quinta-feira, 16 de outubro de 2025

A bagagem de mão, Alexandre Marcos Pereira - APMP

 Não viajo com malas pesadas. Aprendi a levar comigo apenas o essencial: um bom livro, um caderno que recebe rabiscos como quem recolhe conchas na beira do mar, e a fome — não só de comida, mas de histórias, imagens, sabores e gente. O resto eu despacho para o porão do tempo.

Tenho por profissão o exercício do cargo de Procurador de Justiça, o que muito me orgulha. Mas, depois da justiça, também procuro beleza. Às vezes a encontro numa sessão tardia de cinema, quando o salão está quase vazio e a luz da tela recorta o silêncio com cenas que me lembram que a vida é, no fundo, uma montagem paciente. Outras vezes, a beleza me surpreende num prato que desconheço, servido numa viela de uma cidade onde nunca estive; ou na conversa que começa com uma observação sobre o vinho e termina com confissões sobre perdas, filhos, amores que não deram certo — e os que, por teimosia, deram.

Carrego minha biblioteca como quem leva um passaporte. Ela não precisa de estantes; cabe em aeroportos, cafés, salas de espera, quartos de hotel com vista para o imprevisto. Não coleciono apenas passagens aéreas, coleciono passagens de livros: trechos que me fazem parar, respirar fundo e admitir, num sorriso discreto: “aqui estou eu, visto por outro.” Quando Joaquim Maria Machado de Assis, por exemplo, me sussurra ironias de bolso, eu rio sozinho; quando um poeta me explica a noite com meia dúzia de palavras, releio para ver se a lâmina ainda corta.

Viajo para encontrar. É claro que mudar de paisagem ajuda, mas o que me move é a curiosidade: o pão de fermentação lenta de um padeiro orgulhoso do bairro; a explicação de um taxista sobre as ruas que não existiam no mapa da infância dele; a maneira como uma cozinheira gira a frigideira como quem está escrevendo uma carta que só o fogo entende. Quanto mais provo, mais respeito os mundos que não conheço. Quanto mais escuto, mais acredito que a língua de um povo cabe, inteira, num gesto de hospitalidade.

Tenho o hábito de caminhar sem pressa. Gosto de me perder em ruas que não pedi e de me sentar em mesas que não escolhi. Vejo nisso uma ética: doar ao acaso o direito de me mostrar o que eu não veria se tivesse pressa. E quando encontro um restaurante escondido — desses em que a música não compete com a conversa —sinto que ganhei uma amizade. Nenhuma sobremesa me comove tanto quanto o brinde entre desconhecidos que viram conhecidos em meia hora.

No trabalho, faço perguntas que pesam; na vida, aceito respostas que dançam. Descobri que o paladar também tem jurisprudência: a primeira garfada julga, a

segunda revisa, a terceira, se for boa, cria precedente. E há filmes que funcionam como voto vencido: saio discordando deles, mas dias depois me encontro citando sua tese, convencido de que mudaram algo em mim.

Gosto de pessoas interessantes. Não as confundo com as que falam alto. Interessa-me quem lê o mundo antes de comentá-lo; quem cozinha com as mãos e escuta com os olhos; quem aceita a contradição como parte do tempero. Gente com quem eu possa construir memórias e, sobretudo, silêncios compartilhados. Tenho aprendido que a conversa mais profunda, às vezes, é feita de pausas bem colocadas.

Levo um caderno por disciplina. Nele anoto um cheiro de café que me seguiu por três quadras, a frase de um garçom que daria título a um conto, o nome de uma uva que não conhecia, a hora em que um filme me quebrou por dentro, o endereço de uma livraria onde comprei o mesmo livro pela terceira vez — por pura teimosia, ou por saber que certos livros nos escolhem de novo quando mudamos de pele.

Se me perguntam o que procuro, respondo sem rodeios: procuro beleza que faça sentido. Não uma beleza decorativa, mas a que reorganiza o dia por dentro. Às vezes ela aparece na forma de um prato simples, perfeito como um argumento claro. Às vezes vem numa fala de cinema tão precisa que parece sentença. Outras, num aceno tímido de alguém que entende que a vida é frágil e, por isso mesmo, merece ser celebrada.

Não sou um fugitivo; sou um buscador. Viajo com o coração ancorado no instante. Aprendi que o melhor dos roteiros aceita desvios; que a mesa certa pode ser a que sobrou; que uma rua lateral pode nos entregar o capítulo que faltava. E quando encontro um lugar que me acolhe — uma trattoria pequena, um bar antigo, um café com cadeiras desalinhadas —, agradeço como quem reconhece a própria casa numa cidade estrangeira.

Carrego cicatrizes discretas, algumas tatuadas em filmes, outras temperadas em molhos que levam horas, outras ainda sublinhadas em páginas amareladas. Não renuncio a nenhuma: é no conjunto que me reencontro. E sigo, livro na mão, garfo pronto, olhar aberto. Sei que em alguma esquina alguém está prestes a me contar uma história que eu não sabia que precisava ouvir. Sei também que, ao final do dia, terei fome — de outra história, outro prato, outro rosto.

Sou procurador, sim. E, se me permitem o trocadilho, continuo a procurar. Justiça e beleza não raras vezes coincidem — quando um prato respeita seu ingrediente, quando um filme honra seus personagens, quando uma conversa trata o outro como quem merece atenção. Nesses momentos, o mundo parece alinhar talheres invisíveis sobre a mesa do acaso, e eu me sento.

Talvez seja esse o meu segredo: viver como quem está sempre de partida, mas cultivar o dom de chegar. Não ao destino que o aplicativo calcula, mas ao que a vida oferece quando a gente desacelera um pouco. A verdadeira viagem, eu sei, acontece quando os livros nos escolhem de novo, os filmes nos devolvem perguntas melhores, a comida nos ensina paciência e as pessoas interessantes — sempre elas — transformam o cotidiano num lugar onde vale a pena morar.

Enquanto isso, sigo com minha bagagem de mão: um livro, um caderno, a fome boa. E um espaço reservado, sempre, para o próximo encontro.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Caixa emprega ex-mulher de ministro do STF, filha de deputado, advogado de Lira e irmão de prefeito, FSP

 Lucas Marchesini

Brasília

O presidente da Caixa Econômica Federal emprega como assessores diretos a filha de um deputado federal do centrão, o irmão de um prefeito, a ex-mulher de um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e um advogado do deputado federal Arthur Lira (PP-AL), seu padrinho político.

A lista de assessores de Carlos Vieira na presidência do banco estatal foi obtida pela Folha a partir de um pedido enviado ao banco via LAI (Lei de Acesso à Informação) em 9 de maio. A resposta só foi entregue em 22 de setembro, após determinação da CGU (Controladoria-Geral da União).

Homem de cabelos grisalhos veste terno escuro e ajusta a gravata em ambiente com fundo desfocado que sugere palco ou evento
O presidente da Caixa, Carlos Vieira, em sua cerimônia de posse em novembro de 2023 - Pedro Ladeira-9.nov.2023/Folhapress

A relação entregue pelo banco traz apenas o nome dos 15 assessores da presidência que não são servidores do banco. A reportagem perguntou à Caixa o valor do salário, mas não houve resposta. Segundo funcionários, consultores da presidência recebem quase R$ 40 mil por mês.

Durante mais de quatro meses, a estatal resistiu a divulgar as informações alegando ameaça à segurança física dos assessores e risco concorrencial, por meio de eventual assédio de competidores aos auxiliares de Vieira.

Para a CGU, os argumentos não são válidos. "Eventuais riscos [físicos] identificados devem ser enfrentados por medidas de segurança institucional, e não pela restrição de acesso", apontou.

Sobre a questão concorrencial, o órgão de controle afirmou que "é um risco inerente à dinâmica de mercado" e que a própria Caixa "já disponibiliza publicamente, em seu portal, informações sobre seus dirigentes e altos gestores, categoria inclusive mais exposta a abordagens externas".

"A relevância pública da informação é inequívoca: conhecer quem ocupa funções de assessoramento à presidência de uma empresa pública federal é essencial para assegurar a transparência e permitir o controle social sobre a utilização de cargos considerados estratégicos", disse a CGU.

Um desses assessores ligados a políticos foi demitido na sexta (10), em resposta à derrota na Câmara dos Deputados da medida provisória de aumento de impostos, com a qual o governo esperava abrir um espaço fiscal no ano em que o presidente Lula (PT) deve tentar a reeleição. José Trabulo Junior, indicado pelo presidente do PP, Ciro Nogueira, era consultor de Vieira na presidência.

O senador, apesar da indicação, cobra em público a saída do PP do governo Lula (PT) e se articula para tentar ser o vice do candidato da direita ao Planalto nas próximas eleições. Em nota divulgada para anunciar punição a André Fufuca (PP) pela decisão de continuar no Ministério do Esporte, Nogueira afirmou não nutrir "qualquer identificação ideológica ou programática" com o petista.

Também na sexta, a Caixa destituiu um aliado do vice-presidente da Câmara, Altineu Côrtes (PL-RJ). Rodrigo de Lemos Lopes ocupava a Vice-Presidência de Sustentabilidade e Cidadania Digita. Côrtes foi líder do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas mesmo assim mantinha um indicado no alto escalão da estatal.

Entre os assessores contratados diretamente pela presidência está a ex-esposa do ministro do STF Kassio Nunes Marques, a economista Maria Socorro Mendonça Carvalho Marques.

Ela passou por diversos gabinetes do Senado. Até o começo de 2023, foi assessora parlamentar júnior do ex-senador Elmano Férrer (PP-PI). Maria Socorro foi nomeada na Caixa em 26 de dezembro do mesmo ano, cerca de um mês e meio após a posse de Vieira.

A lista de consultores também traz o nome da advogada Mayara Santiago, filha do deputado federal Wilson Santiago (Republicanos-PB), conterrâneo de Vieira. Ela chegou ao cargo em 11 de dezembro de 2023.

Santiago é próximo do presidente da Câmara, o também paraibano Hugo Motta (Republicanos-PB). Ambos já compartilharam diversos funcionários em seus gabinetes. Procurado, Santiago não respondeu.

Questionada sobre os nomes, a Caixa afirmou que "a designação de consultores obedece às normas internas e aos ritos de governança, compliance e integridade da instituição".

"O banco adota rígidos mecanismos para identificar possíveis conflitos de interesse entre seus empregados e colaboradores, assegurando a conformidade com as normas e valores que regem a organização", acrescentou.

Outros dois nomes que aparecem na lista já tinham sido revelados pela FolhaO médico João Antônio Holanda Caldas foi nomeado em 2 de fevereiro de 2024. Ele é irmão do prefeito de Maceió, João Henrique Caldas (PL), o JHC, e filho da senadora Dra. Eudócia (PL-AL).

João Antônio Holanda Caldas foi deputado federal pelo Pros durante cinco meses, depois de ser eleito suplente nas eleições de 2018 pelo estado da Bahia. Ele voltou a disputar as eleições em 2022 pelo PSB de Alagoas, mas não se elegeu.

Questionada em junho, a Caixa citou a passagem de João Antônio pela Câmara dos Deputados para justificar a contratação.

"O cargo tem entre suas diversas atribuições [...] o acompanhamento do cenário econômico, político, legislativo e social para auxiliar a alta gestão na tomada de decisões. Vale destacar que o consultor João Antônio Holanda já exerceu mandato de deputado", afirmou.

Também integra a relação de assessores o advogado Luiz Maurício Carvalho e Silva. Ele está no cargo desde 20 de setembro de 2024. O advogado defende Lira em um imbróglio com posseiros sobre terras não declaradas em Pernambuco e já representou a mãe do deputado em outro processo. O advogado e Lira não responderam aos questionamentos da Folha.

Vieira foi indicado para a presidência da Caixa por Lira no fim de 2023. Desde então, os cargos do banco têm sido divididos entre partidos do centrão e da direita, como o PP, o Republicanos e o PL.

Veja a lista completa

ASSESSORES DA PRESIDÊNCIA DA CAIXADATA DA NOMEAÇÃO
Ana Miguel Teixeira da Silva06/11/2024
Fabiano Pereira Cortes18/03/2024
Hellen Falcão de Carvalho10/11/2023
João Antônio Holanda Caldas02/02/2024
José Jesus Trabulo de Sousa JuniorDemitido sexta (10)
Luiz Maurício Carvalho e Silva20/09/2024
Maria Salete Cavalcanti31/10/2023
Maria Socorro Mendonça Carvalho Marques26/12/2023
Marina Selerges20/12/2023
Mauro Borges Lemos13/02/2023
Mayara Raissa Alves de Oliveira Santiago11/12/2023
Renato Nardoni20/11/2023
Roberto Barros Barreto10/03/2023
Valoni Adriano Procópio10/03/2023

terça-feira, 14 de outubro de 2025

João Pereira Coutinho - Cinema-verdade, FSP

 1. Confesso: sinto inveja dos brasileiros. Quem me dera estar presente no dia da abertura da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo para assistir, em estado puro, ao filme "Sirât", de Oliver Laxe. É um dos melhores filmes do ano —talvez da década— por ser também o mais arriscado e selvagem que me lembro de contemplar.

Estamos no Marrocos, no deserto, esse lugar de místicos e renegados. A multidão dança, em transe, ao som de música eletrônica. Duas figuras inusitadas surgem na paisagem: Luís e seu filho Esteban. Procuram a filha e irmã, desaparecida numa das raves do deserto.

Espalham cópias da foto da moça, mas ninguém viu, ninguém sabe. Um grupo de ravers sugere: talvez ela esteja mais ao sul, perto da fronteira com a Mauritânia, onde haverá outra festa. Os olhos de Luís e do filho se animam ao saber que o grupo se dirige para lá. "Podemos ir com vocês?", pergunta o pai.

O grupo hesita: o deserto é o deserto —perigoso, impiedoso. O carro de Luís é frágil demais para a vastidão. Ele insiste. O filho também. E partem. É o início de um road movie trágico e espiritual que levará os viajantes aos limites do humano.

Disse "trágico" e "espiritual" porque ambos se complementam.

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A sensibilidade contemporânea expulsou a tragédia das nossas vidas. Se tudo depende apenas da nossa vontade, a "tirania da contingência" torna-se um conceito vago —e desnecessariamente cruel. Somos filhos do Iluminismo, mesmo que nos pensemos pós-modernos: a razão pode ser falível, mas isso não significa entregar o jogo ao acaso.

Nossos antepassados discordavam. A tragédia era inerente à condição humana e tinha uma função: lembrar aos presentes como os confortos da civilização são frágeis. E que a verdadeira iluminação acontece quando aprendemos que não controlamos coisa alguma.

Será este o destino do grupo: saber que não controla nada. Uma experiência em que o absurdo, o grotesco e o risível se unem, e os viajantes atravessam o seu próprio "Sirat" —essa ponte "mais fina que um fio de cabelo e mais afiada que uma espada", suspensa sobre o inferno, com acesso ao paraíso.

É essa travessia, entre o desespero e a redenção, que revela o lado salvífico da insignificância.

Se você estiver em São Paulo nesta quinta-feira, nem hesite.

"Annie Hall, personagem-título do filme de Woody Allen, interpretada pela recém-falecida atriz Diane Keaton."
Angelo Abu/Folhapress

2. Morreu Diane Keaton, aos 79 anos. Estranho isso. Eu não sabia que Diane Keaton era mortal. Para mim, nunca foi —e a culpa é de Woody Allen. Quando ele a escolheu para "Annie Hall" [no Brasil, "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa"], sua intenção era que o público pudesse ver Keaton exatamente como Woody a via —e se apaixonasse por ela como ele se apaixonou anos antes.

Missão cumprida, Woody: quando assisti ao filme pela primeira vez —devia ter 14, talvez 15 anos— caí de quatro por Diane Keaton. A beleza era óbvia, mas eu já sabia disso desde "O Poderoso Chefão", quando ela surge como a mulher (e mártir) de Michael Corleone.

O que eu não sabia é que uma beleza assim também podia ser habitada pela inteligência, pelo humor, pelo desvario —e por um guarda-roupa que parecia uma mistura de Ralph Lauren com Peaky Blinders.

Era um adolescente, mas o arquétipo feminino ficou —e voltou em "Manhattan", na espantosa sequência em que a sua personagem, Mary, visita o planetário de Nova York na companhia de Isaac (Woody "himself").

Diria ele mais tarde, recordando esse encontro: "Tive um impulso louco de te jogar na superfície lunar e cometer uma perversão interestelar com você". Quem o pode censurar? Marcel Proust —que não é exatamente um bom guia em matéria heterossexual— dizia que deveríamos deixar as mulheres bonitas para os homens sem imaginação.

Quase, Marcel, quase. A lição é outra: deixemos as mulheres insípidas, afetadas, namoradas de si mesmas (obrigado, Nelson Rodrigues), para os homens sem imaginação. A verdadeira mulher-troféu é singular, espirituosa, opinativa e cúmplice —capaz de encher uma vida de risos, lágrimas e daquele "la-di-da" que define a sofisticação descolada.

Woody Allen, em suas memórias, resumiu tudo na frase mais perfeita e justa sobre ela: se Huckleberry Finn fosse uma bela mulher, seria Diane Keaton. Touché!

Este é o único conselho que deixarei à descendência, assim que os hormônios do rapaz começarem a fazer estragos: encontre a sua Huckleberry Finn —e, se puder, não a perca por nada neste mundo.