O leitor do guia "Como Viver em São Paulo Sem Carro" não se surpreendeu com a notícia de que cada dia mais paulistanos que têm carro se deslocam sem ele. Por isso mesmo, desconfiou do argumento dos "especialistas" que disseram que essa mudança de hábitos se deve à crise econômica, cujos efeitos começaram a ser sentidos este ano. O leitor atento também não se deixou levar pelo discurso oportunista dos técnicos da prefeitura paulistana, que dizem que tudo se deve às medidas de redução da velocidade dos carros e às faixas exclusivas de ônibus e bicicletas.
As duas coisas podem ter contribuído, mas o fenômeno teve início muito antes. Ao contrário do que dizem os especialistas, começou exatamente no auge da expansão econômica; e portanto, antes também do atual prefeito acordar para os benefícios de uma gestão zeladora, em lugar de construir arcos, como prometeu na campanha eleitoral.
No guia publicado em 2012, o congestionamento já era apontado como a principal causa de estresse na cidade; na edição de 2013, 58% dos paulistanos diziam ter reduzido de alguma forma o uso do carro; o índice de redução se manteve praticamente igual em 2014 (os dados são de pesquisas exclusivas do Ipespe, dirigido pelo sociólogo Antônio Lavareda).
Em verdade, os governos Lula e Dilma 1 (2003-2014) espalharam uma epidemia de congestionamentos pelo Brasil com a combinação perversa de redução de impostos para a produção de carros, financiamento para sua compra e a gasolina mantida com preços baixos. Todas as capitais do país passaram a sofrer congestionamentos até então típicos de São Paulo. E os paulistanos já em 2008 viam engarrafamentos atingirem níveis surreais como no filme "Week-end a Francesa" (1967), de Jean-Luc Godard, baseado no conto "A Auto-estrada do Sul", do argentino Júlio Cortázar.
Engenheiros costumam analisar o trânsito conforme as regras de dinâmica dos fluidos. Por isso usam termos típicos de encanamento de água, como fluidez, engarrafamento, gargalo e turbulência. Mas trânsito é também um fenômeno econômico: ao se movimentar por uma cidade, os motoristas fazem cálculos de custo-benefício, do tempo perdido no deslocamento, do combustível e do estacionamento. Ao calcular o meio mais barato para chegar de casa ao trabalho, o viajante considera também o preço de ficar horas parado no trânsito.
Os carros que se deslocam no trânsito de SP levam em média 1,2 pessoa (ou seja, a cada cinco carros, quatro levam só o motorista e o quinto carrega um passageiro também). Esses motoristas gastam para atingir o destino, querem chegar o mais rápido possível para começar a produzir ou estudar. Nos últimos anos, a velocidade de deslocamento dos carros particulares caiu (hoje é inferior a 8 km/h), aumentando os custos em combustível e horas de trabalho perdidas. Enquanto isso, a velocidade dos transportes públicos cresceu, mais linhas de trem e metrô surgiram, faixas exclusivas melhoraram o desempenho dos ônibus, que já tinham se tornado mais baratos com o Bilhete Único e depois com a extensão de sua validade a três horas.
A produtividade de quem não guia, que já era maior, ficou ainda mais evidente com a melhoria da telefonia móvel que permite falar ou trocar mensagens ao celular com o trabalho, ler relatórios, ter reuniões durante o deslocamento ou dedicar-se ao lazer.
Todos esses cálculos são feitos ainda que intuitivamente pelos milhões de moradores das grandes cidades congestionadas de todo o mundo. E não é diferente para o paulistano. É isso que fez por exemplo com que dobrasse o número de usuários de trem e metrô a partir de 2006, muito antes da crise econômica.
A análise dos dados em prazo mais longo permite ver como o carro é um produto decadente. Só a burrice explicaria os incentivos fiscais federais para a indústria automobilística que cada vez emprega menos gente e mais robôs.
Nos últimos dias surgiu a informação de que esses incentivos fiscais desde 2009 teriam sidocomprados por fábricas de automóveis por meios ilícitos (lobby). Bem, então teremos que considerar que não foi burrice, mas esperteza. Uma coisa ou outra, no entanto, não levaram em consideração a mobilidade urbana, o interesse público ou a qualidade de vida do brasileiro.
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