sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Lula e Tarcísio disputam crédito por megaoperação contra PCC, MEIO

 

Lula e Tarcísio disputam crédito por megaoperação contra PCC

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez questão de puxar para o governo federal os créditos da investigação que desaguou na megaoperação batizada de “Carbono Oculto”, que ligou o PCC à Faria Lima em um esquema bilionário de lavagem de dinheiro e fraudes no setor de combustíveis e envolveu mais de 1,4 mil agentes estaduais e federais em dez estados do país. De acordo com Lula, a ação foi a “maior resposta ao crime organizado da nossa história até aqui”. O presidente também elogiou os órgãos federais envolvidos na investigação. “O trabalho integrado — iniciado com a criação, no Ministério da Justiça, do Núcleo de Combate ao Crime Organizado — permitiu acompanhar toda a cadeia e atingir o núcleo financeiro que sustenta essas práticas”, disse. Centralizar o combate ao crime organizado no governo federal é uma das propostas da PEC da Segurança Pública apresentada pelo governo federal ao Congresso. (Poder360)

Lula buscou levar o protagonismo para o governo federal com dois objetivos. Um, mais claro, era mostrar à opinião pública que o Planalto combate o crime organizado de forma séria e estruturada. O outro, mais sutil, foi mandar um recado para o presidente americano Donald Trump, que, em sua escalada contra o país, tem dado a entender que Brasília atua, no mínimo, de maneira apática contra as organizações criminosas no Brasil, em especial o PCC. A administração Trump vem dando sinais de que pretende classificar as facções brasileiras como grupos terroristas, o que abriria espaço, ao menos nos Estados Unidos, para ações militares agressivas contra esses grupos. (Folha)

Mais cedo, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e o da Fazenda, Fernando Haddad, promoveram uma entrevista coletiva em Brasília para explicar os detalhes da operação. Entenda o esquema aqui. (Meio)

Em São Paulo, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) tentou também assumir a paternidade da operação, organizada de forma conjunta entre o Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público paulista, o Ministério Público Federal e as polícias Federal e estadual. Logo pela manhã, Tarcísio publicou uma nota nas redes sociais parabenizando o serviço de inteligência do Gaeco e das polícias de São Paulo que, segundo ele, se “expandiu por todo o país”, sem citar os órgãos federais. (Veja)

De acordo com apuração de Lauro Jardim, a operação deflagrada nesta quinta-feira deve expandir seus alvos não apenas para outras facções criminosas, mas também para políticos que usavam o esquema montado na Faria Lima para lavar recursos ilícitos vindos de crimes de corrupção. Segundo o jornalista, a investigação deve revelar em breve que políticos que estão no comando de partidos ligados à direita e ao Centrão também participavam do esquema. (Globo)

A gigantesca operação escancarou o protagonismo do centro financeiro do país nas operações de uma das maiores facções criminosas do Brasil, com ramificações em quase 30 países ao redor do mundo. Os alvos das buscas da investigação mostram que a Faria Lima, região conhecida no mercado financeiro como o “Condado”, de fato concentrava a maior parte das fintechs envolvidas no esquema, que eram, em muitos casos, vizinhas de porta. Os responsáveis por lavar o dinheiro do PCC dividiam, muitas vezes, o mesmo endereço. Dez empresas envolvidas no esquema estão localizadas em um dos edifícios mais icônicos da Avenida Faria Lima, em São Paulo, o Birmann 32, um prédio de 25 andares que abriga o teatro B32 e a famosa baleia prateada. No edifício prateado localizado na Rua Joaquim Floriano, 100, outras 15 empresas investigadas dividem o mesmo endereço. (Metrópoles)

A Receita Federal identificou ao menos 40 fundos de investimento, a maior parte deles de multimercado e ativos imobiliários, no esquema de lavagem de dinheiro organizado por empresas financeiras que tinha como principal beneficiado o PCC. Dados da Receita mostram que esses fundos tinham patrimônio conjunto que superava os R$ 30 bilhões. Parte dos fundos era usado também para ocultar o patrimônio de criminosos ligados à facção com sede em São Paulo e com atuação em todo o país. Todos os fundos, diz a receita, são fechados e têm apenas um único cotista. Os fundos, mostra também a Receita, financiaram a compra de um terminal portuário, quatro usinas de álcool, 1,6 mil caminhões para transporte de combustível além de 100 imóveis pelo Brasil. (g1)

Veja as principais instituições do mercado financeiro que foram alvo da operação. (CNN Brasil)

A operação vai impactar profundamente as fintechs que operam no Brasil. Haddad havia antecipado que a partir desta sexta-feira a Receita Federal enquadraria as empresas de finanças que atuam no mercado digital como instituições financeiras regulares, a exemplo dos grandes bancos do país. A norma foi publicada nesta manhã no Diário Oficial da União. “Com isso, aumenta o potencial de fiscalização da Receita e a parceria da Receita com a Polícia Federal para chegar aos sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro que o crime organizado tem utilizado”, disse o ministro. Haddad acrescentou ainda que a Receita vai utilizar inteligência artificial para aprimorar a fiscalização contra essas empresas. (Valor e g1)

O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, disse que a revogação da instrução normativa que ampliava o monitoramento de operações financeiras, em janeiro, foi resultado do “maior ataque de mentiras e fake news da história da Receita”. O discurso de que haveria “taxação do Pix”, capitaneado nas redes pelo deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), segundo Barreirinhas, não só inviabilizou a norma, como acabou beneficiando diretamente organizações criminosas envolvidas no esquema desbaratado ontem. (CNN Brasil)

Vera Rosa: “O governo Lula viu na Operação Carbono Oculto a oportunidade ideal para enquadrar as fintechs sem ter de recuar, como ocorreu em janeiro. Há tempos a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) cobravam do Ministério da Fazenda providências contra essas empresas, que não estão sob a supervisão do Banco Central nem da Receita Federal, e têm sido usadas para lavagem de dinheiro do crime organizado e até de bets irregulares”. (Estadão)

O diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, disse que o esquema de lavagem de dinheiro que une o PCC e fintechs da Faria Lima não era de uso exclusivo da facção criminosa. A expectativa é de que, com o aprofundamento das investigações, novos grupos que se beneficiavam do esquema venham à tona. (CNN Brasil)

A Polícia Federal iniciou uma investigação própria para apurar suspeitas de que teria havido vazamento da operação. Dos 14 mandados de prisão emitidos pela Justiça, apenas seis foram cumpridos porque os alvos não foram encontrados. A suspeita é que ao menos parte deles tinha informação de que seria presa. (Neofeed)

Entre eles estão Roberto Augusto Leme Silva, o Beto Louco, e Mohamad Hussein Mourad, o Primo, apontados como os verdadeiros donos do grupo de distribuição de combustíveis Aster/Cocape, ligado ao PCC e vetor principal no esquema desbaratado pelas investigações. Os dois não foram encontrados pela polícia e agora são considerados foragidos da Justiça. (Estadão)

  

O governo federal iniciou o processo que pode levar à aplicação da Lei de Reciprocidade Econômica contra os Estados Unidos pela aplicação do tarifaço contra produtos brasileiros exportados para os americanos. O Ministério das Relações Exteriores informou à Câmara de Comércio Exterior (Camex) que o Brasil iniciou as consultas e medidas para aplicar a legislação contra os EUA. A Camex tem 30 dias para avaliar se é possível a aplicação da lei. O Brasil vai notificar oficialmente o governo americano sobre o início do processo nesta sexta-feira. Entre as alternativas discutidas por especialistas dos setores de óleo e gás, farmacêutico e agrícola, está a suspensão de direitos de propriedade intelectual, o que poderia incluir a quebra de patentes de medicamentos e defensivos agrícolas. (g1)

Jussara Freire: “Integrantes do governo afirmaram que o início do processo deixa espaço para que os Estados Unidos se manifestem durante a investigação e também para que mantenham diálogos diplomáticos. O governo brasileiro tem repetido que não se recusa a negociar os termos comerciais”. (CNN Brasil)


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

‘Crime organizado está bancarizado; ninguém precisa de paraíso fiscal’, diz chefe da Receita em SP, OESP

 Márcia Meng é a superintendente da Receita Federal em São Paulo e uma das responsáveis pela operação que cercou nesta quinta-feira, 28, um total de 42 alvos em cinco endereços da Avenida Faria Lima. Ao Estadão, ela contou como o crime organizado usou as instituições de pagamento, as chamadas fintechs, para chegar ao coração financeiro do País.

Os investigadores responsáveis pela operação na Faria Lima dizem que a ação mostra uma terceira fase da ação do crime organizado no País. Depois de organizar o tráfico internacional de drogas e de se apossar de contratos com o setor público, agora ele teria se infiltrado em parte do sistema financeiro.

Veja os principais trechos da entrevista:

No que as fintechs se transformaram no País e por quê?

É bom a gente fazer uma diferenciação. Há fintechs que atuam regularmente no mercado e há essas fintechs que a gente está se referindo. Essas fintechs se transformaram em verdadeiros operadores do crime organizado dentro do sistema financeiro. São elas que permitem a introdução do dinheiro ilícito no sistema. Eles bancarizaram a atividade financeira dessas entidades criminosas.

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Como foi essa evolução do crime organizado no Brasil? O que acontecia antes quando alguém desejava blindar seu patrimônio e o que é feito hoje?

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Há uma grande sofisticação, maior do que havia no passado, quando essas atividades criminosas eram feitas através de empresas de fachada. Empresas que muitas vezes eram mais fáceis a gente identificar, pois elas eram irregulares. Hoje elas estão dentro da economia formal. Compram empresas que são operacionais, usam fintechs para bancarizar o dinheiro ilícito e usam fundos de investimento para adquirir patrimônio e blindar o real beneficiário deste patrimônio. Antigamente, para você fugir ao controle estatal, você levava o seu dinheiro para um paraíso fiscal. Hoje você não precisa fazer isso; você simplesmente abre, no seu celular, a conta numa fintech, transita o dinheiro irregular para dentro dessa fintech e essa fintech vai atuar transferindo esses valores para fundos de investimento. Aí você pode comprar casas, empresas, pode atuar no mercado financeiro e pode fazer render aquele capital que foi adquirido de forma ilícita.

De que forma isso pode prejudicar todo o ambiente de negócios e colocar o próprio País em risco?

Esse é um tipo de situação que coloca todo um setor econômico refém de um grupo criminoso, porque eles dominam desde produtos importados, desde a importação desses produtos, até a venda para o consumidor final. Ou seja, todas as etapas da cadeia produtiva são dominadas pelo crime. Eles passam a adquirir, por meio desses fundos de investimento, empresas em cada segmento, em cada elo dessa cadeia econômica. É muito difícil que qualquer pessoa consiga regularmente concorrer com essas empresas, que são operacionais. Há um problema concorrencial, um problema para a economia, já que, muitas vezes, o produto vendido é de má qualidade, adulterado, o que causa outros problemas, às vezes de saúde. Veja que isso ocorre quando nós queremos mudar a nossa matriz energética para uma matriz mais limpa. Quando temos grupos criminosos atuando em determinados setores econômicos, eles incentivam o uso de uma matriz econômica que não é a mais limpa.

Como lidar com essa opacidade? Existe alguma medida que poderia ser adotada e que poderia, de alguma forma, garantir um pouco mais de fiscalização e controle para lidar com essa situação e tentar reverter, em parte, esse descontrole das instituições de pagamento?

Sim. A Receita, em 2024, fez uma alteração de uma instrução normativa que já era aplicada para todas as instituições financeiras. A única alteração que havia dentro dessa instrução normativa era a obrigação de as fintechs também prestarem informações à Receita Federal sobre as movimentações que ocorrem dentro da fintech. Infelizmente, essa instrução normativa teve que ser revertida após uma onda de fake news. Hoje nós não temos a visibilidade do que acontece dentro de uma fintech da forma como nós temos a visibilidade do que acontece num banco normal. Isso não era uma obrigação nova, uma obrigação que todas as condições financeiras já não entregassem, não se quebrava o sigilo bancário, porque nós já temos essas informações vindas dos bancos – já é reconhecido o direito da administração de ter essas informações. Mas, especificamente, das fintechs, por serem meios de pagamento e não serem instituições financeiras, elas estão fora desse hall de pessoas obrigadas a entregar essa declaração.

A mera entrega dessa declaração permitiria à Receita ter visibilidade sobre quais são as fintechs que atuam regularmente e quais são as que não atuam. Até para o mercado de inovação, para a importância que ele tem no País, ele precisa ter essa regulação para que possa ser feita a diferenciação entre os que funcionam como banco do crime organizado e aquelas que funcionam regularmente, apenas dando oportunidade de bancarização à grande massa de população que nós temos.

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O importante é ter inovação com segurança?

Sem dúvida nenhuma. Se a gente não tiver uma regulação que permita esse equilíbrio entre a inovação que trazem as fintechs, com a segurança do sistema financeiro, nós vamos ter a infiltração do crime organizado no nesse sistema, como nós estamos vendo nessa operação.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A Bolsalidade, Alexandre Marcos Pereira, in APMP

 O professor Conrado Hübner, que escreve semanalmente na Folha de São Paulo, criou um neologismo – bolsalidade – palavra substantiva que sintetiza em um único termo as características, atributos e comportamentos próprios de alguém que você certamente conhece.

A bolsalidade se infiltra nas frestas do cotidiano como mofo em parede velha: não aparece de uma vez, mas aos poucos toma a superfície, disfarçada de piada, de “opinião forte”, de “senso prático” que dispensa livros, instituições e nuances. A bolsalidade é um método de simplificar o mundo até que caiba num meme: um mundo sem dúvidas, sem delicadezas, sem a lerdeza paciente do pensamento.

Não se limite a procurá-la nas passeatas de gritos e nas camisetas de frases de efeito. Ela está também nos risos cúmplices das mesas de bar quando alguém transforma a dor de um grupo inteiro em anedota; no compartilhamento impensado de um vídeo “que só estou repassando”; na convicção de quem, diante da complexidade, responde: “Eu vi no WhatsApp”. Está nos ambientes de trabalho quando se normaliza o desprezo por quem lê, estuda ou recusa o atalho da grosseria. Está, sobretudo, na covardia social de quem sabe que certas violências são inaceitáveis, mas prefere acomodar-se ao coro para “não causar”.

Hannah Arendt chamou de banalidade o que muitos gostariam de enxergar como monstruosidade: a capacidade de gente ordinária reproduzir, por hábito, indiferença e servidão ao brutal. A bolsalidade, como versão tropical dessa engrenagem, converte a grosseria em virtude cívica e a ignorância altiva em prova de autenticidade. O gesto é antigo: Umberto Eco, ao listar traços do “ur-fascismo”, descreveu a idolatria da ação pela ação, o culto da força, o medo da diferença, o machismo travestido de moral — como se fossem espelhos pendurados na nossa sala de estar. Do outro lado da nossa tradição, Machado de Assis, na “Teoria do Medalhão”, desenhou a apoteose da mediocridade respeitável: a carreira do espírito que evita ideias para colher aplausos. Se trocarmos a cartola pelo boné e a pena pelo post, a genealogia está feita.

“Mas isso é só política”, dirá alguém, abanando a mão. É aí que a crônica pede atenção. A bolsalidade não é mera preferência partidária; é um estilo de percepção. Onde ela chega, a linguagem perde gradações; a realidade vira o que convém numa tarde quente. Numa escola, vira a desconfiança contra o professor que convida ao debate. Num fórum, vira a impaciência contra o rito e a prova, como se o devido processo fosse frescura. Numa redação, vira o cálculo cínico de que a verdade precisaser torcida para caber no algoritmo. Na família, vira a pedagogia do deboche, ensinando crianças a rir do fraco e a desconfiar da compaixão.

“Ah, mas todo mundo exagera.” Sim, todo mundo erra; a diferença é quando o erro vira identidade e ponto de honra. A bolsalidade orgulha-se de sua própria rudeza, veste-a como brasão. Ela aplaude a humilhação como quem celebra eficiência, confunde firmeza com brutalidade e chama de “lacração do bem” qualquer ataque que lhe interesse. No extremo, ela transforma a violência em estética — e, como toda estética, pega. É contagiosa porque dá pertencimento rápido e barulhento, fornece respostas sem custo, heroísmos sem sacrifício e inimigos sem rosto.

Há um detalhe que os manuais não sublinham: a bolsalidade é uma indústria caseira. Não precisa de grande financiamento nem de quartéis; precisa de plateia. Alimenta-se do riso fácil, do like distraído, do silêncio dos tibetanos do centro — aqueles que, em nome de uma prudência que não fere ninguém, deixam que tudo se fira. Cresce, portanto, na omissão dos que se julgam “acima” do tumulto, mas cuja neutralidade só pesa de um lado. A indiferença, dizia Antonio Gramsci, é musculosa; e aqui ela é personal trainer de boçalidade.

Como desmontar isso sem virar o que se combate? Primeiro, recuperando a gramática da civilidade sem melar a firmeza. Não se trata de “ser fofinho”, mas de reabilitar a ideia de que pensar exige tempo e que o outro não é um obstáculo a ser esmagado, e sim uma alteridade a ser compreendida ou refutada com argumentos. Em segundo lugar, defendendo instituições não como fetiches, mas como pactos: a ciência com suas correções, a justiça com seus prazos, a imprensa com sua autocrítica, a política com sua chatice. A chatice democrática é o preço da liberdade: discussão, contraditório, evidência, voto, prestação de contas. É menos excitante que a grosseria performática — mas sustenta.

Há, ainda, um antídoto de longo prazo que costuma parecer delicado demais para tempos ásperos: a literatura. Antonio Candido lembrava que a fruição literária é um direito humano porque humaniza. Ler com vagar é treinar o músculo da nuance, da ambiguidade, do “não sei”. É aceitar que um personagem pode nos desmentir sem que precisemos cancelá-lo. A bolsalidade, que só reconhece caricaturas, apodrece quando obrigada a lidar com Dostoiévski, Clarice, Guimarães Rosa, Shakespeare — não porque esses autores deem respostas, mas porque nos impedem de empinar certezas. E, se quiser um autor doméstico para a vacina, repito: Machado de Assis, mestre das ironias microscópicas, doutor em desmontar pretensões.

Imaginona cena comum numa manhã de calor em Ribeirão Preto: na padaria, o rádio despeja palavras de ordem que soam prontas, um senhor repete um bordão de campanha como se fosse oração, a moça do caixa sorri amarelo e volta ao troco. Nada acontece — e tudo acontece. A vida segue no compasso da normalidade, enquanto as pequenas licenças do discurso vão ganhando ares de lei natural. Do

lado de fora, a calçada estala ao sol; do lado de dentro, a conversa pula de preço do café para “essa gente aí”. É assim que se arma a pasmaceira moral: cada qual jura que não participa, mas empresta o ouvido, o riso, o repasse.

Talvez a crônica não mude ninguém. Talvez sirva só para registrar o incômodo e propor um método doméstico de resistência: recusar o deboche como argumento, exigir provas quando a retórica vier gritando, proteger a dúvida como território sagrado e manter o humor — não o humor de humilhar, mas o humor de enxergar o ridículo do próprio lado. Porque a bolsalidade é onívora: se não a policiamos em nós, ela muda de camiseta e continua.

No fim da tarde, quando o vento melhora e as árvores da rua deitam sombra na fachada, você percebe que a vizinhança também cansa do grito. Uma criança pergunta por que adulto fala tão alto. A pergunta, pequena e justa, é a melhor crítica sociológica do dia. Quem sabe seja por aí: reaprender a falar baixo para pensar alto, sem abdicar da coragem de dizer “não”. Não ao cinismo travestido de sinceridade. Não à ignorância exibida como troféu. Não à crueldade com fantasia de patriotismo.

E então volto ao início, para que se feche o círculo com uma escolha: se a bolsalidade não é surto de poucos, tampouco é destino de todos. Ela viceja onde a conversa rende pouco e a imaginação se rende cedo. Se a tratarmos como estilo — e não como inevitabilidade —, poderemos aposentá-la como se aposentam modas ruins: parando de usá-las, de aplaudi-las, de achá-las “apenas engraçadas”. E, quando a vontade de repetir o bordão vier, lembrar que o silêncio, às vezes, é uma elegância; e a elegância, nesses tempos, é um compromisso político.

A crônica acabou, mas a conversa ainda nos salva.