terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Waldemar Magaldi - Espiritualidade funcional legitima desigualdades em nome da fé, FSP

 

Waldemar Magaldi Filho

Analista junguiano, mestre e doutor em ciências da religião e fundador do IJEP (Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa). Autor de "Dinheiro, Saúde e Sagrado"

São Paulo

[RESUMO] O texto analisa a ascensão da teologia da prosperidade como expressão de um deslocamento mais amplo da fé em direção à lógica do mercado. Ao transformar riqueza material em sinal de bênção e pobreza em falha espiritual, essa teologia submete o sagrado à gramática do desempenho, do cálculo e da recompensa. O antigo conceito bíblico de Mamon reaparece como símbolo desse processo, no qual o dinheiro deixa de ser meio e passa a ocupar o centro da experiência religiosa. O resultado é uma espiritualidade funcional, que oferece consolo individual, mas esvazia o mistério, enfraquece a crítica social e legitima desigualdades em nome da fé.

Em muitos templos pelo país, fiéis são convidados a subir ao púlpito para relatar conquistas materiais: a casa financiada, o carro novo, a empresa que prosperou "pela fé". Carteiras de trabalho, chaves de carro e contratos são ungidos em cultos transmitidos ao vivo. Pastores falam em "sementes", "investimentos" e "retornos". O vocabulário não é casual. Ele traduz uma teologia em que prosperidade material se tornou sinal de bênção divina, e a pobreza, indício de falha espiritual.

Esse deslocamento não surgiu do nada. Ele tem nome antigo. Mamon é um conceito quase arquetípico que atravessa a teologia ocidental desde que um carpinteiro da Galileia fez uma advertência radical: "Não podeis servir a Deus e a Mamon" (Mateus 6:24).

No aramaico, māmōnā significava riqueza ou propriedade. No discurso de Jesus, porém, o termo se personifica: deixa de ser coisa e se torna poder rival, uma soberania que exige lealdade exclusiva. Mamon não é o dinheiro no bolso, mas o dinheiro entronizado no coração.

Ilustração de uma mão feminina com unhas pintadas de vermelho, colocando uma moeda dourada em uma carteira vermelha aberta. O fundo da imagem é cinza escuro.
Autor reflete sobre como prosperidade passa a ser sinal de bênção; pobreza, de fracasso espiritual. - Catarina Pignato/Folhapress

Em um mundo secularizado, no qual grandes sistemas de crença perderam força, Mamon não apenas sobreviveu como prosperou. Sua manobra mais eficaz foi deixar de se apresentar como adversário da fé para tornar-se seu patrocinador.

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A infiltração de Mamon nas religiões contemporâneas se expressa de forma mais visível na chamada teologia da prosperidade, nascida nos Estados Unidos e hoje globalizada. Nela, a lógica tradicional do cristianismo sofre uma inversão decisiva: a riqueza passa a ser sinal inequívoco do favor divino, enquanto a pobreza é associada à falta de fé, ao pecado ou à maldição.

Deus é então reimaginado como uma espécie de sócio-investidor celestial, disposto a "derramar bênçãos" desde que o fiel demonstre confiança —quase sempre por meio de atos financeiros. A fé se materializa em doações, ofertas especiais e "votos de sacrifício", tratados como investimentos espirituais com promessa de retorno. Essa lógica não se limita ao neopentecostalismo: ela se infiltra em espiritualidades seculares, como a chamada Lei da Atração, que promete que o universo conspirará a favor de quem "vibrar na frequência da abundância".

As práticas que decorrem dessa visão são explícitas e ritualizadas. Campanhas financeiras estabelecem desafios de doação para "quebrar correntes da miséria". O léxico é importado do mundo dos negócios: fala-se em honrar a Deus com as primícias, devolver o dízimo para afastar o "espírito devorador" e destravar bênçãos "sem medida". O púlpito se converte em vitrine de sucesso material, e o testemunho de fé se mede por bens adquiridos.

Nesse modelo, a relação com o divino assume um caráter profundamente transacional. A oração se aproxima de uma ordem de compra; a bênção, de um dividendo esperado. A fé se organiza como um sistema de recompensas, com placar visível nos extratos bancários. É a gamificação da espiritualidade.

As consequências são profundas. A primeira é uma inversão ética. A cobiça, antes condenada, reaparece sob o nome de "visão de futuro" ou "fé ousada". A segunda é um individualismo espiritual radical, no qual salvação e bem-estar dependem exclusivamente da performance pessoal. O senso de comunidade e a responsabilidade coletiva se enfraquecem.

No plano social, a Teologia de Mamon oferece uma justificativa conveniente para a desigualdade. Se a riqueza é sinal de bênção, a pobreza se transforma em culpa individual. O sistema econômico deixa de ser questionado, e a vítima passa a ser responsabilizada por sua própria condição. Desmonta-se, assim, a base teológica da caridade, da justiça social e da compaixão, pilares históricos do cristianismo. O "amai-vos uns aos outros" cede lugar a um silencioso "enriquecei-vos por mérito".

O resultado é uma espiritualidade que anestesia. Ela promete consolo e ascensão individual, mas evita qualquer enfrentamento das estruturas que produzem a pobreza que diz combater. O sagrado se adapta sem atrito à lógica do capitalismo tardio.

Em suma, a Teologia de Mamon representa a rendição de parte do campo religioso à lógica do mercado. É o Bezerro de Ouro reconstruído em alta definição, com marketing digital e transmissão ao vivo. Mamon não exige altares de pedra, mas de vidro e aço: arranha-céus, shoppings, telas de smartphones. O impacto final é a erosão do mistério e a transformação do sagrado em mais um produto na prateleira da vida contemporânea.

O desafio para as religiões —e para os buscadores sinceros— não é exorcizar o dinheiro, mas destroná-lo. É reaprender a distinguir o que tem preço do que tem valor, antes que a cotação da alma humana despenque no pregão do esquecimento

O imbecil coletivo digital, Bruno Gualano- FSP

 Em 2024, a Austrália decidiu proibir o acesso de menores de 16 anos às principais plataformas digitais, impondo multas significativas a aplicativos como TikTok, Facebook, X e Instagram em caso de violação. Seguindo a mesma direção, a Dinamarca anunciou recentemente um acordo político para vetar o uso de redes sociais por menores de 15.

Para Caroline Stage, ministra da Digitalização, "as grandes plataformas de tecnologia tiveram livre acesso aos quartos das crianças por tempo demais". Segundo ela, o impacto das redes sobre o público jovem é tão profundo que "nenhum pai, professor ou educador consegue enfrentar sozinho".

Antes que se brade pela "liberdade" das redes, vale examinar por que a medida é pertinente. O uso problemático de mídias sociais entre adolescentes saltou de 7% em 2018 para 11% em 2022. Esse padrão apresenta características análogas às de um vício, como dificuldade de controlar o tempo nas plataformas, abandono de outras atividades cotidianas e consequências negativas que incluem redução do bem-estar mental e socialdepressãoansiedade, bullying, privação de sono, consumo abusivo de drogas e pior desempenho escolar.

A imagem mostra uma mão segurando um smartphone com a tela exibindo ícones de aplicativos de redes sociais. Os aplicativos visíveis incluem Facebook, Instagram, Twitter, Skype, YouTube, VK, e WhatsApp. O fundo da imagem é desfocado, sugerindo um ambiente interno.
Uso das redes sociais provocam redução do bem-estar mental e social, depressão e ansiedade - DenPhoto/Adobe Stock

Como se não bastasse, as plataformas digitais têm se revelado eficazes instrumentos de imbecilização infantojuvenil. Um estudo recente publicado no JAMA investigou como diferentes padrões de uso de mídias sociais no início da adolescência se relacionam com o desempenho cognitivo dois anos depois, analisando dados do estudo longitudinal ABCD, que acompanha mais de 6.500 jovens estadunidenses dos 9 aos 13 anos.

Foram realizados testes de cognição em três grupos: o primeiro incluiu adolescentes que praticamente não usavam redes sociais e mantiveram esse padrão até os 13 anos; o segundo reuniu jovens que começaram com pouco uso, mas o aumentaram gradualmente; e o terceiro representou uma minoria que começou a usar cedo e cujo tempo nas plataformas cresceu de forma acelerada, passando de poucos minutos a mais de três horas diárias.

Os achados indicam que, quanto maior o crescimento do uso de mídias sociais, pior o desempenho cognitivo geral, incluindo memória, vocabulário e reconhecimento de palavras. O aspecto mais inquietante é que até mesmo padrões de uso baixo, mas crescentes, já se associam a escores cognitivos inferiores. Uma explicação plausível é que o tempo dedicado às mídias sociais passe a competir com atividades mais educativas e cognitivamente estimulantes, como a realização de tarefas escolares.

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Embora as associações observadas nesse estudo sejam modestas no plano individual, seu possível impacto populacional é suficiente para mobilizar a atenção de formuladores de políticas. Que até incrementos moderados no uso das plataformas estejam ligados a piores desfechos cognitivos reforça a necessidade de limites etários mais rigorosos, consentimento parental, padrões de design mais seguros e maior responsabilização das redes.

Há quem sustente que vínculos e identidades entre jovens poderiam ser fortalecidos pelo "uso responsável" das plataformas. Sua lógica de engajamento, porém, empurra os usuários ao excesso. Sem educação digital, o conselho "aprecie com moderação" é tão inútil quanto no caso do álcool ou das bets. Limitar o acesso de jovens às redes atuais é a maneira de restituir-lhes não só a saúde mental, mas a autonomia e a racionalidade —isto é, as condições necessárias para a verdadeira liberdade.

Blecautes - Jerson Kelman ,FSP

 Os blecautes que têm acontecido em São Paulo na sequência de tempestades e ventanias evidenciam a necessidade de medidas de adaptação às mudanças climáticas. Por exemplo, a qualidade da prestação do serviço seria muito melhor se a rede elétrica fosse subterrânea. Sou testemunha disso: moro no Rio, em Copacabana, onde a rede foi enterrada décadas atrás, e não me lembro de um único blecaute nos últimos 6 anos.

O leitor talvez ache que a Enel poderia gerenciar melhor a rede aérea existente, particularmente na poda de árvores, em articulação com a administração municipal. Talvez tenha razão. Não tenho suficiente conhecimento para opinar. Poderá também achar que a Enel não tem interesse em enterrar a rede. Suponho que não seja esse o caso porque careceria de lógica econômica: qualquer concessionária de distribuição tem interesse em fazer investimentos para receber a respectiva remuneração pelo capital alocado, como se fosse o aluguel de um imóvel.

Técnico com capacete e colete laranja opera em plataforma elevatória próxima a transformador em poste de energia. Fios e isoladores visíveis, ambiente urbano com árvores e edifícios ao fundo.
Carro da Enel chega para fazer a religação da energia após seis dias em prédio na Mooca, zona leste de São Paulo - Danilo Verpa - 15.dez.25/Folhapress

Por óbvio, são os consumidores que pagam esse "aluguel" embutido em suas contas de luz. Ou seja, a amortização e a remuneração do capital investido em ativos reconhecidos regulatoriamente são repassados para os consumidores via tarifas. Por isso o enterramento de toda a fiação seria inviável: as contas de luz ficariam incompatíveis com o nível de renda da população (os 20% mais ricos têm renda mensal de R$ 3.500). Ou seja, o principal problema é social e econômico, não técnico.

Ok, toda fiação não pode ser enterrada. Mas... e se a providência fosse tomada só nos bairros em que a população, em busca de um serviço de melhor qualidade, decidisse numa consulta por pagar bem mais pela eletricidade e tolerar obras que inescapavelmente atrapalhariam o trânsito?

A hipotética consulta seria elitista porque só a população de bairros ricos teria condições de responder positivamente. Porém, é preciso reconhecer que o elitismo já é a prática corrente. Nos bairros melhor urbanizados, onde moram pessoas de maior influência política, o serviço tende a ser de melhor qualidade do que nos bairros pobres. Mas toda a população, não importa o bairro, paga a mesma tarifa, sem que a qualidade do serviço influencie de forma relevante a conta de luz. Para um mesmo consumo, eu pago uma conta de luz quase igual a de um morador da Baixada Fluminense que sofre falhas elétricas que não me atingem. Na prática, os pobres subsidiam os ricos.

O decreto nº 12.068/2024 permite que a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) aplique tarifas diferenciadas por áreas ou bairros, mencionando explicitamente os locais onde haja dificuldade de combate às perdas não técnicas (os "gatos") e altos índices de inadimplência. Acredito que o decreto também permita o aumento tarifário em áreas onde se faça substancial investimento na rede subterrânea. Ou seja, a diferenciação tarifária pode ser aplicada tanto nos bairros problemáticos quanto nos que sejam privilegiados com um serviço de melhor qualidade.

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A aplicação prática dessa diferenciação depende de regulamentação da Aneel. A Agência está realizando consultas públicas para definir os critérios de como essas tarifas serão calculadas e em quais situações poderão ser aplicadas. Nesse meio tempo, é torcer para que o Congresso desista da tentativa em andamento de derrubar o decreto.