terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Wilson Gomes - A esquerda que troca política por punição, FSP

Enquanto a extrema direita avança no mundo real, conquistando maiorias eleitorais e consolidando poder institucional, parte da esquerda parece cada vez mais confinada a seu parquinho digital de punições morais. O contraste é desconcertante —e politicamente desastroso.

Nesta semana, no Chile, mais um Jair Bolsonaro venceu, por ampla maioria, em uma democracia latino-americana relevante. No Brasil, tudo indica que, no próximo ano, a prioridade estratégica da direita será a conquista do Senado Federal. Trata-se de política dura, institucional, majoritária —aquela que decide o destino dos países e que pode, com facilidade, desfazer décadas de conquistas sociais.

Ilustração com fundo branco. À esquerda, uma mão segura um smartphone na posição vertical.  À direita, vê-se o perfil de um homem, desenhado em preto e branco, com traços angulosos e expressão tensa.  Sua boca está aberta, cuspindo a tela do celular na sua frente. É um jato espesso de líquido dourado, lançado com força, atravessando o espaço em direção ao celular.  O líquido lembra uma substância viscosa, como todo ataque ou agressão. O rosto projeta uma sombra forte sobre o fundo, aumentando o clima de confronto. Acima da cabeça do homem uma nuvem amarela clara paira, chuva caindo, sugerindo pressão constante. A cena estabelece uma relação direta entre o celular — símbolo das redes sociais — e a agressão moral dirigida ao indivíduo.  O contraste entre o desenho em preto e branco e o líquido dourado enfatiza a violência simbólica do “cancelamento”, associando a ação digital a um ato público de humilhação.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes - 17 de dezembro de 2025 - Ariel Severino/Folhapress

Enquanto isso, nas redes sociais, militantes identitários engajam-se em mais uma expedição punitiva contra um intelectual progressista. Francisco Bosco, alguém inequivocamente solidário à pauta feminista e às lutas das mulheres, foi alvo de um linchamento digital violento por ter afirmado algo elementar: é o machismo que deve ser tratado como inimigo da luta das mulheres —não os homens. Houve mais gente mobilizada para atacá-lo do que pessoas presentes nas manifestações contra o feminicídio. Isso não é apenas estranho. É chocante. E deveria preocupar qualquer democrata.

Não se trata de analisar esse episódio específico, para evitar amplificar ainda mais o ruído. Mas ignorá-lo seria irresponsável. Ele é sintoma de algo mais profundo: o isolamento tático de uma esquerda que trocou a luta por direitos por patrulhamento moral, persuasão por punição, política democrática por exibição de virtude.

A pesquisa "O Brasil Invisível", da More in Common, ajuda a iluminar esse paradoxo com dados difíceis de ignorar. Cerca de 76% dos brasileiros rejeitam a ideia de que homens sejam superiores às mulheres. A crença na igualdade entre homens e mulheres é amplamente consensual no país, atravessando praticamente todos os segmentos sociais, inclusive os conservadores. No entanto, apenas cerca de 38% da população concorda que o feminismo promove essa igualdade.

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O hiato é enorme —e se explica. Nos segmentos centrais e conservadores, o feminismo não é apenas visto como ineficaz para promover a igualdade, mas frequentemente associado a imputações negativas: agressividade moral, vitimização seletiva, hostilidade aos homens e ameaça à família. À medida que se caminha do campo progressista para o conservador, cresce a concordância com a ideia de que a "ideologia feminista" representa um risco para valores sociais básicos.

Trata-se de um deslocamento decisivo: o feminismo deixa de ser percebido como movimento por direitos e passa a ser enquadrado como ator da guerra cultural, mais preocupado em punir, constranger e silenciar do que em persuadir e agregar. Esse enquadramento ajuda a explicar por que um valor amplamente consensual —a igualdade entre homens e mulheres— não se converte em legitimidade ampla para o movimento que reivindica falar em seu nome.

É evidente que a extrema direita explora caricaturas e amplifica ressentimentos. Mas isso só funciona porque o que ela diz se ancora em experiências reais: rituais de humilhação pública, cancelamentos e linguagem acusatória. O "feminismo" —uso as aspas porque falo da percepção pública, não da diversidade real de correntes— parece menos interessado em ampliar coalizões do que em demarcar fronteiras morais. Funciona mais como comunidade de pureza do que como força democrática de transformação social. Não quer estar certo para mudar a sociedade; quer estar certo —ponto.

Quem tenta alertar para esse impasse, como fez Bosco, acaba excomungado. Nada reafirma mais uma identidade do que um bom ritual coletivo de punição.

Engana-se quem pensa que há aqui interesse efetivo nas dinâmicas democráticas. Se houvesse, aceitar-se-ia que convencer é melhor do que humilhar, que não multiplicar inimigos é preferível a exibições de superioridade moral, que argumentar produz mais efeitos do que insultar.

O que se vê, em vez disso, são movimentos de depuração emocional por meio de ritos de sacrifício da reputação —e, às vezes, dos meios de sobrevivência— dos "inimigos", para consumo privado da tribo. Grupos de revanche encontram prazer em despejar sobre alvos específicos todo o ressentimento acumulado por séculos de opressão.

Cancelamento é instrumento de coesão interna, não de persuasão externa. Sinaliza virtude, impõe disciplina e produz medo —como se a democracia não fosse uma disputa permanente pela percepção e pelo apoio da maioria. O resultado, claro, é previsível.

Quanto custa comprar um juiz? , Hélio Schwartsman, FSP

 Quase tão ruim quanto pegar carona em jatinhos de empresários cujos casos julgará, é o juiz insistir que não precisa sujeitar-se a um código de ética porque já é ético. Mesmo que comprássemos pelo valor de face a tese de que nossos valorosos magistrados nunca se vendem, ainda restaria que eles têm um cérebro humano, e cérebros humanos são facilmente sugestionáveis.

A literatura psicológica ensina que viagens, refeições e até brindes de valor irrisório predispõem as pessoas em favor de quem dá o presente, mesmo que elas não se deem conta desse efeito. Até não muito tempo atrás, médicos juravam de pés juntos que não eram afetados pelos mimos fornecidos por laboratórios. Mas aí vieram os dados...

Numa metanálise clássica de 2000 que sempre cito aqui, Ashley Wazana mostrou que pagar uma viagem para um profissional de saúde aumentava entre 4,5 e 10 vezes a probabilidade de ele receitar as drogas produzidas pela empresa patrocinadora.

Ora, se uma viagenzinha de fim de semana mais do que quadruplica a chance de o alvo da investida agir com parcialidade, de que prodígios não será capaz a transferência de R$ 3,6 milhões mensais para o escritório de advocacia da família?

A menos que os ministros queiram cometer um haraquiri moral, têm não só de aceitar um código de ética como fingir que o defendem desde criancinhas. E receio que não possa ser um código de pegada mais idealista como o adotado pela suprema corte alemã, que privilegia a transparência. Dado o estado de coisas por aqui, penso que é preciso também desenhar o que não pode. Jatinhos? Só se for UTI aérea.

Seminários no exterior? Nunca. Não há teoria jurídica que possa ser exibida num hotel luxuoso de Londres que também não possa ser apresentada numa sala abafada de universidade pública brasileira. Regular a ação de advogados-parentes é mais complicado, mas precisamos tentar.

Fica difícil para pobres colunistas como eu defender o Judiciário enquanto instituição se seus mais destacados membros se esmeram em desmoralizá-lo.


O dia em que meu pai não raspou a barba, Joanna Moura- FSP

 

Meu pai tem uma história famosa, dessas que todos nós temos dentro de nós, um "causo" que aconteceu em algum momento da vida e que, por qualquer motivo, em vez de ser renegado ao esquecimento como são tantos, fica impresso para sempre no córtex.

No caso desta história em particular, acredito que sua eternização tenha se dado, a princípio, pelo estranhamento e frustração que gerou, mas, a posteriori, pela moral que meu pai foi capaz de extrair dela. Foi, aliás, esta moral que possibilitou ao causo ganhar status de anedota, dessas que se recita para grupos de amigos ao redor da mesa ou para filhas que demandam aconselhamento, como foi tantas vezes o meu caso.

Ilustração mostra Guilherme Boulos em sua casa
Catarina Pignato

O causo é mais ou menos assim:

Aos 20 e poucos anos, já com mulher e filhos, insatisfeito com o emprego que tinha à época, meu pai se deparou com o anúncio de uma vaga de trabalho numa famosa multinacional que fabricava lâminas de barbear. Decidiu então ir lá saber mais e vender seu peixe. A tal empresa comprou. Depois de duas ou três entrevistas, lhe ofereceram a vaga que vinha acompanhada de um bom salário e um promissor plano de carreira.

Reza a lenda que, ao selar a contratação com um aperto de mãos, o futuro chefe mirou meu pai nos olhos e disse: "agora só falta raspar essa barba".

O que podia soar como uma piada era, de fato, uma exigência. Aparentemente, a tal multinacional não contratava ninguém que ostentasse pelos faciais.

Meu pai negou a oferta. "Se vocês fabricassem cigarros iam me obrigar a fumar?", questionou ao comunicar sua decisão.

Quando ouvi a anedota pela primeira vez, eu me preparava para prestar vestibular e as dúvidas sobre que curso seguir me consumiam. Sentada ao seu lado, no banco do carona do carro, permaneci olhando para a estrada, enquanto suas palavras alcançavam os meus ouvidos.

Ao final do relato, permaneci calada, um tanto enfurecida pela falta de conexão aparente entre meu dilema e os fatos narrados. Eis que a conexão veio.

"Você nasceu porque eu resolvi não raspar a barba. Se tivesse raspado e aceitado aquele trabalho, eu não teria mudado de cidade, não teria vindo parar em Salvador e não teria conhecido sua mãe", ele disse, com aquele sorriso de satisfação do contador de histórias quando ele sabe que capturou a atenção do ouvinte.

Olhei para ele pela primeira vez desde o início da conversa com as sobrancelhas levantadas. Ele seguiu:

"A vida é feita de decisões, minha filha. A cada momento de cada dia decidimos tomar um caminho em detrimento de outro. Atravessar ou não a rua. Ir ou não a um evento. Avançar ou não um sinal. Raspar ou não a barba. Mas, na maior parte das vezes, nem percebemos que estamos escolhendo algo e que aquela escolha também representa uma renúncia. Portanto, não coloque essa pressão toda nessa decisão que você precisa tomar. A consciência sobre as possíveis consequências de uma escolha não fazem com que ela seja mais importante ou mais correta do que todas as outras decisões que você já tomou hoje sem nem pensar duas vezes."

Ao longo da vida, ouvi esta história muitas outras vezes, mas nem precisava. Vira e mexe repito para mim mesma as palavras ditas naquele carro.

Há poucos meses, tomei a decisão de me mudar de volta para o Brasil depois de dez anos morando fora e, desde então, penso nesta história todos os dias. Decidi raspar a barba, agora é conter a ansiedade e deixar a vida fazer o que ela faz de melhor, surpreender.