sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

João Pereira Coutinho O falso gênio pode enganar meio mundo, mas o falso competente não engana ninguém, FSP

 Se a memória não me falha, era o incomparável H.L. Mencken quem dizia: quanto mais velho fico, mais admiro e anseio por competência —simples competência— em qualquer área, do adultério à zoologia.

Estou com ele. Admiro a coisa bem feita. Não interessa se é um livro, um filme ou a encanação de casa. A competência me comove, ainda que o espírito do tempo prefira a "genialidade".

Entendo. A genialidade absolve os medíocres. Se acreditamos que o gênio é inato, podemos desculpar nossa preguiça e nossos fracassos. "Não nasci gênio", diz o preguiçoso, para quem todo esforço é vão. A competência é silenciosa, solitária, difícil, gradual —e, ao contrário da genialidade, que muitas vezes depende do julgamento alheio, é mais fácil de avaliar. A noção de que algo "funciona" ou "não funciona" tem um imediatismo fulminante, sem máscaras, sem enganos.

Homem idoso com barba branca e boné preto olha atentamente para outra pessoa fora de foco. Fundo neutro desfocado.
Rob Reiner em cena do seriado 'O Urso' - Divulgação

O falso gênio pode enganar meio mundo; o falso competente não engana ninguém.

Por esse critério, como eram competentes os filmes de Rob Reiner! Neste final de ano, ao percorrer obituários, não consigo deixar de pensar no diretor americano, assassinado em casa juntamente com a mulher.

Há aqui uma tragédia humana. Mas há também uma tragédia cultural. Reiner não era um gênio do cinema —um Kurosawa, um Bergman, um Kubrick. Mas impressiona como, em vários gêneros, todos os seus filmes são bons.

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O próprio adjetivo, "bom", é desarmante na sua simplicidade. Basta passar os olhos pelas "escolhas dos críticos" neste fim de ano: 2025 só trouxe obras-primas, revolucionárias, sublimes, magistrais, transcendentes, definitivas.

Infelizmente, faltam as obras boas. Como eram, invariavelmente, as obras de Rob Reiner.

Na comédia romântica, ajuda ter Nora Ephron como roteirista. Mas "Harry e Sally – Feitos Um para o Outro" também vive dos atores, da inteligência da direção, da segurança com que Reiner conta a história em oscilações constantes de tempo e espaço.

O mesmo vale para "Uma Noite com o Presidente". Ajuda ter Aaron Sorkin como roteirista, claro, mas o resto é puro Rob Reiner – aquele classicismo irônico, sem ser mera cópia, como se Frank Capra tivesse renascido para lidar com as ambiguidades do nosso século.

Nos filmes mais sombrios, Reiner também acertou. No The New York Times, Martin Scorsese prestou homenagem ao amigo —e elegeu "Louca Obsessão" como seu filme preferido.

Poderia ser o meu também: como esquecer Kathy Bates, a fã que salva seu escritor favorito de um acidente de carro para depois tiranizá-lo com requintes de maldade?

Em "Questão de Honra", Reiner vai mais longe, expondo em tribunal a violência e a impunidade dentro do Exército americano. É o melhor filme judicial dos últimos quarenta anos – ou seja, desde "O Veredicto", de Sidney Lumet, outro especialista da escola da competência (e dos tribunais).

Meus favoritos, porém, são o falso documentário "Isto é Spinal Tap" e o belíssimo "Conta Comigo", a melhor adaptação de Stephen King para o cinema.

Nesta virada do ano, espero rever alguns desses clássicos. E espero também, sem grande otimismo, que nas listas de 2026 haja algum livro, filme ou álbum tão competentemente bem feito como os títulos que Rob Reiner nos deixou.

Não é fácil. Por razões misteriosas, o mundo continua produzindo obras-primas, revolucionárias, sublimes, magistrais, transcendentes, definitivas. Boas é que não há.

Celebração do Ano-Novo tornou-se uma síntese típica do Brasil, Gustavo Alonso- FSP

 Passado o Natal, é hora de celebrar o Réveillon. O que talvez poucos saibam é que a forma hoje hegemônica de celebrar o Ano-Novo é mais recente do que parece.

Quase sempre naturalizamos as festas como se elas "sempre fossem assim". Ao leitor mais ingênuo (ou menos idoso), pode parecer que sempre comemoramos a passagem de ano nas praias, ao som de música, vestidos de branco, pulando ondinhas, vendo fogos de artifício explodirem em festas organizadas por prefeituras que bancam a festa. Mas essa forma de celebrar a passagem de Ano-Novo é relativamente recente. Não tem 50 anos.

Queima de fogos para comemorar o Ano-Novo na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, na virada para 2025 - Eduardo Anizelli/Folhapress

Basta resgatar os jornais dos dias 1º de janeiro dos anos 1940, 1950 e 1960 que vemos nossos antepassados celebrando de outra forma. Ainda havia resquícios de vigílias em igrejas e paróquias. Nesta época a pouca festa pública acontecia no dia 31, por volta do meio-dia. Havia chuva de papel picado nos centros das cidades brasileiras, quando os trabalhadores eram dispensados mais cedo. E só.

Até o fim dos anos 1970 a comemoração de Ano-Novo era uma festa privada, não pública. Celebrava-se em casa, com os familiares, assim como até hoje celebramos o Natal e a Páscoa, por exemplo.

Os mais afortunados iam a bailes em hotéis, churrascarias ou clubes de luxo. Havia, por exemplo, o baile de Ano-Novo do Copacabana Palace, onde até meados dos anos 1960 se juntava a alta sociedade carioca. As roupas eram de gala, não brancas. E ninguém saia à meia-noite para ver os fogos. A festa era dentro das casas ou dos clubes.

Quem ia às praias, esses sim vestidos de branco, eram as minorias ligadas à umbanda e ao candomblé, que caminhavam em direção ao mar depois da meia-noite para encontrar-se com o sagrado da cultura afro-brasileira. Celebrar Iemanjá, pular ondinhas, fazer oferendas e tomar bebidas na areia —tudo isso devemos a eles.

No Rio de Janeiro, houve outro marco importante na construção pública da festa. Foi a partir de meados dos anos 1980 que ficou famosa a cachoeira de fogos de artifício do hotel Meridien. Percebendo as multidões que iam à praia para ver a "cachoeira do Meridien", a prefeitura do Rio passou a organizar uma queima de fogos cada vez mais espetacular. Até os anos 2000, os fogos de artifício eram disparados da areia. Depois, em nome da segurança, passaram a ser lançados de balsas no mar.

Hoje quem vai a Copacabana espera muita música. Mas não era assim até 1993. Foi nesse ano que a prefeitura se deu conta que as pessoas que iam ver os fogos causavam tumulto no trânsito ao abandonarem a areia todas juntas, minutos após o último estouro. Organizou-se então o primeiro show da virada nas areias de Copacabana, um show de Jorge Ben em 1993.

Em 1994, houve o show de Rod Stewart, que entrou para o Guinness World Records como o maior show de rock gratuito da história. Em 1995, houve show de Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e Paulinho da Viola, que levaram 2,5 milhões de pessoas para um tributo a Tom Jobim, que havia morrido meses antes.

Na época houve uma grande polêmica, pois Paulinho da Viola teria ganho um cachê muito inferior aos outros ídolos da MPB. Era a prefeitura quem bancava o show. Para além da polêmica dos cachês, fato é que a festa havia se tornado definitivamente pública.

E como festa pública, a celebração do Ano-Novo tornou-se uma síntese típica do Brasil. Celebrada ao ar livre, nas praias, nosso grande espaço público, a festa de Ano-Novo une as várias identidades brasileiras em aparente harmonia. Costumes das religiões afro-brasileiras se associaram ao hábito laico de queimar fogos, surgido em uma festa privada de um hotel.

Códigos e costumes populares se tornaram a regra social que domina a festa. E, mesmo os ricaços, que continuam fazendo festas fechadas, à meia-noite se veem obrigados a celebrar o Ano-Novo virados para os espetaculares fogos de artifício, em comunhão com os populares que lotam as areias, igualmente vestidos de branco. Atenta aos dividendos políticos e simbólicos, a prefeitura endossou e passou a organizar a festa popular.

A queima de fogos de Copacabana tornou-se, em menos de 50 anos, uma festa conhecida em todo o mundo. Em nossas esperanças de um ano melhor, o Brasil celebra desejos de uma sociedade menos desigual e mais integrada.

Trata-se de uma festa que resgata o que o Brasil tem de melhor: a capacidade de unir os diferentes em comunhão, mostrando que sempre podemos ser melhores juntos. Em época tão fratricida como a que vivemos, é algo raro. Celebremos!