sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Novas perspectivas para o transplante de órgãos, OESP (pauta)


Progressos permitem prever, para um futuro próximo, o fim das listas de espera
* Silvano Raia e Mayana Zatz ,
ZATZ
03 Fevereiro 2017 | 03h00
Superados os aspectos de técnica cirúrgica e sistematizadas as medidas clínicas pré e pós-operatórias, o progresso dos transplantes depende, agora, de contribuições de diferentes estratégias e linhas de pesquisa.
A longevidade crescente da população e os bons resultados com o procedimento explicam o fato de que em todos os países faltem órgãos para atender às listas de espera. Nos EUA, 124 mil pacientes estão inscritos para transplante de órgãos sólidos e apenas 28 mil procedimentos são realizados por ano. No Brasil realizamos cerca de 8 mil transplantes por ano, atendendo apenas a 30% da demanda teórica.
A doação de órgãos depende de variáveis de difícil controle, tais como a logística entre a captação e o transplante, a qualidade do órgão a ser transplantado, bem como de características culturais que dificultam a compreensão do conceito de morte cerebral e, assim, da autorização da doação pela família.
Nas últimas décadas, três linhas de pesquisa em nível celular visam a produzir órgãos adicionais: técnicas de impressão tridimensional, substituição de todas as células de órgãos não transplantáveis por outras do mesmo órgão do receptor e, finalmente, a produção de animais geneticamente modificados cujos órgãos possam ser transplantados para o homem.
A procura dessas alternativas valoriza as aplicações práticas da pesquisa básica e tem despertado grande interesse científico e econômico, justificando até mesmo um artigo recente na revista The Economist.
• Bioimpressão tridimensional:baseia-se na descoberta, no início do século, de que células + polímeros que as sustentam sobrevivem quando espalhadas sobre tecidos vivos. Além disso, quando dispostas, camada sobre camada, crescem formando tecidos ou órgãos vivos, tais como rim, fígado, pele, osso e vasos. Já foram produzidos orelhas, ossos, músculos e pele, que pode ser usada no tratamento de queimados, substituindo diretamente a área atingida.
No ano passado, um grupo da Northwestern University, em Chicago (EUA), conseguiu imprimir ovários de camundongos e transplantá-los em fêmeas, que geraram filhotes.
Uma empresa chamada Organovo, em San Diego (EUA), prevê a impressão de rins e fígados para daqui a três anos. Já está oferecendo tecido renal e hepático para teste de drogas.
A Johnson & Johnson criou várias empresas associadas a grupos acadêmicos visando a imprimir fragmentos de tecido ósseo para uso em ortopedia. 
A francesa L’Oréal, a americaa Procter & Gamble e a alemã Basf estão produzindo pele humana impressa viável. A L’Oreal já produziu 50 m2 para testes com produtos cosméticos.
• Recelularização de órgãos sólidos previamente descelularizados: consiste num processo de descelularização completa e ulterior recelularização de órgãos que não podem ser aproveitados por não terem qualidade para ser transplantados.
Na descelularização são retiradas todas as células até ficar apenas um arcabouço que servirá de molde para o novo órgão. Em seguida, são retiradas células-tronco do sangue periférico do receptor, que são reprogramadas para se tornarem pluripotentes (células-tronco IPS, do inglês induced pluripotent stem-cell), isto é, com potencial de formar qualquer tecido. Essas células são, então, diferenciadas de acordo com o órgão a ser recelularizado. Como essas células são derivadas do receptor, não causam rejeição.
Pesquisas nesse sentido encontram-se em fase avançada no laboratório do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), da Universidade de São Paulo (USP).
• Xenotransplante: consiste no transplante de órgãos de animais geneticamente modificados para o homem e, provavelmente, representa a alternativa mais promissora entre as três citadas. Os suínos (mini pigs) são a melhor opção, pela semelhança da sua fisiologia com a dos humanos, pela facilidade de manejo, pela fertilidade e pelo tamanho adequado.
Até recentemente, dois obstáculos impediam seu emprego clínico: rejeição hiperaguda e risco de infecção do receptor por vírus inócuos para os suínos, mas patogênicos para o homem. Nas últimas décadas, o problema da rejeição foi contornado pela modificação, por engenharia genética, de cerca de 20 genes no embrião suíno visando à redução de proteínas inflamatórias e reguladoras do sistema de inflamação, criando, assim, um perfil isogênico em relação ao receptor humano. 
O grupo de Joseph Tector, da Universidade do Alabama (EUA), modificou sucessivamente genes de suínos, obtendo rins compatíveis com receptores humanos. Restava ainda vencer o risco de infecção por retrovírus. E há cerca de um ano o grupo de George Church, da Universidade Harvard (EUA), usando uma nova técnica, chamada CRISPR-Cas9, descrita pelas pesquisadoras Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentiee (já implantada no CEGH-CEL), conseguiu inativar 62 retrovírus numa linhagem de células epiteliais de embriões suínos, evitando, assim, o risco de infecção no receptor.
Com base nesses resultados, o pesquisador da Universidade Harvard criou uma empresa chamada Genesis, que visa a produzir e fornecer órgãos para transplantes ao menor custo possível.
Saliente-se, porém, que a engenharia genética acima referida é realizada imediatamente após a fecundação, na fase inicial da divisão do ovo (zigoto). Para atuar nesse momento tão precoce deve-se usar fecundação assistida e implante imediato do embrião geneticamente modificado em fêmeas na fase hormonal adequada à nidação.
Uma análise geral de todos esses progressos permite prever, para um futuro próximo, uma disponibilidade de órgãos suficientes para abolir as listas de espera, sem depender da generosidade de doadores vivos nem da morte de doadores falecidos.
*RESPECTIVAMENTE, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP E PROFESSORA TITULAR DE GENÉTICA DO INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS DA USP
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