quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Disputa de poder na Igreja pode ter provocado renúncia de Bento XVI


Jamil Chade/enviado especial e Filipe Domingue/especial para o Estado de S. Paulo
CIDADE DO VATICANO - Cansado e sem energia, mas também isolado politicamente. O papa Bento XVI de fato renunciou ao pontificado por conta de sua fragilidade. Fontes próximas ao Vaticano, porém, afirmam que a exaustão não tem a ver apenas com a sua saúde, mas também com a disputa de poder que marcou seus últimos meses no trono. A renúncia teria sido uma reação extrema ao que muitos classificam de governo paralelo, que teria se formado à sua sombra e sob comando do cardeal Tarcisio Bertone.
Nos últimos meses, Bento XVI abandonou os confrontos: ‘Eu sou um papa velho’, dizia - Reuters
Reuters
Nos últimos meses, Bento XVI abandonou os confrontos: ‘Eu sou um papa velho’, dizia
Por seus aliados, Bento XVI optou por sacrificar seu próprio cargo, na esperança de recolocar a Igreja num caminho de maior coesão, forçando uma nova eleição.
Fontes nas embaixadas estrangeiras junto à Santa Sé relataram ao Estado os bastidores dos últimos meses de Bento XVI. Dizem que o papa renunciou de livre vontade, mas consciente de que já não mandava sozinho na Santa Sé e, com os poucos anos que lhe restavam, não conseguiria fazer o que havia planejado diante de resistência de seus ex-aliados.
De forma indireta, a Santa Sé confirmou que a fragilidade não vinha de sua saúde. "O papa é uma pessoa de grande realismo e conhece os problemas e as dificuldades", disse o porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi. "A renúncia foi uma mensagem à Cúria, mas também a todos nós", disse. "Foi um ato de humildade, sabedoria e responsabilidade."
Segundo Lombardi, não havia um problema específico, mas sim uma visão "mais ampla da Igreja no mundo. "Não foi uma decisão improvisada. Foi algo muito lúcido." A possibilidade de renúncia era cogitada por Bento XVI desde abril de 2012, após viagem ao México e a Cuba.
O papa chegou ao trono com a promessa de que conduziria uma limpeza na Igreja. O resultado, porém, foi o oposto e o equilíbrio de poder que havia durante os anos de João Paulo II ruiu.
Suas decisões de punir cardeais simplesmente foram ignoradas ou levaram anos para serem cumpridas, em um desafio claro ao poder do papa. Foram os casos de Roger Mahony ou de Thomas Curry. Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, foi outro que acabou sendo protegido por anos, apesar das denúncias. Por mais que tenha tentado, Bento XVI jamais conseguiu implementar sua ideia "de tolerância zero" em relação à pedofilia. "Quanta sujeira na Igreja", chegou a declarar.
Bento XVI também deu indicações de que poderia rever algumas de suas posições, como a questão do preservativo. Cardeais mostraram-se irritados e se apressaram em negar o debate. Esse não seria o único caso de desobediência. Bertone tomaria medidas à sua revelia, até mesmo punindo aliados do papa. Em uma ocasião, teria chorado.
Amigo pessoal do papa, Bertone foi a pessoa que mais recebeu poder dentro da Igreja em 2005. Mas, em alianças com membros da Cúria, teria criado situações em que colocava Bento XVI contra esses cardeais. Para evitar uma disputa direta, o papa optou inicialmente por não questionar as decisões de seu ex-aliado. Mas isso teria ido longe demais.
Um dos casos que revelou o poder de Bertone foi o do cardeal Carlo Maria Vigano, que alertou Bento XVI sobre suspeitas de corrupção nos contratos do Vaticano. O caso chegou até a imprensa italiana. Imediatamente, Bertone decidiu nomear Vigano como núncio nos Estados Unidos.
Outros fatos. Também pesaram a revelação de corrupção no Banco do Vaticano, seguido pelo descobrimento de que próprio mordomo, pessoa que o vestia e estava em sua intimidade, havia roubado documentos que expunham a corrupção na Igreja.
Para diplomatas, um indício de que Bento XVI não acreditava que o mordomo havia agido sozinho foi sua decisão de perdoá-lo, mesmo depois que um tribunal do Vaticano o condenou.
Em agosto, Bento XVI foi à casa que o Vaticano dispõe nos arredores de Roma para descanso. Fontes no Vaticano confirmaram que já naquele momento ele estava isolado. Nos últimos meses, o papa abandonou o confronto. Aos que chegavam com alguma intriga doméstica, respondia: "Eu sou um papa velho".

Papa diz que renunciará 'pelo bem da igreja'


Atualizado às 10h30.

Em sua primeira aparição pública desde que anunciou sua renúncia, o papa Bento XVI disse aos fiéis que tomou a decisão "pelo bem da igreja". O papa foi recebido nesta quarta-feira com uma longa ovação dos fiéis, que ficaram de pé, para recebê-lo durante a audiência semanal no salão Paulo VI, no Vaticano. Muitos dos presentes tinham lágrimas nos olhos. 

No início da audiência, ele repetiu, em italiano, o que disse aos cardeais em latin na segunda-feira: que ele simplesmente não tem forças para continuar. "Eu tomei esta decisão de forma livre e para o bem da igreja". Bento XVI pediu aos fiéis que "continuem a orar pelo papa e pela igreja".

Ainda nesta quarta-feira o papa, de 85 anos, vai celebrar a missa de quarta-feira de Cinzas, que marca o início da Quaresma. Geralmente, a cerimônia é realizada na igreja no Aventino, uma das colinas de Roma, mas foi transferida de última hora para a Basílica de São Pedro. Segundo o Vaticano, a mudança foi feita para acomodar a multidão esperada para o evento, além de evitar que o pontífice faça sua costumeira procissão até a igreja.

Fraternidade - Nesta quarta-feira, Bento XVI divulgou mensagem para a Campanha da Fraternidade 2013. Leia abaixo a íntegra da nota.

"Queridos irmãos e irmãs,

Diante de nós se abre o caminho da Quaresma, permeado de oração, penitência e caridade, que nos prepara para vivenciar e participar mais profundamente na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. No Brasil, esta preparação tem encontrado um válido apoio e estímulo na Campanha da Fraternidade, que este ano chega à sua quinquagésima realização e se reveste já das tonalidades espirituais da XXVII Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro em julho próximo: daí o seu tema "Fraternidade e Juventude", proposto pela Conferência Episcopal Nacional com a esperança de ver multiplicada nos jovens de hoje a mesma resposta que dera a Deus o profeta Isaías: "Eis-me aqui, envia-me!"(6,8).

De bom grado associo-me a esta iniciativa quaresmal da Igreja no Brasil, enviando a todos e cada um a minha cordial saudação no Senhor, a quem confio os esforços de quantos se empenham por ajudar os jovens a tornar-se – como lhes pedi em São Paulo – "protagonistas de uma sociedade mais justa e mais fraterna inspirada no Evangelho" (Discurso aos jovens brasileiros, 10/05/2007). É que os "sinais dos tempos", na sociedade e na Igreja, surgem também através dos jovens; menosprezar estes sinais ou não os saber discernir é perder ocasiões de renovação. Se eles forem o presente, serão também o futuro. Queremos os jovens protagonistas integrados na comunidade que os acolhe, demonstrando a confiança que a Igreja deposita em cada um deles. Isto requer guias – padres, consagrados ou leigos – que permaneçam novos por dentro, mesmo que o não sejam de idade, mas capazes de fazer caminho sem impor rumos, de empatia solidária, de dar testemunho de salvação, que a fé e o seguimento de Jesus Cristo cada dia alimentam.

Por isso, convido os jovens brasileiros a buscarem sempre mais no Evangelho de Jesus o sentido da vida, a certeza de que é através da amizade com Cristo que experimentamos o que é belo e nos redime: "Agora que isto tocou os teus lábios, tua culpa está sendo tirada, teu pecado, perdoado" (Is 6,7). Desse encontro transformador, que desejo a cada jovem brasileiro, surge a plena disponibilidade de quem se deixa invadir por um Deus que salva: "Eis-me aqui, envia-me!’ aos meus coetâneos" - ajudando-lhes a descobrir a força e a beleza da fé no meio dos "desertos (espirituais) do mundo contemporâneo, em que se deve levar apenas o que é essencial: (…) o Evangelho e a fé da Igreja, dos quais os documentos do Concílio Vaticano II são uma expressão luminosa, assim como o é o Catecismo da Igreja Católica" (Homilia na abertura do Ano da Fé, 11/10/2012).

Que o Senhor conceda a todos a alegria de crer n’Ele, de crescer na sua amizade, de segui-Lo no caminho da vida e testemunhá-Lo em todas situações, para transmitir à geração seguinte a imensa riqueza e beleza da fé em Jesus Cristo. Com votos de uma Quaresma frutuosa na vida de cada brasileiro, especialmente das novas gerações, sob a proteção maternal de Nossa Senhora Aparecia, a todos concedo uma especial Bênção Apostólica

Vaticano, 8 de fevereiro de 2013".

D. João: 'As coisas não acontecem de supetão na Igreja'


Jamil Chade e Filipe Domingues, de O Estado de S.Paulo
CIDADE DO VATICANO - Na Europa, ficaram apenas os monumentos históricos e, hoje, a base da Igreja se desloca para a América Latina, África e Ásia. A declaração é do cardeal brasileiro d. João Braz de Aviz, considerado pela imprensa italiana como um dos nomes fortes para a sucessão de Bento XVI.
D.João diz que escândalo do mordomo criou ‘vulnerabilidades’ para Bento XVI - GIAMPIERO SPOSITO/REUTERS-17/2/2012
GIAMPIERO SPOSITO/REUTERS-17/2/2012
D.João diz que escândalo do mordomo criou ‘vulnerabilidades’ para Bento XVI
Em entrevista ao Estado, o brasileiro com o cargo mais alto na estrutura de poder do Vaticano deixou claro que uma mudança está ocorrendo em termos geográficos na Igreja. Mas alerta que isso não significa que essa seja necessariamente a hora de ver o primeiro papa de um país em desenvolvimento. "As coisas não ocorrem de supetão na Igreja", admite o atual prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica do Vaticano.
D. João, de 65 anos, arcebispo emérito de Brasília e ligado a uma Teologia da Libertação sem excessos, também reconheceu a existência de "tensão" entre diferentes personalidades dentro do Vaticano e admite que nem sempre a gestão da Igreja é "tão serena".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida na terça-feira, 12, no Vaticano.
O sr. estava presente quando Bento XVI anunciou sua renúncia. Como foi?
Foi uma reunião regular e os outros temas foram tratados normalmente. De repente, ele começou a falar e eu, sinceramente, achei que não tinha entendido o que ele havia dito. Logo percebi que, sim, era verdade e que ele estava renunciando. Foi uma grande surpresa. Ninguém nunca imaginava que isso ocorreria. Como é um fato raríssimo, sentimos o peso da coisa, também pela figura que ele representa.
Nos últimos anos, ele ganhou a simpatia até mesmo da intelectualidade europeia. Com seu gesto, mostrou uma grande fidelidade à Igreja e deixou claro que não quer atrapalhar. Ele ainda certamente considerou que João Paulo II já havia vivido a exposição pública de sua deterioração de saúde e que não queria passar pela mesma coisa.
O que o sr. acha que esse papa deixará como legado?
Ele chamou a Igreja à coerência, entrou em campos delicados e isso fez um bem enorme. Ele chamou os problemas por seu nome. Claro, houve um preço a ser pago por isso. Mas era um preço que valia, pois era pela verdade.
Qual é a Igreja que o sr. acredita que será necessária no século 21?
Não é uma questão de busca por influência política. A busca é mesmo por um testemunho da mensagem. Não se pode ter duas medidas, uma atitude dentro da Igreja e outra fora que não condiz. O mundo está atravessando uma grande mudança que não é comparável a nada que já vivemos. O momento é extremamente exigente. Isso exigirá da Igreja uma grande capacidade de escuta. A questão que se coloca é se podemos ainda defender verdades eternas, que é justamente a proteção do homem e da mulher.
O sr. acredita que chegou a hora de ter um papa de um país em desenvolvimento?
Há um deslocamento da presença da Igreja no mundo, como resposta às populações: na África e na América Latina, onde há um sentido de religiosidade forte, e na Ásia, onde a Igreja está se desabrochando. São fenômenos reais e que a Igreja considera como importantes. Já a Europa vive o momento em que ficaram os monumentos históricos, mas não há vocação. Há uma grande diminuição de pessoas (fiéis), algo realmente preocupante.
Mas isso significa que o próximo conclave poderá eleger um latino-americano?
Essa possibilidade existe sim. Mas as coisas não acontecem de supetão aqui. A Igreja tem um zelo muito grande. Dentro do conclave, é a qualidade pessoal de cada um que pesa. Às vezes, pode-se chegar à conclusão de que ainda não é o momento.
Vaticanistas e a imprensa especializada apontam o nome do sr. como um dos ‘papáveis’. Entendo que o sr. não possa se apresentar como candidato, mas como se sente ao ter o nome citado?
Vou viver meu primeiro conclave. Nunca poderia imaginar que chegaria a isso. Na verdade, não é que eu não possa dizer que sou candidato. Sou um dos 125 candidatos.
Uma das marcas dos últimos anos no Vaticano seria a disputa interna entre diferentes personalidades. Essas tensões de fato existem dentro da Santa Sé?
Há uma fidelidade grande entre os cardeais. Mas é lógico que existem tensões. Há dificuldades e existem diferentes estilos, personalidades, formas de viver as coisas. Uns querem o diálogo, outros destacam a autoridade. Não é tão serena a coisa. Mas não acredito que exista maldade.
O escândalo do roubo dos documentos internos do papa por seu mordomo pesou na decisão de Bento XVI de renunciar?
Ele sofreu muito com isso. Essa história criou vulnerabilidades. Para uma pessoa de 85 anos, é natural que ele esteja preocupado com o fato de uma deterioração de sua situação.