quinta-feira, 3 de julho de 2025

João Pereira Coutinho - Cem anos depois, o 'julgamento do macaco' ainda não terminou, FSP

 Deus ou o macaco? Boa pergunta. Cem anos atrás, um dos mais famosos processos judiciais da história dos Estados Unidos tentou responder a essa dúvida. Para os íntimos, ficou conhecido como "o julgamento do macaco".

Simplificando, o estado do Tennessee aprovou em 1925 uma lei, o Butler Act, que proibia o ensino de qualquer teoria que negasse a história bíblica da criação divina.

Um professor de biologia do ensino médio, John Scopes, foi levado a julgamento por violar a lei ao ensinar a teoria da evolução. O caso ganhou manchetes em todo o país e levou à pequena cidade de Dayton dois gigantes da época —o político William Jennings Bryan, do lado de Deus, e o advogado Clarence Darrow, do lado do macaco.

Gene Kelly em cena do filme "O Vento Será Tua Herança"
Cena do do filme 'O Vento Será Tua Herança', dirigido por Stanley Kramer - Reprodução

Conhecia o caso pelos textos satíricos de H.L. Mencken (um dos meus heróis) e pelo filme de Stanley Kramer, "O Vento Será Tua Herança", uma recriação do julgamento onde Bryan é apresentado como um macaco (intelectualmente falando) e Darrow como um deus (idem).

Mas a realidade histórica costuma ser mais fascinante do que qualquer reportagem ou obra de ficção. E o livro magistral de Edward Larson, que tem me acompanhado nos últimos dias, é prova disso. O título é "Summer for the Gods: The Scopes Trial and America's Continuing Debate over Science and Religion" — obra que venceu o Prêmio Pulitzer de História. Justíssimo.

Sim, nos seus elementos mais simples, o "julgamento do macaco" foi um confronto entre ciência e religião. Mas foi mais que isso.

Para começo de conversa, Scopes foi julgado porque aceitou ser julgado: a American Civil Liberties Union (ACLU) decidiu "testar" a lei e precisava de um réu voluntário. O promotor público e outras figuras locais participaram da encenação porque acreditavam que o caso traria publicidade e prestígio à cidade.

A publicidade veio quando William Jennings Bryan e Clarence Darrow se envolveram de verdade nessa batalha. O prestígio, esse, talvez não.

No livro de Larson, William Jennings Bryan surge como uma personalidade contraditória —e, por isso mesmo, mais fascinante do que Mencken ou Stanley Kramer me fizeram acreditar. Reacionário em matéria científica? Sem dúvida.

Mas ele também era um progressista na política: defensor ferrenho da classe trabalhadora contra o capitalismo do tipo laissez-faire e patrocinador de quatro emendas constitucionais decisivas —o direito de voto às mulheres; a implementação de impostos federais progressivos; a eleição direta de senadores; e a Lei Seca, como forma de combater o vício do álcool.

Bryan também era um pacifista radical: em 1915, ao perceber que os Estados Unidos se aproximavam da entrada na Primeira Guerra Mundial, pediu demissão do cargo de secretário de Estado no governo Woodrow Wilson, em protesto.

Hoje, talvez se sentisse em casa entre os setores mais puritanos da esquerda "woke" —não fosse sua oposição ferrenha a Charles Darwin e ao darwinismo social.

Não são a mesma coisa?

Pois não —e aqui começam os erros de Bryan. Para ele, o problema da teoria evolucionista de Darwin não estava apenas no fato de negar o relato bíblico da criação do homem.

O darwinismo, para Bryan, tinha sido responsável pela barbárie da guerra na Europa: a "sobrevivência do mais forte" —uma distorção popular da teoria de Darwin, que falava antes da sobrevivência do mais adaptável— teria alimentado entre as potências europeias um militarismo crescente, justificado por ideias de supremacia entre nações, que explodiu em 1914.

Além disso, Bryan responsabilizava Darwin pela popularidade da eugenia nos Estados Unidos: se era possível aprimorar a raça, segregando sexualmente ou esterilizando os geneticamente relapsos, isso se devia a Darwin e à ideia perversa de "seleção natural".

Confundindo ciência com versões sociais bastardas, era a desumanidade do mundo moderno que horrorizava Bryan. A desumanidade do imperialismo europeu. A desumanidade da busca pela raça perfeita.

Mas o livro de Larson apresenta uma razão suplementar para a cruzada anti-evolucionista de Bryan: o seu majoritarianismo militante. Ou, traduzindo, a crença de que a maioria deve decidir o que as escolas ensinam.

E, para ele, o ponto não estava em ensinar a versão bíblica da criação do homem. Mais importante era tratar o evolucionismo como uma hipótese, não como um fato.

A defesa de John Scopes, com o advogado Clarence Darrow à frente, desmontou os argumentos de Bryan. A lei começava por ser irracional tendo em conta o conhecimento científico disponível.

O estado poderia escolher as matérias que ensinava nas suas escolas, concedeu a defesa. Mas, se optasse por ensinar biologia, não o poderia fazer erradamente. Excluir o evolucionismo da biologia seria o mesmo que excluir o heliocentrismo da astronomia.

Mas o momento decisivo do julgamento aconteceu quando Darrow chamou o próprio Jennings Bryan para depor, confrontando-o com o literalismo bíblico dos fundamentalistas.

Jonas viveu dentro da baleia durante três dias e três noites? Josué fez o Sol parar nos céus? Onde é que Caim conheceu sua esposa?

As respostas de Bryan soaram confusas e, pior, ele próprio admitiu certas interpretações não literalistas da Bíblia, para desânimo dos seus apoiadores.

Apesar de tudo, o "julgamento do macaco" terminou com a condenação simbólica do "macaco" — isto é, do pobre Scopes. William Jennings Bryan, humilhado por Darrow, acabaria por morrer cinco dias após o fim do julgamento. H.L. Mencken, com deliciosa malvadez, concluiu: "Deus mirou em Darrow, errou e acertou em Bryan."

Mas acertou mesmo?

Eis a dúvida final do livro de Edward Larson. Depois do julgamento, leis anti-evolucionistas se espalharam pelo Sul dos Estados Unidos e só seriam revogadas décadas mais tarde. A corrida científica e tecnológica com a União Soviética apressou essa mudança: em plena Guerra Fria, engenheiros eram mais úteis que teólogos.

Mas o fundamentalismo religioso continuou, cresceu em número de aderentes e passou a habitar um universo próprio, com suas escolas, seus jornais, suas rádios, suas sociedades "científicas" (como a Sociedade de Geologia do Dilúvio, dedicada às desventuras de Noé e da arca).

Não é de admirar, conclui Larson, que 40% dos americanos, ainda hoje, afirmem que Deus criou os seres humanos na sua forma presente.

Como não surpreende, acrescento eu, que uma das batalhas centrais do julgamento ainda esteja viva: devem as maiorias decidir o que escolas e universidades ensinam? Ou a autonomia do conhecimento —como defendia Clarence Darrow— deve ser preservada frente às pressões das massas?

Estou de alma e coração com Darrow e contra todo tipo de dogmáticos que desejam controlar o conhecimento com suas preferências religiosas, mas também com suas obsessões ideológicas —de esquerda ou direita.

É por isso que, cem anos depois, o "julgamento do macaco" ainda não terminou.


quarta-feira, 2 de julho de 2025

Passagem de presidência do Mercosul, de Milei para Lula, marca distância entre os dois., FSP

 

Buenos Aires

A primeira visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a Buenos Aires desde o início do governo de Javier Milei, para participar da cúpula de presidentes do Mercosul na quinta-feira (3), marca mais do que a passagem protocolar de comando do bloco econômico. Ela ressalta as diferenças entre os dois líderes.

Durante sua campanha em 2023, Milei fez ataques a Lula, que recebeu em Brasília o então adversário do argentino nas urnas, Sergio Massa. O brasileiro também não foi à posse de Milei.

A expectativa de um encontro desconfortável fez o governo da Argentina, que agora entrega aos brasileiros a presidência rotativa do Mercosul, desenhar um evento breve. Não estão previstos encontros bilaterais entre os líderes —o mais próximo disso foi acertado para a véspera, entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e seu par argentino, Luis Caputo.

A imagem mostra uma mesa de conferência com vários líderes e representantes sentados. Há bandeiras do Brasil e da Argentina visíveis na mesa. Os participantes estão em trajes formais, alguns usando fones de ouvido. Ao fundo, é possível ver outros homens em pé, com bandeiras de diferentes países ao fundo. A atmosfera parece ser de uma reunião oficial ou cúpula.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e o da Argentina, Javier Milei, na Cúpula do Mercosul em Montevidéu, em 2024 - Mariana Greif/Reuters

O evento, que começa nesta quarta-feira (2) com os ministros da Fazenda e presidente de bancos centrais dos países, deve atender aos interesses argentinos de ampliação da lista de exceções à TEC (Tarifa Externa Comum) com mais 50 produtos, medida que o Brasil era contra.

Essa não foi, porém, a única divergência entre os dois principais sócios do bloco. Desde que assumiu a liderança do Mercosul, em dezembro do ano passado, Milei deixou clara a sua insatisfação em fazer parte do grupo (que também inclui Paraguai e Uruguai, tem a Bolívia como sócio em integração e a Venezuela suspensa) e, em diferentes ocasiões, sugeriu ou falou abertamente de uma versão sul-americana do brexit.

Ao assumir a presidência rotativa, em dezembro passado, Milei definiu o Mercosul como "uma prisão que não permite que os países-membros possam aproveitar nem suas vantagens comparativas, nem seu potencial exportador", sinalizando seu interesse em fechar um acordo comercial com os Estados Unidos, nem que para isso tivesse de sair do bloco.

Em janeiro, reafirmou em Davos, na Suíça, durante o Fórum Econômico Mundial, que estava pronto para sair do Mercosul se isso fosse necessário para conseguir um pacto de livre comércio com Washington. "Se a condição extrema fosse essa, sim", comentou. Em março, afirmou que o grupo só existe para "enriquecer os industriais brasileiros" às custas dos argentinos.

As queixas de Milei ainda encontravam algum eco do outro lado do rio da Prata, com o então presidente uruguaio Lacalle Pou, que por diversas vezes também reclamou da falta de flexibilidade do bloco. Com a vitória do esquerdista Yamandú Orsi no ano passado, o argentino ficou mais isolado.

Beneficiado pelas trocas comerciais e pelo regime de isenção de impostos que atrai indústrias para o seu lado da fronteira, o Paraguai sempre defendeu uma integração maior entre os sócios.

As divergências entre Lula e Milei se manifestam, por exemplo, na forma de abordagem da questão das mudanças climáticas, que o argentino nega. O Brasil aposta em promover uma vocação verde do Mercosul e fortalecer o Instituto de Direitos Humanos do bloco, enquanto o governo argentino rejeita a iniciativa.

Sobre o conflito do Oriente Médio, Milei adota uma postura alinhada a Donald Trump e a Israel, diferentemente do que faz Lula. As políticas de gênero da agenda 2030 da ONU também são um ponto de conflito entre os dois líderes. O governo argentino minimiza essas divergências, rebatendo que elas foram administradas de forma inteligente durante o seu período de presidência do bloco.

As discordâncias entre Planalto e Casa Rosada também vão além dos temas caros ao Mercosul, já que o presidente brasileiro pode ter um compromisso a alguns quilômetros do Palácio San Martín.

Desde junho, a ex-presidente Cristina Kirchner cumpre prisão domiciliar de seis anos em seu apartamento, no bairro de Constitución, em Buenos Aires, e ela e Lula já conversaram por telefone, segundo o próprio presidente disse em suas redes sociais.

Na terça-feira (1º), a defesa de Cristina pediu permissão à Justiça para que o presidente brasileiro possa visitá-la em algum momento de sua viagem à Argentina. O tribunal que a condenou em primeira instância determinou, entre outras medidas, que ela deve pedir permissão para receber visitas além de seus familiares, médicos ou advogados.

Até a publicação deste texto, a Justiça do país ainda não tinha se pronunciado sobre a autorização.