quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Tremembé' é diversão e risos com a tragédia alheia, Mauricio Stycer, FSP

 Apesar de trazer no título uma referência a um conhecido presídio, a série "Tremembé" não está preocupada em discutir ou mesmo expor questões sobre um sistema carcerário conhecido, entre outros problemas, pela superlotação, más condições de higiene e saúde, violência, corrupção e assistência jurídica inadequada aos presos.


"Tremembé" está a serviço exclusivamente do entretenimento, turbinada pelo fato de ser inspirada "em fatos reais". Os protagonistas da produção do Prime Vídeo são, em sua maioria, pessoas que cometeram crimes bárbaros, de enorme repercussão, e tiveram suas trajetórias esmiuçadas à exaustão pela mídia.

Marina Ruy Barbosa em cena da série 'Tremembé', do Prime Video
Marina Ruy Barbosa em cena da série 'Tremembé', do Prime Video - Divulgação


A ação gira em torno de três detentas. Suzane von Richthofen, condenada por planejar e ajudar a executar o assassinato dos pais, Elize Matsunaga, que matou e esquartejou o marido, e Ana Carolina Jatobá, condenada pela morte de Isabela Nardoni, sua enteada de cinco anos. Esses crimes ocorreram entre 2002 e 2012.

A série também se volta para a ala masculina do presídio, enfocando os irmãos Cravinhos, cúmplices de Richthofen, Alexandre Nardoni, pai de Isabela, e o médico Roger Abdelmassih, condenado por violência sexual contra dezenas de pacientes, cuja primeira de várias prisões ocorreu em 2009.

Longe do mal-estar que um relato mais realista poderia causar, "Tremembé" investe num roteiro que a todo momento roça num fetiche, o sexo na prisão, e flerta com o escárnio. Com edição ágil, cortes espertos e cenas não intencionalmente cômicas, é uma série que se consome com o pote de pipoca na mão.

Há algo de "Orange is the New Black" no tom de "Tremembé", mas o humor ácido da série americana não se escora em pessoas conhecidas. A série de 2013 da Netflix é baseada na experiência de uma mulher bissexual, criada numa família de elite, que passou 15 meses presa por lavagem de dinheiro. Piper Eressea Kerman ficou famosa depois de publicar a sua história.


Suzane, numa interpretação canhestra de Marina Ruy Barbosa, é descrita como uma pessoa que dedica 100% do seu tempo à sedução. Sem dificuldades, ela conquista Sandrão, que era namorada de Elize. Esse triângulo ficou famoso depois que Gugu Liberato entrevistou Suzane em Tremembé. Outro trio amoroso descrito pela série envolve Cristian Cravinhos, uma namorada que o visita na prisão e um detento por quem ele se apaixona.

"Tremembé" evoca, de passagem, um bom assunto, que é a transformação de assassinos em celebridades, que lucram com essa exposição. Segundo a série, Suzane ganhou R$ 120 mil pela entrevista à Record conduzida por Gugu, em 2015. Já Elize teria faturado um valor milionário, não detalhado, pelo depoimento que deu para uma outra produção. O nome não é citado, mas tudo indica se tratar de referência a uma série lançada pela Netflix em 2021.

A produção dirigida por Vera Egito não consegue evitar, ela própria, o sensacionalismo. Ao contrário, com o retrato sem nuances dos protagonistas, apenas reforça ideias preconcebidas.

HBO Max contra Netflix
Ao aceitar a ingerência da Senna Brands na realização de uma minissérie sobre Ayrton Senna, a Netflix abriu o flanco para a concorrência. "Meu Ayrton por Adriane Galisteu", que a HBO Max lança nesta quinta-feira (6), vai ser o assunto dos sites de fofocas e celebridades pelas próximas semanas, talvez meses. É uma vingança, como se diz, com requintes de crueldade.

O Supremo e os aditivos no cigarro, Drauzio Varella, FSP

 Lidar com vendedores de drogas ilícitas é tarefa complexa, como demonstraram os acontecimentos da semana passada no Rio de Janeiro. Enquanto houver dependentes químicos dispostos a qualquer sacrifício para comprá-las, existirão traficantes decididos a correr riscos para vendê-las.

O mesmo acontece no comércio das drogas lícitas. O caso dos vendedores de nicotina, droga causadora de uma das dependências mais avassaladoras, é semelhante. A diferença é que os primeiros ficam sujeitos à repressão policial e às masmorras que chamamos de presídios, em nosso país, enquanto os outros podem andar de terno e gravata e fazer propaganda com liberalidade, para viciar nossas crianças e adolescentes.

Quando fiz 17 anos acendi o primeiro cigarro e caí nas garras dos fornecedores, dependência química que me subjugou por 19 anos, no ritmo de um maço por dia.

Por ridículo que possa parecer, naquele tempo começávamos a fumar sem saber sequer que fazia mal. Éramos estúpidos? Talvez, mas a indústria tabaqueira é quem dava as cartas nos meios de comunicação de massa. Pobre do jornal, da revista, da estação de rádio ou da TV que ousasse publicar ou levar ao ar uma notícia ou entrevista que explicasse a relação causal entre fumo, câncer, ataques cardíacos, AVCs e outras doenças graves. A insubordinação era punida com o corte imediato das verbas publicitárias.

Vemos em um close próximo, um adolescente deitado de perfil. Seus olhos estão abertos mas sua expressão é vazia. Grandes olheiras e maçãs do rosto “cavadas” lhe dão um ar de zumbi enquanto a mão de alguém coloca um cigarro nesse passivo personagem. Neste  segundo personagem  vemos a ponta da mangá de um terno, a camisa e uma abotoadura dourada. É o traficante de nicotina a viciar sua vítima
Libero Malavoglia

A peso de ouro, as propagandas exibiam mulheres encantadoras em poses sensuais, jovens praticando esportes e homens na maturidade em iates ou cavalgando corcéis fogosos. As marcas eram associadas ao sucesso, à liberdade, à força física e à saúde. Graças a essa estratégia perversa, viciaram em nicotina milhões de crianças e adolescentes em nosso país. Cerca de 90% dos usuários tinham menos de 18 anos (proporção que se mantém até hoje). Não é à toa que a Organização Mundial da Saúde classifica o tabagismo como doença pediátrica.

Em combinação com essas armadilhas, os fabricantes implantaram a estratégia de acrescentar aditivos ao fumo, para disfarçar o sabor aversivo da fumaça. Misturar ao fumo produtos químicos com gosto de chocolate, sorvete de creme, framboesa e outros sabores ao gosto da criançada —além do mentol, para trazer sensação de frescor à garganta irritada pela fumaça— é perversidade inominável.

As quantidades desses aditivos em cada cigarro são altas. Faltam estudos para avaliar os subprodutos resultantes de sua combustão. Alguns deles têm atividade carcinogênica documentada em sistemas experimentais. Certamente, fumar cigarros com aditivos é ainda mais perigoso.

Em 2012, com base numa infinidade de evidências científicas, a Anvisa proibiu o uso de saborizantes nos produtos de tabaco.

Desde então, a aplicação dessa norma da agência tem sido adiada por conta de ações judiciais movidas pela indústria do fumo e seus asseclas. Atualmente, mais de 40 delas tramitam na Justiça, numa demonstração clara da participação dos fabricantes. A consequência do esforço para impedir que a norma da Anvisa seja obedecida foi o registro de mais de 1.100 produtos de tabaco com aditivos para serem comercializados no mercado brasileiro.

Esse absurdo foi parar no Supremo Tribunal Federal, instância em que o ministro Cristiano Zanin pediu vistas do processo, há alguns meses. Como o prazo para a devolução está para se esgotar o julgamento será retomado.

Duvido que haja uma só leitora ou leitor da coluna de hoje que aprove um crime desses, cometido contra nossas crianças e adolescentes com a única finalidade de torná-los dependentes químicos de uma droga legalizada que lhes trará sofrimentos pelo resto da vida e morte precoce. Os estudos mostram que o cigarro encurta em média dez anos a vida de uma mulher e 12 anos a de um homem.

Em 37 anos de convívio com usuários de crack nas cadeias de São Paulo, aprendi que é mais difícil largar o cigarro do que o crack. Em 50 anos tratando de pacientes com câncer, cansei de ver gente esclarecida morrer sem conseguir se livrar dessa praga. Como ex-fumante, experimentei na pele o desespero que a abstinência de nicotina provoca no dependente.

A indústria do fumo comete crimes continuados contra a saúde pública há pelo menos um século. Caberá aos ministros do Supremo decidir se vão dar cobertura a mais este.