domingo, 31 de março de 2019

Espetáculo contraria o prazer do autoengano brasileiro, Bernardo Carvalho, FSP

Desafio para a crítica do moralismo populista é escapar à armadilha da demagogia

Há duas semanas, me vi sentado durante uma hora e 40 minutos diante de três atores ingleses que, fantasiados de frangos amarelos, repetiam no palco o mesmo texto e a mesma cena, inspirada num desses jogos idiotas de auditório.
Enquanto um dos atores encarnava o apresentador, o outro pensava numa palavra que uma atriz, de olhos vendados, tinha que adivinhar. Depois de três tentativas frustradas, os três trocavam de papel e voltavam ao mesmo texto e aos mesmos erros, infinitas vezes, com pequenas variações, até a exaustão e o desespero. Em meio ao desconforto da plateia, comecei a desconfiar que, talvez, estivessem falando de nós.
Nós, brasileiros, já entendemos que o presidente que elegemos não peca pela inteligência. Nada tem a perder ou temer num país boçal, cujo projeto ele acalenta mais por intuição —por afinidade de grupo e instinto de sobrevivência— do que por estratégia.
Também já entendemos que sua eleição nada tem de revolução, a despeito do que dizem seus ideólogos; é antes um arrastão no Estado e nas instituições. Jogadas umas contra as outras, na inércia da incompetência e da ingovernabilidade, elas degringolam rumo ao caos no qual a estupidez e a arbitrariedade poderão enfim reinar livres de controle e entraves, sem necessidade de justificar excessos e exceções.
Já notamos que, no vácuo da ética, procuradores, juízes e ministros atropelam, sem pensar duas vezes, a deontologia de suas atribuições, sob o clamor da moral.
O caso da tentativa de acordo dos procuradores do Paraná com a Petrobras para a criação de um fundo bilionário sob sua jurisdição (sempre com o pretexto do combate à corrupção) é exemplar. Assim como a política ambientalista a serviço dos grandes proprietários rurais, a criminalização da educação em detrimento da educação e a concepção de um modelo de vida sexual e privado para os brasileiros, por um ministério encarregado dos direitos humanos.
Já sabemos que, no lugar do Estado laico como garantia do direito e da liberdade de culto, o governo Bolsonaro gostaria de impor a crença que lhe convém à totalidade da nação.
Já percebemos que o Brasil de Bolsonaro é o do ressentimento de um arrivismo moral contra tudo o que o contraria, que a entropia chancelada por sua eleição tem como divisa "cada um por si e nós por todos", em todas as instâncias, públicas e privadas. E que o limite desse arrivismo por enquanto ainda é a opinião pública. É natural que seu símbolo de justiça e de liberdade seja uma arma em minhas mãos.
Incompreensível seria que esperássemos outra coisa.
Espetáculo 'Mágica de Verdade', do grupo inglês Forced Entertainment
Espetáculo 'Mágica de Verdade', do grupo inglês Forced Entertainment - Divulgação
E é disso que fala "Mágica de Verdade" (Real Magic), do inglês Tim Etchells, com a companhia Forced Entertainment, provavelmente o espetáculo mais radical apresentado na MIT, há duas semanas.
A certa altura, depois de mais de uma hora repetindo em moto-contínuo a mesma cena, um ator passa a soprar a palavra que ele pensou ao ouvido do colega que precisa adivinhá-la. Chega a esfregar na cara do outro a palavra escrita, mas o outro, depois de observá-la com olhar bovino, continua dizendo a palavra errada, impermeável às evidências. Nessa hora, alguns espectadores começam a gritar, porque é insuportável. Gritam a palavra certa, o óbvio, o que todo mundo já viu, ouviu e entendeu, e que continua sem produzir nenhum efeito.
O maior desafio para a crítica do moralismo populista é escapar à armadilha da sua demagogia. Como é possível uma reflexão de verdade se não se pode contrariar o público? Como é possível uma reflexão de verdade que depende de agradar as crenças e os preconceitos do interlocutor? O que é que estamos realmente dispostos a ver, ouvir e entender?
"Mágica de Verdade" encena o círculo vicioso e impermeável do absurdo e da boçalidade. É tortura para a plateia, que procura não se reconhecer no palco. A insistência no absurdo mais tosco acaba revelando os parvos indefesos que o mantêm. São ao mesmo tempo agentes e vítimas das suas próprias ações, incapazes de romper a corrente automática e repetitiva à qual estão agrilhoados e de enxergar ou compreender o que têm diante dos olhos, porque isso significaria contrariar sua lógica e sua ilusão.
É um espetáculo corajoso, mas duríssimo de ver, justamente porque nos diz respeito, porque contraria o prazer do nosso autoengano inconsequente e do nosso consentimento suicida.
A título de curiosidade, o espetáculo foi apresentado no teatro do Sesi, no centro cultural da Fiesp, templo dos que não faz muito tempo ainda gritavam nas ruas que não iam pagar o pato.
Bernardo Carvalho
Romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".

Fase Racional de Tim Maia chega ao streaming, OESP

Além dos discos Racional 1, 2 e 3, que já estão disponíveis, um álbum inédito gravado em espanhol deve chegar ainda neste mês às empresas de consumo digital; período é considerado um dos musicalmente mais inspirados do artista

Julio Maria, O Estado de S.Paulo
31 de março de 2019 | 05h00
Tim Maia já havia aspirado todos os pós e entornado todos os líquidos naquele ano de 1975, quando se sentou com o amigo Tibério Gaspar em um fim de semana. Depois de mandar uma mescalina para dentro, passou a folhear um livro indicado pelo amigo, cheio de conceitos sobre os quais jamais havia escutado. Universo em Desencanto, Mundo Racional, Racional Superior, Cultura Racional,
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Tim Maia nos anos 70, só permitia que usassem branco Foto: ARQUIVO PESSOAL
Energia Racional. A história assim: todos os viventes da Terra vieram de um outro planeta. A Terra é nosso exílio, nos sujando e nos magnetizando, submetendo-nos a todo tipo de sofrimento. A saída? Ler o livro Universo em Desencanto e seguir os ensinamentos do emissário Manoel Jacintho Coelho até atingirmos o estágio da Imunização Racional e sermos resgatados pelos seres extra terrenos que nos levarão de volta ao mundo original. Quando fechou o livro, Tim já era outro homem.
Uma das fases místicas mais vasculhadas de um artista brasileiro, a conversão de Tim Maia à Cultura Racional, rendeu ao todo três álbuns execrados à época pela crítica mas considerados hoje cálices sagrados de colecionadores e fãs da soul music brasileira. Embriagado pelos mandamentos do livro, Tim parou com o álcool, com a cocaína e com a carne vermelha. Ele e seus músicos deveriam usar branco, praticar sexo apenas para a procriação, pintar seus instrumentos de amarelo e, como cláusula inegociável, ler o livro. E quem não gostasse perigava tomar um tapa no pé do ouvido e ser demitido da banda. “Eu não sei se acreditávamos ou não, mas fazíamos o que ele queria. A gente estava tocando com o cara”, lembra Serginho Trombone, um dos músicos da tropa racional.
O devoto Tim entregou ao Universo Racional o que ele tinha de melhor. Músicas que já haviam sido terminadas em 1974 sobre a base mais influenciada pelo soul e o funk norte-americanos que criou em toda a sua biografia tiveram suas letras modificadas e adaptadas ao discurso das elevações espirituais. O primeiro álbum saiu em 1975 e o segundo em 1976. Um terceiro projeto, chamado Racional 3, gravado também em 1976, só seria lançado 35 anos depois. No momento em que o registrava, Tim passou por uma espécie de desimunização racional. Não se sabe ao certo o que viu, mas boa coisa não foi. Ao chegar em casa, comeu um filé de brotossauro mal passado, acendeu um baseado, rasgou as roupas brancas e se dirigiu à janela de casa, nu, para gritar palavras nada elegantes ao ex-mestre. “Pilantra”, “ladrão” e “tarado” estavam entre elas. Os discos foram imediatamente amaldiçoados e se tornaram um pesadelo.
“As letras se tornaram um atestado de otário para Tim”, diz Nelson Motta. Proibidos pelo autor, com suas prensagens descontinuadas, os álbuns se tornaram peças arqueológicas. “O vinil dos dois primeiros sai por, no mínimo, R$ 1 mil cada. O terceiro pode ter um valor menor”, diz o jornalista Ramiro Zwetsch, da loja Patuá Discos.
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O filho Carmelo Maia, devidamente vestido de Cultura Racional Foto: Arquivo Pessoal
E então, o universo encantado dos streamings. Esses, como muitos outros discos de Tim, não estavam ainda disponíveis nas grandes plataformas de música – algo como dizer que não existiam para uma geração inteira. Depois de uma negociação conduzida por Carmelo Maia, filho e único representante legal do cantor, as músicas passaram a fazer parte dos catálogos há uma semana. Racional 1, 2 e 3 estariam completos se não fosse por um detalhe. Três músicas ficaram de fora, por uma falta de entendimento legal com as suas respectivas editoras. São elas O Caminho do Bem (talvez a maior falta), Cultura Racional (ambas do volume 2) e Lendo o Livro (do volume 3). 
Quase ao mesmo tempo, um outro Tim Maia ainda desconhecido virá à tona, segundo as previsões, ainda neste semestre. São gravações de seus sucessos em espanhol que ele nunca lançou. Carmelo explica. “Meu pai, depois de ficar desiludido no Brasil, foi para os Estados Unidos e ficou por lá cinco anos, recebendo influências de latinos e norte-americanos. Nos anos 90, gravou uma série de discos, entre 1994 e 1998 (ele morreria em março deste ano), com uma produção que não era nada comum. Em dois anos, fez cinco CDs de uma vez. E um desses, que nunca lançou, traz essas músicas em espanhol, comoPrimaveraAzul da Cor do Mar e Cristina.”
Há uma questão delicada nos relançamentos feitos à revelia de artistas que não estão mas presentes para vetá-los ou não. O cantor e compositor Hyldon já se pronunciou contrário, considerando um desrespeito trazer à luz uma fase que Tim teria renegado à escuridão. Carmelo fica possesso. “O problema é que existe muito cacique para pouco índio e as pessoas se esquecem de que, nessa tribo, só existe um cacique que se chama Carmelo Maia. Se quiserem decidir sobre as questões do meu pai, posso repassar a elas também os 413 processos que Tim deixou para eu resolver.”
Carmelo diz que Tim já vinha em um processo de aceitação das músicas. “Ele já tocava Racional Culture nos shows dos anos 90. Eu tenho isso gravado. Mas falar de Tim Maia é como falar de Seleção Brasileira em Copa do Mundo, todo mundo vira técnico. Eu estou aqui seguindo os mandamentos Maia.”
O próprio Carmelo é ele mesmo um fruto dos Maia vindo ao mundo em plena era da Cultura Racional. “Em nasci em 24 de janeiro de 1975, em pleno Universo em Desencanto.” A foto que está abaixo, enviada por ele à reportagem, é prova disso. O pai o vestia de branco com o símbolo da crença no peito. “E eu não podia usar outra roupa.” Seu nome foi uma sugestão do guru Manoel Jacintho, que veio a Tim com três opções assim que o menino nasceu: 1. Robson. O nome, traduzido, seria algo como filho de Roberto (son é filho em inglês). Filho de Roberto era o último nome que Tim colocaria em um rebento seu naqueles anos em que ainda amargava a esnobada de Roberto Carlos no início de sua carreira, quando pediu ajuda para ser lançado mas não teve atenção. “Filho de Roberto é o c...., mermão.” Não foi o que ele disse ao honorável guru, mas foi o que desabafou em casa. 2. Telmo. Tim lembrou na hora de San Telmo, um santo espanhol, e decidiu ali mesmo. “Meu filho jamais vai ser santo, mermão.” Carmelo era a terceira opção, e ela pegou no coração de Tim. O nome lembrava Nossa Senhora do Monte Carmo e, por associação, levava à sua mãe, que ele tanto respeitava. Tim levou o filho ao cartório e o registrou: Carmelo Maia. Quando voltou para casa, o apresentou: “Aqui está mãe, esse aqui é o Telmo.” Não se sabe porque, se fez confusão ou se arrependeu do registro, mas o fato é que, em família e na escola, Carmelo virou Telmo. 
Tim realizou sua fase espiritual confirmando um comportamento artístico quase unânime. “As fases espiritualistas costumam render grandes discos”, levanta Ramiro Zwetsch. Álbuns históricos foram feitos sob o manto da fé, seja lá no que for. Baden Powell e Vinícius de Moraes mergulharam nos terreiros para realizar, em 1966, a antologia do Afro-Sambas. John Coltrane queria toda a verdade do universo e a proximidade com seu criador ao gravar A Love Supreme, em 1965. Os Beatles entregaram-se à meditação transcendental do mestre indiano Maharishi Mahesh Yogi e foram à Índia para criar músicas que usariam em várias álbuns, como Dear Prudence, Norwegian Wood e Across The Universe. Aretha Franklin desceu às origens cristãs batistas e gravou Amazing Grace, em 1972, dentro de um templo de Los Angeles. Raul Seixas fundou ele mesmo, ao lado de Paulo Coelho, um irmandade, ou uma Sociedade Alternativa, lançada no disco Gita, de 1974, baseada em pensamentos do ocultista britânico Aleister Crowley: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei.” Uma espécie de liberdade anti-Cultura Racional. Quando Tim o encontrou, a conversa dos dois começou a ganhar um rumo perigoso. Tim queria levar Raul para a sua seita sob argumentos não muito espiritualísticos: “Tu toma cuidado, hein, magrelo. Nego cheira cocaína e fica logo com vontade de dar o… Cocaína afrouxa o brioco, mermão!”
Há um elo perdido no horizonte de Carmelo. Ele diz ser um sonho descobrir, afinal, onde estariam as gravações que Tim Maia fez com a JB Band, a banda de James Brown, nos Estados Unidos. Por ora, não se sabe nem se elas existem mesmo. Outro projeto que o herdeiro diz estar negociando é a montagem de um musical sobre Tim Maia, desta vez, na Broadway. Ele diz já ter tido contato com produtores norte-americanos que querem um projeto só com atores estrangeiros.
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