domingo, 3 de fevereiro de 2013

Desassossego na cozinha



Patroas descobrem, aflitas, que as empregadas não aceitam receber salário-mínimo, querem seguro-desemprego, FGTS e não mais dormir no local de trabalho. Por que o espanto com a reviravolta dessas herdeiras da escravidão?

19 de janeiro de 2013 | 17h 30
RUY BRAGA*
Se confiarmos no atual estado de desassossego dos bairros nobres da cidade, concluiremos que a luta de classes chegou às cozinhas. Patroas descobrem aflitas que as empregadas não aceitam mais receber um salário-mínimo. Além dos direitos garantidos, como férias de 20 dias úteis e vale-transporte, elas passaram a demandar o seguro-desemprego. Faltam braços e afloram comportamentos inusitados: suprema audácia, as domésticas requerem o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e recusam-se a dormir no trabalho. Remanescente arquitetônico dos tempos da casa-grande, o cubículo dos fundos dos apartamentos paulistanos está lentamente mudando de serventia e vira depósito.

Eis a lamúria. No entanto, se deixarmos de lado as enraizadas disposições culturais da classe média alta, o momento atual do trabalho doméstico adquire tonalidades menos agudas. Em primeiro lugar, não é verdade que o aquecimento do mercado de trabalho brasileiro enfraqueceu a oferta de serviços domésticos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, entre 1999 e 2009 o número de trabalhadores domésticos saltou de 5,5 milhões para 7,2 milhões. Aquietai-vos, patroas, pois o emprego doméstico segue firme como a principal ocupação nacional, acompanhado de longe pelo trabalho no telemarketing (1,4 milhões). 

Na realidade, o baixo nível de desemprego, em torno de 5% da população economicamente ativa - índice mascarado pela grande participação do emprego formal precarizado -, elevou as expectativas dos trabalhadores subalternos. De fato, as empregadas estão mais exigentes. Mas, afinal, o que isso significa? Apenas que não aceitam trabalhar por menos de um salário-mínimo e meio, esperando alcançar direitos sociais já desfrutados pelos demais trabalhadores. Por que isso causaria assombro? 

A razão é simples: no Brasil, o emprego doméstico é uma das mais antigas formas de trabalho assalariado, remontando ao período da escravidão. Assim, não é coincidência que, ainda hoje, mais de 60% da força de trabalho doméstica seja formada por negros. Além disso, cerca de 93% dos mais de 7 milhões de trabalhadores domésticos são mulheres. Elas são as genuínas herdeiras das escravas da casa-grande. Invisíveis à fiscalização do poder público, mesmo na principal metrópole brasileira, em 2009 apenas 38% das empregadas tinham carteira de trabalho. Em todo o País, a formalização do trabalho doméstico mal alcança os 30%. 

Contribuem para esses números vexatórios a baixa escolarização e as enormes dificuldades autoassociativas inerentes ao processo de trabalho doméstico. Sem mencionar as tradicionais formas passivas de resistência “molecular”, como atrasos e faltas frequentes, ficaria surpreso se as empregadas não aproveitassem a atual correlação de forças existente no mercado de trabalho para exigir, além do pleno début na cidadania salarial, salários e condições de trabalho menos degradantes. Ao fazê-lo, elas apenas percorrem a trajetória histórica da classe trabalhadora: do campo para as cidades, atraída por direitos sociais, serviços públicos e oportunidades de profissionalização. 

Em minha pesquisa de campo sobre os operadores de telemarketing, publicada recentemente no livro Política do Precariado: Do Populismo à Hegemonia Lulista (Boitempo), tive a oportunidade de entrevistar inúmeras filhas de empregadas que identificavam no contraponto ao trabalho doméstico - destituído de prestígio, desqualificado, sub-remunerado e incapaz de proporcionar um horizonte profissional - a principal razão de ter buscado o call center em vez de seguir os passos das mães - mesmo quando a diferença salarial era favorável ao emprego doméstico. No telemarketing, essas jovens perceberam a oportunidade de 1) alcançar direitos sociais e 2) terminar a faculdade particular noturna que o serviço doméstico, devido à incerteza dos horários, é incapaz de prover.

Mesmo que o ciclo do emprego no call center frequentemente frustre a esperança de progresso ocupacional - afinal, a rotatividade é muito alta e os salários, muito baixos -, ainda assim o telemarketing segue atraindo a fração mais jovem e escolarizada do grupo de domésticas. Como nesse setor a jornada de trabalho é de seis horas diárias e não há informalidade, a teleoperadora vive a oportunidade de alcançar direitos e terminar uma faculdade noturna. 

Tomando pelo avesso a lamúria da classe média alta, é possível dizer que a preocupação das patroas prefigura um autêntico progresso social sumariado pela Proposta de Emenda à Constituição 478/10. Em trâmite no Senado, essa proposta iguala os direitos das empregadas aos dos demais trabalhadores com registro em carteira, assegurando jornada de trabalho de 44 horas semanais, FGTS, seguro-desemprego, horas extras e adicional noturno. Caso aprovada, seria um passo importante para a consolidação da precária cidadania salarial brasileira. E a luta de classes na cozinha teria cumprido parte de seu papel histórico.

*RUY BRAGA É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP E AUTOR DE POLÍTICA DO PRECARIADO: DO POPULISMO À HEGEMONIA LULISTA (BOITEMPO)



Qual mal-entendido?


Debora Diniz*
Em nenhum momento, ele olhou para o nosso filho." Priscilla Celeste Munk é mãe de uma criança negra de sete anos. No catálogo racial brasileiro, ela é uma mulher branca. Sua branquidade se anuncia pela cor da pele, mas também pela classe social. Foi como uma mulher branca, acompanhada de seu marido também branco, Ronald Munk, que vivenciou o racismo contra seu filho adotivo em um dos templos do consumo de luxo no país - uma concessionária de carros BMW no Rio de Janeiro. A cena foi prosaica: a família foi à concessionária e o filho se entreteve com uma televisão. O gerente os atendeu como um casal desacompanhado. Quando a criança se aproximou, a cor de sua pele resumiu a impertinência de sua presença em um lugar onde somente brancos e ricos seriam bem-vindos. Sem se dirigir ao casal, o gerente ordenou que a criança saísse da loja: "Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja. Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes".
Imagino que o monólogo do gerente com a criança sem nome nem rosto, mas rejeitada pela cor, tenha sido adequadamente reproduzido pela mãe. A combinação entre um "você" que olha, mas ignora a criança, e um abstrato "eles", que não olha, mas registra a desigualdade, é poderosa para resumir a racialização de classe da sociedade brasileira. Em poucas palavras, o gerente oscilou entre dois universos, ambos movidos pela mesma inquietação moral: como proteger os ricos dos pobres, os brancos dos negros. O gerente não cogitou estar diante de uma família multirracial, mas de clientes brancos e de um menino negro pedinte que perturbaria a tranquilidade do consumo.
Até aqui, não haveria nada de novo para a realidade da desigualdade social que organiza o espaço do consumo - engana-se quem pensa que os shoppings centers são locais de livre trânsito: as regras sobre como se vestir e se portar não permitem que todos igualmente ali transitem. A impertinência do caso é, exatamente, estremecer essa ordem silenciosa da desigualdade racial e de classe da sociedade brasileira. Por isso, com a devida sensibilidade do capitalismo global, a concessionária da BMW optou por descrever o caso como um "mal-entendido".
"Preconceito racial não é mal-entendido", disse a família em uma campanha aberta sobre o caso, porém com cautela sobre a identidade do filho que se vê resumido à cor. Não tenho dúvidas de que esse é um caso de discriminação racial - a cor da pele importa para o reconhecimento do outro como um semelhante. É isso que chamamos racismo: descrição do outro como um dessemelhante e abjeto pela cor de seu corpo. A criança de 7 anos, antes mesmo de entender o sentido político do racismo na cena vivida, foi alvo de uma rejeição que resume sua existência. Assim será sua vida. O consolo familiar é que o garoto redescreveu para si que "crianças não eram bem-vindas à loja" e não se personalizou na rejeição pelo corpo. A ingenuidade infantil em breve será vencida pela observação cotidiana de práticas racistas. Com a perda da ingenuidade, a criança sem nome e com somente cor encontrará outro grupo para traduzir sua experiência de sentir-se abjeta - não será mais porque é uma criança em um ambiente de adultos, mas um adolescente, um homem ou um velho negro em um mundo cuja ordem do consumo e da lei é, ainda, branca.
Por isso, desejo explorar o argumento do "mal-entendido" para além de uma estratégia infeliz de marketing. De fato, há um mal-entendido ético que costurou o roteiro desse desencontro racial. Para ser reconhecido como um futuro adulto rico e potencial amigo da concessionária para a compra de carros de luxo, o garoto de 7 anos precisaria habitar um corpo inteligível para a casta dos ricos. Sua cor o torna um sujeito inimaginável. Para ser reconhecido, é preciso antes ser inteligível à ordem dominante.
Crianças negras são ainda invisíveis ao universo do consumo, o que pode parecer óbvio dada a sobreposição da desigualdade de classe à desigualdade racial no País: negros são mais pobres que brancos, um fato que alimenta intermináveis controvérsias sobre as causas da desigualdade, se seriam elas de renda ou raciais. A verdade é que as crianças negras não são invisíveis apenas na concessionária da BMW, mas em escolas, hospitais ou espaços de lazer, isto é, como futuros cidadãos à espera da proteção de uma sociedade que se define como livre do racismo.
Como em um experimento sociológico, o caso da família multirracial mostrou que a renda não é capaz de silenciar a rejeição racial: a criança se converteu em um ser abstrato, parte de uma massa de pedintes que incomodam os clientes ricos. Ao contrário do que imagina a loja da BMW, o mal-entendido não se resumiu ao diálogo entre o gerente e a família, mas entre quem imaginamos que somos como uma democracia racial e o que efetivamente fazemos com nossa diversidade racial.
* Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da ANIS - Instituto de Bioética, Direitos humanos e Gênero


Desumanização a varejo


José Luiz Ratton*
O crack é uma forma fumável da cocaína que produz efeitos intensos, curtos e quase instantâneos em quem o utiliza e que possui elevadíssima natureza aditiva. Sua venda é realizada em quantidades bastante fracionadas e possibilita lucros relativamente altos para os diferentes tipos de "traficantes", o que funciona estruturalmente como um estímulo para o que pode ser chamado de "empreendedorismo" neste mercado. Em outras palavras, as condições logísticas para o comércio varejista desta substância não são difíceis, aumentando potencialmente a chance de mais indivíduos participarem do mercado de crack como vendedores ilegais.
A literatura internacional indica e as evidências empíricas da pesquisa brasileira sobre o tema confirmam que o crack é uma inovação tecnológica no mercado de cocaína que produziu diferentes impactos: expandiu-se, atingindo um amplo público consumidor nos estratos sociais mais baixos e interiorizou-se, tornando-se uma droga ilícita largamente comercializada não apenas nos grandes centros urbanos, mas também nas pequenas e médias cidades.
O grande número de indivíduos envolvidos na venda de crack e os elevados níveis de endividamento observados neste mercado - tanto entre usuários e traficantes, quanto entre pequenos e médios traficantes - são elementos explicativos fundamentais para a compreensão dos altos patamares de conflitualidade presentes no mercado do crack.
Alguns pesquisadores que investigam o tema no país sugerem a existência de associação entre a expansão do mercado desta droga e o aumento dos crimes contra a vida, o que ainda está por ser demonstrado. Não está claro se a elevação das taxas de homicídio em vários estados brasileiros (no Sul, no Centro-Oeste, no Nordeste e no Norte) nos últimos anos está relacionada de alguma forma com a introdução e a expansão do crack nestes estados.
Na mesma linha, outra pergunta importante e que ainda não tem resposta conclusiva é se a permanência e a resiliência de altos patamares de violência nos mesmos territórios dentro de várias das grandes cidades brasileiras - inclusive naquelas que observaram redução das mortes violentas nas últimas décadas - não pode ser explicada parcialmente pelas dinâmicas conflitivas do mercado do crack, que intensificaram e consolidaram processos sociais violentos ali instalados previamente.
Parece razoável afirmar que, a despeito dos exageros retóricos de parte dos meios de comunicação, o Brasil vive, desde o final da década de 1990 (em São Paulo um pouco antes) uma expansão epidêmica do crack. O aumento expressivo do número de apreensões desta droga pelas polícias brasileiras e o aumento do número de internações relacionadas ao consumo abusivo da substância são indicadores de que estamos (ou estávamos) diante de um processo epidêmico.
Um aspecto importante presente em quaisquer das "epidemias de drogas", inclusive a do crack, é que elas apresentam dinâmicas evolutivas, etapas e ciclos - que obviamente têm condicionantes políticos, econômicos, culturais e psicológicos - que devem ser compreendidos na sua singularidade se quisermos produzir algum tipo de efeito adequado sobre elas, no plano das políticas públicas. O reconhecimento de que diferentes mercados de drogas passam por processos de desenvolvimento que envolvem a expansão aguda, estabilização e declínio pode nos ajudar a entender de forma pragmática o que de melhor pode ser feito em cada um desses estágios. Neste sentido, a literatura sobre o tema nos Estados Unidos indica que a estabilização e decadência do mercado do crack naquele país deveu-se mais a mecanismos internos de controle do próprio mercado do que a ruidosas e ineficientes políticas de guerra às drogas.
As considerações acima não devem conduzir ao imobilismo político. O que se quer ressaltar é que a compreensão das complexidades do mercado do crack é condição necessária para a construção de políticas mais efetivas neste campo. Assim, tanto estratégias coercitivas, centradas no aumento dos custos da distribuição, como preventivas, dirigidas para a minimização dos danos sociais e para a construção de mecanismos específicos e focalizados de assistência e proteção para usuários e dependentes mais vulneráveis, no plano do consumo, devem levar em consideração os diferentes estágios de estruturação do mercado do crack.
*José Luiz Ratton é professor e pesquisador do departamento de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco