passar em branco que ceder à vaidade de difundir algo apressadamente… Em tempos de redes sociais, de fatos alternativos, de pós-verdades e de pós-mentiras, não seria aquele um sábio conselho? Hoje, quando os dedos são mais ágeis que a reflexão, de quantos dissabores seriamos poupados se, antes de repassar algo ao anônimo e populoso mundo virtual, o submetêssemos a uns testes tão simples…
    Parece que algo se perdeu da época do meu primário para cá mas, quem sabe, ainda possa ser recuperado. 
    Dorina Nowill foi uma notável mulher, falecida em 2010, que criou a “Fundação para o Livro do Cego” em 1946. Dorina, que estudou no Caetano de Campos, ficou cega aos 17 anos, o que não a impediu de ser uma ativista e filantropa reconhecida internacionalmente. Marcou-me uma entrevista dela, que ouvi no rádio. A uma pergunta do repórter, “Dorina, você que é uma deficiente visual o que pensa de blá, blá...”. Ela respondeu, de forma incisiva e para mim inesperada: “Olhe, eu não sou uma deficiente visual. Eu sou cega. Deficiente visual é o míope, o estrábico, etc...”
    A resposta escancara o que talvez seja uma forma mais insidiosa e talvez hipócrita de preconceito: em vez de tratarmos digna e igualmente a uma pessoa que tem diferenças, preferimos amenizar essas diferenças com alguma “elíptica construção de contorno”. Cego deve ser igual em respeito, direitos e deveres, sem deixar de ser… cego.
    E, na internet, é muito importante dar atenção à acessibilidade. Interfaces sonoras, tipologia clara, cores adequadas podem ajudar os que tem dificuldades no acesso.
    É ENGENHEIRO ELETRICISTA

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