sábado, 2 de julho de 2022

Samuel Pessôa -Pleno emprego nos anos 2000?, FSP

 

Há duas semanas reagi neste espaço ao artigo de André Singer e Fernando Rugitsky. Argumentei que a economia operou a pleno emprego nos anos 2000. Empreguei uma informação da IFI (Instituição Fiscal Independente do Senado), de que o hiato de recursos no período fora positivo. Hiato de recursos positivo é a forma como os macroeconomistas chamam a situação da economia quando ela opera além da plena capacidade.

Assim, discordei da afirmação deles no artigo original, de que o estudo da IFI mostrava que a política fiscal tinha contribuído para elevar a taxa de crescimento. O estudo da IFI mostrou apenas que houve impulso fiscal positivo.

Segundo os autores, "ocorre que a identificação da capacidade de crescimento de uma economia ou, para usar o termo técnico, de seu produto potencial, é sabidamente controversa. Mais: no caso concreto, os dados do mercado de trabalho não sustentam a ideia de que a economia estivesse com ‘pleno emprego’, especialmente no início do período mencionado pelo articulista".

Trabalhadores em busca de vagas fazem fila durante Mutirão do Emprego em SP - Danilo Verpa - 16 mai.2022/Folhapress

Apesar de os dados da IFI indicarem hiato positivo —basta olhar o gráfico 2 do estudo citado na resposta a mim—, os autores apontam que havia ociosidade no mercado de trabalho. Aí tenho dificuldade de acompanhá-los. Se o hiato da IFI era positivo, como poderia haver ociosidade do trabalho?

A figura abaixo apresenta os cálculos de meu colega de Ibre Bráulio Borges, da taxa de desemprego que mantém os salários crescendo no mesmo ritmo da produtividade do trabalho. Essa é a taxa natural de desemprego, ou a taxa de desemprego que não acelera a inflação. Como o nome sugere, se a taxa de desemprego for menor do que a natural, a inflação acelerará permanentemente.

Os dados são claríssimos: entre o primeiro trimestre de 2004 e o segundo de 2015, a taxa de desemprego observada correu aquém da taxa natural. Foi por isso que, ao longo desse período, a inflação acelerou, as exportações líquidas pioraram, os salários subiram além da produtividade e a rentabilidade do investimento reduziu-se.

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O leitor pode estranhar que a taxa natural tenha sido tão elevada no período. A taxa natural de desemprego é dada pelas regras de operação da economia, ou seja, pelo marco legal e institucional.

Há evidências de que, com a reforma trabalhista, a taxa natural está em queda no Brasil. Adicionalmente, dados recentes muito positivos do desempenho do mercado de trabalho, com forte geração de empregos, inclusive formais, sugerem que deve ter havido uma quebra estrutural no funcionamento do mercado de trabalho.

​Somente reformas microeconômicas e a melhora da qualidade do sistema público de educação conseguirão reduzir a taxa natural de desemprego.


Supremocracia lá e cá, Oscar Vilhena Vieira, FSP

 O Supremo Tribunal Federal brasileiro e a Suprema Corte norte-americana ocupam uma posição proeminente em seus respectivos sistemas políticos. Não há questão relevante de natureza política, econômica e, sobretudo, moral que não termine sendo submetida à apreciação dessas cortes. Isso não significa que esses tribunais empreguem seus poderes "supremocráticos" da mesma maneira. Por "fortuna", como diria Maquiavel, nosso Supremo tem se colocado, na presente conjuntura, ao lado da democracia; já a corte de Washington confirmou-se, nesta semana, como vanguarda do atraso.

Enquanto nosso boquirroto Supremo Tribunal Federal vem se empenhando na defesa da integridade do processo eleitoral, do meio ambiente, dos direitos indígenas, do controle das armas e da violência, entre outros valores constitucionais cotidianamente atacados por um presidente hostil à Constituição de 1988, a circunspecta Suprema Corte assumiu, após a derrota eleitoral e a frustrada tentativa de golpe promovida por Trump, a liderança do movimento conservador, promovendo, sem intermediários, o maior processo de regressão constitucional na história constitucional norte-americana.

Justiça
Succo por Pixabay

Em sua recente safra de decisões, a Suprema Corte restringiu o direito ao aborto, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, limitou o poder dos Estados de regular o acesso a armas de fogo e constrangeu severamente a capacidade do governo federal de promover a redução dos gases de efeito estufa, com impacto sobre o clima de todo o planeta. Fica claro, pelo andar da carruagem, que temas como a ação afirmativa e a igualdade do voto também podem entrar na sua alça de mira.

O protagonismo político das supremas cortes no Brasil e nos Estados Unidos, embora apresentem sinais opostos nessa quadra da história, decorre, sobretudo, de uma profunda disfuncionalidade dos nossos sistemas políticos.

Quando os mecanismos de representação política se tornam incapazes de promover consensos básicos; quando governantes deixam de cumprir promessas elementares, ou; quando atores políticos e institucionais se demonstram descompromissados com procedimentos e práticas constitucionais, é natural que o sistema de Justiça se veja sobrecarregado com questões políticas. Esse deslocamento da política para o Judiciário provoca, inevitavelmente, um forte desgaste na autoridade dos tribunais e, consequentemente, da própria lei.

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A forte polarização política no Brasil e nos Estados Unidos, potencializada pelas redes sociais e levada a extremos por populistas como Trump e Bolsonaro, reduziram ainda mais a capacidade do sistema político de encontrar alternativas racionais e consensuais para o enfrentamento de desafios complexos dos cidadãos. Ao invés de operar para construir convergências, populistas maximizam seu poder pela exploração dos conflitos e divergências.

Essa mesma polarização impacta ainda a composição dos tribunais, inviabilizando a manutenção de uma postura imparcial. Presidentes e senadores —lá e cá— passaram a empregar de maneira cada vez mais estratégica suas prerrogativas para a nomeação de magistrados encarregados de defender seus interesses e cosmovisões, em detrimento da defesa da lei e da Constituição.

Enquanto não formos capazes de reformar nosso sistema político, para que ele se torne capaz de coordenar conflitos e implementar soluções para problemas da comunidade, estaremos fadados a conviver com a judicialização da política. O que a experiência norte-americana nos ensina é que a "fortuna" nem sempre estará ao lado da Constituição e da democracia.


sexta-feira, 1 de julho de 2022

‘Quero redefinir meu cérebro’: mulheres recorrem à terapia psicodélica para curar traumas, OESP NYT

 THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - TIJUANA, México - Nuvens de incenso rodavam pela sala mal iluminada enquanto sete mulheres se revezavam explicando o que as levou a se inscrever para um fim de semana de terapia psicodélica em uma vila no norte do México com vistas arrebatadoras do oceano.

Mulheres se reúnem em cerimônia de chá de cogumelo psicodélico em março em um retiro de terapia de veteranos no México.
Mulheres se reúnem em cerimônia de chá de cogumelo psicodélico em março em um retiro de terapia de veteranos no México. Foto: Meridith Kohut/The New York Times

Uma ex-fuzileira naval dos EUA disse que esperava se conectar com o espírito de sua mãe, que se matou 11 anos atrás. Uma veterana do Exército disse que foi abusada sexualmente por um parente quando criança. Outras veteranas disseram ter sido agredidas sexualmente por colegas de serviço.

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A esposa de um especialista em desativação de bombas da Marinha engasgou ao lamentar que anos de missões implacáveis de combate tenham transformado seu marido em um pai ausente e disfuncional.

Kristine Bostwick, 38, ex-paramédica da Marinha, disse esperar que a participação em cerimônias com substâncias que alteram a mente a ajude a fazer as pazes com o fim de um casamento turbulento e talvez aliviar as enxaquecas que se tornaram um tormento diário.

“Quero redefinir todo meu cérebro”, ela disse durante a sessão introdutória de um recente retiro de três dias, enxugando as lágrimas. “Meus filhos merecem. Eu mereço.”

Um crescente corpo de pesquisas sobre os benefícios terapêuticos da terapia psicodélica gerou entusiasmo entre alguns psiquiatras e investidores de risco.

Medidas para descriminalizar psicodélicos, financiar pesquisas sobre seu potencial de cura e estabelecer estruturas para seu uso medicinal foram aprovadas com apoio bipartidário em conselhos municipais e legislaturas estaduais nos Estados Unidos nos últimos anos.

Grande parte do apelo crescente a tais tratamentos foi impulsionado por veteranos das guerras americanas no Afeganistão e no Iraque. Tendo se voltado para terapias experimentais para tratar transtorno de estresse pós-traumático, lesões cerebrais traumáticas, vício e depressão, muitos ex-militares se tornaram defensores efusivos de uma adoção mais ampla dos psicodélicos.

Os participantes de retiros psicodélicos costumam pagar milhares de dólares pela experiência. Mas essas veteranas e cônjuges de veteranos que viajaram para o México para tratamento no Mission Within estavam participando de graça, como cortesia do Heroic Hearts Project e do Hope Project. Os grupos, fundados por um patrulheiro do Exército e a esposa de um SEAL da Marinha, arrecadam dinheiro para tornar a terapia psicodélica acessível para pessoas de origem militar.

Samantha Juan, veterana do Exército que participou do retiro, brincando com Jack, um cão de serviço especialmente treinado para veteranos militares com transtorno de estresse pós-traumático.
Samantha Juan, veterana do Exército que participou do retiro, brincando com Jack, um cão de serviço especialmente treinado para veteranos militares com transtorno de estresse pós-traumático. Foto: Meridith Kohut/The New York Times

O Mission Within, nos arredores de Tijuana, é dirigido pelo Dr. Martín Polanco, que desde 2017 se concentra quase exclusivamente no tratamento de veteranos.

“Percebi desde cedo que, se concentrássemos nosso trabalho nos veteranos, teríamos um impacto maior”, disse Polanco, que disse ter tratado mais de 600 mil veteranos americanos no México. “Eles entendem o que é preciso para atingir o desempenho máximo.”

No início, ele disse, tratava quase exclusivamente os veteranos do sexo masculino. Mas recentemente, começou a receber muitos pedidos de mulheres veteranas e esposas de militares e começou a organizar retiros só para mulheres.

Com exceção dos ensaios clínicos, a terapia psicodélica é atualmente realizada na clandestinidade ou sob uma legalidade nebulosa. À medida que a demanda aumenta, alguns países da América Latina, incluindo Costa Rica, Jamaica e México, tornaram-se centros de protocolos experimentais e estudos clínicos.

No México, duas das substâncias que Polanco administra - a ibogaína, um psicoativo à base de plantas comumente usado para tratar o vício, e o 5-MeO-DMT, um poderoso alucinógeno derivado do veneno do sapo do deserto de Sonora - não são ilegais nem aprovadas para uso médico. A terceira, os cogumelos psicodélicos, pode ser tomada legalmente em cerimônias que seguem as tradições indígenas.

No momento em que as sete mulheres se reuniram em círculo para a cerimônia do cogumelo em um sábado recente, cada uma havia assinado um termo de isenção de responsabilidade. Elas preencheram questionários que medem o estresse pós-traumático e outras doenças psicológicas e passaram por um check-up médico.

Conduzindo a cerimônia estava Andrea Lucie, uma especialista chilena-americana em medicina mente-corpo que passou a maior parte de sua carreira trabalhando com veteranos americanos feridos. Depois de soprar sálvia queimada em xícaras de chá de cogumelos servidos em uma bandeja decorada com flores e velas, Lucie leu um poema de María Sabina, uma curandeira indígena mexicana que já conduziu cerimônias com cogumelos.

Os cogumelos que produzem psilocibina, uma droga psicodélica natural.
Os cogumelos que produzem psilocibina, uma droga psicodélica natural. Foto: Meridith Kohut/The New York Times

“Cure-se com amor lindo e lembre-se sempre, você é o remédio”, recitou Lucie, que é de uma família indígena Mapuche no Chile.

Depois de beber, as mulheres deitaram em colchões no chão e colocaram máscaras nos olhos enquanto uma música suave tocava em um alto-falante.

As primeiras agitações ocorreram cerca de 40 minutos após a cerimônia. Duas mulheres baixaram as máscaras e choraram. Uma riu e depois começou a gargalhar.

Então começaram os lamentos. Jenna Lombardo-Grosso, a ex-fuzileira naval que perdeu a mãe por suicídio, saiu da sala e se aconchegou com Lucie no andar de baixo.

Lombardo-Grosso, 37, soluçou e gritou: “Por que, por que, por que!” Mais tarde, ela explicou que os cogumelos tinham feito surgir episódios traumáticos de abuso sexual na infância.

Dentro da sala de cerimônias, Samantha Juan, a veterana do Exército que foi abusada sexualmente quando criança, começou a chorar e pegou seu diário. Foi sua terceira vez em um retiro administrado por Polanco, onde ela disse ter enfrentado uma vida inteira de memórias traumáticas que a levaram a beber muito e usar drogas para escapar de sua dor depois de deixar o Exército em 2014.

“Aprendi a ter empatia e bondade comigo mesma”, disse Juan, 37.

Seu objetivo neste retiro, ela disse, era fazer as pazes com uma agressão sexual que ela disse ter sofrido no Exército.

“Na jornada de hoje, o foco é o perdão”, disse Juan pouco antes de tomar os cogumelos. “Não quero mais esse tipo de angústia em mim.”

À medida que os efeitos dos cogumelos passavam, predominava uma sensação de calma. As mulheres trocavam histórias sobre suas viagens, contavam piadas e se perdiam em longos abraços.

O nervosismo voltou na manhã seguinte enquanto as mulheres esperavam sua vez de fumar 5-MeO-DMT, uma viagem que Polanco chama de “estilingue” pela velocidade e intensidade da experiência.

Naquela noite, Alison Logan, esposa de um especialista em neutralização de explosivos da Marinha que estava prestes a se divorciar, parecia abatida. As viagens, ela disse, trouxeram sua tristeza à tona, mas não forneceram insights nem senso de resolução.

“Parecia muita dor sem nenhuma resposta”, ela disse.

Mas as outras participantes disseram que suas doenças físicas desapareceram e seu humor melhorou.

Lombardo-Grosso disse que o retiro a ajudou a fazer as pazes com a perda de sua mãe e mudou sua visão de futuro de uma sensação de medo para uma de otimismo. “Eu me sinto inteira”, ela disse alguns dias depois de sua casa em Tulsa, Oklahoma. “Não falta mais nada.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES