quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

O que acontecia com batatas, árvores, deputados e Havaianas no Natal de 1925,VTF FSP

 Na véspera do Natal de 1925, a primeira página desta Folha contava que "chimicos alemães conseguiram, com grande successo, produzir uma especie de borracha synthetica, fabricada de batatas".

No "dia de hontem no Congresso", o Senado tratava de "projectos de concessão de favores". As emendas e os diamantes são eternos.

A Câmara acabava de aprovar a devolução de sete contos de réis para o bispado de Santos, dinheiro bastante para pagar 280 assinaturas anuais da Folha de então ou cinco pianos "nacionaes". O deputado Marrey Junior elogiava um colega estreante, que desaprovara esse projeto "inconstitucional": "O novo deputado entrou com o pé direito", talvez porque não pudesse usar Havaianas.

Pessoa de costas, com cabelo cacheado e blusa verde, escolhe chinelos rosa em parede com vários pares organizados por cor, do amarelo ao roxo.
Loja da Havaianas em São Paulo - Nelson Almeida - 18.jul.17/AFP

Havaianas então não existiam nem no Havaí, diz a história ou a lenda. O gosto por esse "chinelo de dedo", como os chama minha mãe mineira, teria sido difundido naquelas ilhas por imigrantes japoneses do pós-guerra ou por soldados americanos que voltavam do Japão, onde haviam gostado das sandálias "zori".

Um havaiano de origem japonesa começou a fabricá-las em 1946, com borracha de pneus largados à beira de estradas, quem sabe borracha feita das batatas dos "chimicos alemães". Até pelo menos os anos 1980, o povo pobrinho do interior do Brasil fazia chinelos com restos de pneus.

Segundo outra história, nos anos 1950 uma empresa japonesa teria começado a exportar "zoris" emborrachadas para Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos, onde turistas de verão as calçavam em massa no início dos 1960.

A "Havaiana" apareceu em 1962, azul e branca, baratinha até se tornar "fashion" e calçar modelos. "Minha prima" Fernanda Torres era tão criança quanto eu nos anos 1970, quando Chico Anysio, o humorista (1931-2012), aparecia em anúncios nos instando a comprar as "legítimas", "que não deformam, não soltam as tiras e não têm cheiro". Jamais entendi direito como chinelos de borracha teriam cheiro. Agora, sabemos do odor do miolo mole de quem amaldiçoa chinelo e reza para pneu.

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A comunidade italiana dividia-se por causa de Mussolini, contava a Folha. A "imprensa brasileira" era "alvejada" por adeptos do fascista. "O que mais não nos havia de acontecer neste fim de anno, já de si tão cheio de pororócas de todos os naipes e conxublancias de todos os typos!". As "conxublancias" continuam.

O jornal dava notícias do "rigoroso treino" do Corinthians e uma nota com foto da campanha da Ku Klux Klan contra o álcool nos EUA. Contava da vidinha dos ilustres da província, das "reuniões dançantes" do dia, de quem se formara na faculdade, de quem noivava e de quem partia para o Rio de Janeiro no "nocturno" ou no "nocturno de luxo" (trens). Um "negociante desesperado" de 64 anos, perto da falência, se suicidara. A polícia encontrara o cadáver do "tresloucado" "quente ainda", escrevia o impiedoso redator.

A província também se desmatava. "Quem é que está mandando derrubar as nossas árvores?", perguntava um artigo indignado com uma árvore abatida na rua da Glória, uma entre tantas caídas por causa da modernidade elétrica dos bondes e do alargamento das ruas. "Quem é que tem pena das árvores da rua, quando os próprios carvalhos do Largo do Palácio [hoje praça Pátio do Colégio] foram derrubados pela municipalidade iconoclasta?". Quem?

Melhor não falar de notícias nestes dias, mas elas já estavam lá, no Natal de um século passado. Boas festas e paz para todos nós.

Endividado, Jockey Club agora sofre com as bets, FSP

 Vicente Vilardaga

São Paulo

O Jockey Club era uma referência da elite paulistana. Hoje é um lugar esvaziado, cheio de dívidas de impostos municipais e alvo de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) aberta para investigar irregularidades fiscais e imobiliárias nas suas atividades.

O Jockey foi fundado em 1875 com o nome de Clube de Corridas Paulistano, cuja sede era o Hipódromo da Mooca. Em 1941 mudou-se para a Cidade Jardim. Seu dois prédios principais, tombados pelo Conpresp e pelo Condephaat, compõem um impressionante conjunto art déco e foram projetados pelo arquiteto Elisário Bahiana. Em 1950, passaram por uma remodelação com projeto do francês Henri Sajous.

Cinco cavalos com jóqueis coloridos competem em pista de grama. Cavalo da direita lidera com jóquei de capacete amarelo e camisa preta e branca.
Corridas na pista de grama de 3.000 metros no Jockey Club acontecem apenas aos sábados - Eduardo Knapp/Eduardo Knapp/Folhapress

O turfe se apresentava como umas das únicas formas legais e acessíveis de aposta, mas agora concorre com as bets e perdeu o público jovem. O movimento de pessoas e cavalos no Jockey diminuiu muito nos últimos 20 anos. Atualmente, há, por semana, uma única reunião ou programa (série de páreos) aos sábados.

Décadas atrás, o Jockey fazia três programas por semana e já chegou a ter cinco até os anos 1990. Nessa época, a Vila Hípica da Cidade Jardim alojava 1.500 cavalos. Quem quisesse deixar um animal no local precisava entrar numa fila de espera. Hoje são 300, segundo o jornalista Cyro Fiuza, que acaba de lançar o livro "Jockey Club de São Paulo: uma História no Tempo".

"A decadência está relacionada à falta de marketing e de atrativos 'extraturfe'. Entre um páreo e outro leva meia hora e é um momento para se realizar algum evento", diz Fiuza. "Antes havia atividades e personalidades e artistas eram levados para as corridas."

Público das corridas de cavalos cai ano a ano e hoje representa 10% do que já foi no passado - Eduardo Knapp/Folhapress

A frequência no hipódromo caiu. Cada programa de sábado ou domingo chegava a reunir cinco mil pessoas. No Grande Prêmio São Paulo, realizado em maio, compareciam de 15 mil a 20 mil pessoas. Atualmente, cerca de 500 espectadores e apostadores assistem à corrida semanal, muitos atraídos pelos dois restaurantes e um bar que há no local.

Além disso, um Grande Prêmio chegava a movimentar num páreo principal R$ 2,5 milhões. Uma reunião normal movimentava R$ 1 milhão. Hoje, as corridas de sábado rendem R$ 300 mil. Outro termômetro do momento é a perda de sócios do clube. Segundo Fiuza, ele tem 300 sócios pagantes. Esse número já foi de 2.000. A mensalidade atual é de R$ 540.

Há anos, o hipódromo paulistano também tem sido alvo de ações de cobrança de cerca de R$ 800 milhões em impostos municipais, IPTU e ISS. A prefeitura tem planos de desapropriar parte do imóvel para instalar um parque público e abater a dívida. O Jockey resiste e, em setembro, entrou com um pedido de recuperação judicial, aceito em primeira instância, para reestruturar suas pendências e evitar a falência, mas algumas semanas depois o Tribunal de Justiça suspendeu a decisão.

Edifício histórico do Museu do Ipiranga com fachada branca e colunas, rodeado por árvores e jardins. Em frente, estrutura moderna de vidro conecta o museu à calçada. Ao fundo, área verde e pista de corrida.
Prédio principal do Jockey Club em estilo art déco projetado por Elisário Bahiana e Henri Sajous - Mathilde Missioneiro/Folhapress

O Jockey informou que reconhece a dívida tributária, mas não o valor. Segundo o clube, o total devido gira em torno de R$ 300 milhões, mais ou menos o que a prefeitura precisa pagar para ressarci-lo por causa da desapropriação, em 2014, da Chácara do Ferreira, sua antiga propriedade na avenida Francisco Morato que virou um parque.

Já a CPI foi aberta em novembro, depois de denúncias de desvio de recursos obtidos com a Lei Rouanet e com a venda de TDCs (Transferência do Direito de Construir), R$ 25,7 milhões e R$ 62 milhões respectivamente. Com os TDCs, bens tombados ganham créditos em metros quadrados que podem ser vendidos para construtoras erguerem prédios em outros lugares. O dinheiro obtido nos dois casos teria como destino a preservação do patrimônio histórico.

O clube nega e diz que a verba do TDC é indenizatória e pode ser usada de várias maneiras. Segundo um porta-voz, apenas uma fatia de R$ 11 milhões estaria comprometida com gastos em preservação. Quanto ao dinheiro da Lei Rouanet, o Jockey afirma que está sendo integralmente aplicado em restauro, com exceção de 15% destinados para gastos administrativos. Seja como for, o hipódromo paulista é uma sombra do passado.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

Quando a Amazônia encontra o mar - FSP

 Josinaldo Reis do Nascimento

Biólogo, professor do Instituto Federal do Pará - campus Bragança e coordenador do podcast Mexericos na Maré

Pouca gente sabe, mas na Amazônia também tem mar: é a Amazônia Atlântica. Nas minhas andanças por outras regiões do Brasil, quando digo que vivo aqui, nos maretórios da Amazônia —e que eles são o palco das minhas pesquisas—, quase sempre percebo espanto e curiosidade. Essas reações revelam o quanto ainda é necessário falar sobre a importância socioeconômica e ambiental desses maretórios para o equilíbrio da temperatura global do planeta.

Maretórios são espaços costeiros e marinhos habitados e manejados por populações tradicionais extrativistas, que vivem sob a influência direta das marés, dos ventos e dos ciclos lunares. São pescadores e pescadoras que edificam, a partir dessas dinâmicas naturais, contratos sociais e práticas produtivas que vão além da pesca.

Ilustração em tom vermelho com árvores na parte superior e inferior, refletindo-se simetricamente. Entre as árvores, linhas abstratas e formas geométricas se entrelaçam verticalmente, criando padrão repetitivo.
Lívia Serri Francoio/Instituto Serrapilheira

É nos maretórios que a Amazônia encontra o mar. Apesar de muitos associarem a região apenas à floresta densa e aos grandes rios, o bioma também se estende até o litoral, no Pará, onde exuberantes florestas de mangue marcam a transição entre terra e oceano. Árvores que podem chegar a 30 metros de altura —como Rhizophora mangleAvicennia germinans e Laguncularia racemosa— formam o ecossistema manguezal, berço de uma biodiversidade essencial à vida marinha e costeira.

Os manguezais da Amazônia, do Amapá ao Maranhão, compõem a maior faixa contínua desse ecossistema no mundo, com mais de 1 milhão de hectares. E há uma grandeza silenciosa nessa paisagem: enquanto uma floresta tropical de terra firme fixa entre 1 e 2 toneladas de carbono por hectare ao ano, os manguezais podem capturar até 21 vezes mais carbono da atmosfera. É um serviço ambiental de proporções planetárias.

Mas os manguezais são também maretórios de gente como Dona Edite Maria, Seu Bebeto, Seu Bulau e o mestre Manoel Ramos, da Reserva Extrativista (Resex) Caeté-Taperaçu. No litoral do Pará, centenas de comunidades tradicionais dependem diretamente desse ambiente para viver. A pesca artesanal do caranguejo-uçá (Ucides cordatus), por exemplo, garante alimento, renda e segurança alimentar a milhares de famílias, estruturando redes de solidariedade e a economia local.

Essa íntima relação entre natureza e cultura está na base das Reservas Extrativistas Marinhas —unidades de conservação de uso sustentável que protegem tanto o ambiente quanto os modos de vida tradicionais. Desde 2001, quando a primeira Resex Marinha foi criada em Soure, no Marajó, o litoral paraense passou a abrigar 14 unidades desta modalidade, somando mais de 341 mil hectares de áreas protegidas.

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Essas histórias ganharam registros na quarta temporada —"Maretórios do Futuro"— do podcast Mexericos na Marédisponível nos principais agregadores de áudio. O podcast é produzido por estudantes de Bragança/PA do Instituto Federal do Pará (IFPA) e da Universidade Federal do Pará (UFPA) e vem ampliando as vozes da Amazônia Atlântica.

Mexericos na Maré conquistou o 2º lugar do Prêmio José Reis de Divulgação Científica e Tecnológica 2025 na edição especial dedicada à COP30. Concedido pelo CNPq em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, é o mais importante prêmio do país na área da popularização da ciência. Um reconhecimento de que na Amazônia se faz ciência, cultura e transformação.