terça-feira, 2 de novembro de 2021

CIRO GOMES - A rede está furada, FSP

 

Ciro Gomes

Vice-presidente do PDT, é ex-governador do Ceará (1991-1994) e ex-ministro da Fazenda (1994, governo Itamar) e da Integração Nacional (2003-2006, governo Lula); foi candidato à Presidência da República em 1998, 2002 e 2018

Com uma metáfora de pescaria ("Banco Central age como se estivesse pescando com uma linha fina", 31/10), o sempre elegante economista Arminio Fraga fez, em sua coluna na Folha, uma análise sobre as dificuldades da economia brasileira.

A qualidade de forma e a massa de informações do texto, contudo, não conseguem esconder que ele não acredita mais cegamente no modelo que defende e que ajudou a aplicar. Para não perder a metáfora piscosa, e apoiado nas entrelinhas do seu texto, eu mudaria o título do seu artigo para "A rede está furada".

De forma coerente, pois é o autor do tal tripé macroeconômico (meta de inflaçãocâmbio flutuante e superávit primário), Arminio tenta defender o modelo, mas não consegue ocultar as contradições insustentáveis desse desenho após 22 anos de prática contínua e insuficiente.

Penso que a manutenção desse modelo é a causa importante de nosso desastre. E sustento minha opinião na melhor literatura e na experiência de gestor público que não praticou nem um único dia de déficit fiscal, mesmo tendo sido prefeito, governador e ministro da Fazenda que ajudou a consolidar o Plano Real.

Vamos aos números: quando FHC assume, em 1995, a dívida pública era de 38% do PIB, a carga tributária representava 27,5% do PIB e havia um patrimônio "privatizável" de US$ 100 bilhões! Apenas oito anos depois de aplicado o novo modelo de "responsabilidade" fiscal, a dívida foi a 78% do PIB, a carga tributária a 32% do PIB e foram torrados os recursos da privatização! O que causou essa impressionante derrocada fiscal? Juros reais mais altos do mundo.

Entre 1980 e 2010, perdemos a vocação para o crescimento e, entre 2010 e 2020, o país cresceu zero pela primeira vez em 120 anos! Foram seis anos de PT, dois anos de Michel Temer (MDB) e dois de Jair Bolsonaro. Apesar de retóricas diferentes, todos aplicaram o mesmo modelo.

Dizem os manuais que juros altos são a ferramenta que bancos centrais têm para dissuadir demanda agregada excessiva. No entanto, sabe quando foi a última explosão de demanda agregada no Brasil? Em 1994 e nunca mais! Eu era nessa época o ministro da Fazenda e administrei a crise fazendo um choque de ofertas e trazendo de fora as mercadorias que faltavam.

[ x ]

No mundo todo, não se atacam com juros os preços administrados pelo governo, preços sazonais e custos incrementados pelo derretimento da moeda. Mas veja o que aconteceu na última semana: o aumento da taxa Selic incorporará em dívida para o Tesouro cerca de R$ 75 bilhões por ano, o dobro do que custará o auxílio que é odiado pelos amantes do teto de gastos.

No Brasil, promoveu-se uma política cambial cretina e corrupta. Cretina porque os políticos descobriram a maravilha de promover o nacional consumismo para fins eleitorais, e corrupta porque um tal swap cambial suja a taxa de câmbio e virou paraíso da informação privilegiada.

Concordo que a chave para mudarmos os desequilíbrios da economia passa pela construção de um arcabouço fiscal sustentável no tempo. Fluxo, mas especialmente estoque, como enfatiza Arminio. Mas não é admissível que a forma de conseguir equilíbrio fiscal seja proibir o país de crescer, como prega o atual modelo.

Por fim, convido Arminio a se debruçar também sobre a receita pública. Em linha com as melhores práticas internacionais, proponho: corte criterioso de 20% nas renúncias fiscais; imposto sobre lucros e dividendos; tributação das grandes heranças; maior progressividade no Imposto de Renda e fim da pejotização, entre tantas outras ideias.

Precisamos aprofundar esse debate porque tanto a direita quanto a autorreferida esquerda defendem o atual modelo carcomido. E só um novo modelo econômico nos orientará ao futuro. O mundo está cheio de novas vivências e instituições. Só no Brasil o desastre tem a defesa intransigente da elite.

Vamos ao debate!

Cristina Serra - O fim do Bolsa Família, FSP

 Nos anos 1970, o economista Edmar Bacha cunhou o termo "Belíndia", que passou a ser usado como sinônimo do abismo entre dois "brasis": a Bélgica dos mais ricos e a Índia dos miseráveis. Em 2009, Bacha disse em entrevista que o conceito não era mais adequado. Em resumo, argumentou que a desigualdade ainda era forte, mas que o crescimento econômico, com aumento de renda e programas sociais, havia melhorado muito a parte "Índia" do Brasil.

Mais de uma década depois, uma pandemia e três anos de um governo que odeia as pessoas pobres, a porção "Índia" está aí, e muito piorada, para qualquer um que tenha os olhos abertos: dorme sob marquises, cata ossos e carcaças, vasculha restos no lixo.

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante entrevista no Palácio da Alvorada em setembro de 2020 --no mê seguinte, o governo federal encerrava o pagamento do auxílio emergencial
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, durante entrevista no Palácio da Alvorada em setembro de 2020 --no mê seguinte, o governo federal encerrava o pagamento do auxílio emergencial - Adriano Machado - 28.set.20/Reuters

O bolsoguedismo (síntese precisa que li num artigo do professor Silvio Almeida) é uma máquina de produzir desigualdades e o símbolo mais inequívoco disso é o fim do Bolsa Família e sua substituição por outro auxílio que ainda nem tem fonte de recursos assegurada. Mais uma evidência da força destrutiva do bolsoguedismo e de sua base de apoio.

Criado no primeiro governo Lula, o Bolsa Família agrupou programas assistenciais já existentes, ampliou a população atendida e vinculou os pagamentos a uma série de condições a serem cumpridas pelas famílias, tais como vacinar as crianças e mantê-las na escola. Um dos aspectos mais importantes foi pagar o benefício, preferencialmente, às mulheres. Milhares de estudos mostram que o programa ajudou a reduzir a extrema pobreza e a tirar o Brasil do mapa da fome, para onde voltamos, desgraçadamente.

O Brasil de Bolsonaro nos faz retornar a um tempo de brutalidade e indiferença. Em 1947, o poeta Manuel Bandeira escreveu o poema "O Bicho". Diz assim: "Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos/ Quando achava alguma coisa/ Não examinava nem cheirava/ Engolia com voracidade/ O bicho não era um cão/ Não era um gato/ Não era um rato/ O bicho, meu Deus, era um homem."

Misturar direito e moral não é boa coisa, Hélio Schwartsman, FSP

 

Um passo decisivo para a humanidade foi separar o direito penal da moral. O primeiro é uma instituição humana desenhada para inibir condutas antissociais. Apela principalmente à razão e ao cálculo. Não é coincidência que os códigos assumam a forma de tabela de preços: delito x – y anos de cadeia. A moral é mais visceral. Ela surge dos impulsos com que a biologia nos dotou para que pudéssemos sobreviver a nós mesmos. Ela se materializa na repulsa ao assassino, na vontade de castigar aqueles que vemos tentando obter vantagens indevidas etc.

O divórcio entre direito e moral se deu a partir do século 18, sob inspiração do Iluminismo. Ele possibilitou conter comportamentos que prejudicam a sociedade nos valendo de doses cada vez menores de violência estatal. Para início de conversa, deixamos de punir práticas que, embora alguns julguem imorais, não ameaçam o convívio social, como a blasfêmia e o sexo extramarital.

Também diminuímos consideravelmente o tamanho dos castigos. A pena de morte, sanção antes ubíqua, inclusive para delitos banais, foi quase extinta no Ocidente. Idem para trabalhos forçados, degredo e prisão perpétua. Criamos limitações às pretensões punitivas do Estado, como a prescrição, e, para condenar, passamos a exigir processos regulares com amplo direito à defesa. Os otimistas sonhávamos com um Estado cada vez menos violento, no qual o próprio encarceramento se tornaria raro.

O STF, ao tornar a injúria racial um delito imprescritível, faz o caminho inverso do Iluminismo. Volta a misturar direito com moral. Mesmo considerando que o racismo é uma nódoa a ser eliminada, não podemos esquecer que a injúria é uma infração menor. Até acho que dá para tornar imprescritíveis delitos como genocídio e crimes contra a humanidade, mas é ridículo imaginar que um sujeito possa, aos 70 anos, ser chamado ao banco de réus por ter xingado um colega de escola aos 15.