terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Wilson Gomes -O país que existe desafiou certezas confortáveis e ilusões normativas em 2025, FSP

 Esta coluna de fechamento de 2025 é uma retrospectiva. Não dos fatos do ano, mas das preocupações que orientaram nossa navegação por eles —sobretudo daquelas ligadas à comunicação política e aos dilemas da democracia brasileira, searas em que me atrevo a opinar.

A ilustração mostra uma caixa de entomologia antiga, de madeira, vista de frente, com vários compartimentos internos.  Nos compartimentos centrais e inferiores, aparecem borboletas: seus corpos e asas são formados por rostos humanos espelhados, que se encaram com expressões tensas, desconfiadas e hostis. Cada borboleta está atravessada por um alfinete colorido — verde ou amarelo — que as fixa rigidamente à base, impedindo qualquer movimento. As faces parecem estar em confronto direto, sem espaço para afastamento ou diálogo. O fundo geral é amarelo intenso, contrastando com o tom envelhecido da caixa e com o branco das borboletas centrais. Fora da caixa, à direita, alguns alfinetes soltos estão espalhados, sugerem ainda tem possibilidades de fixar alguma que outra borboleta-humana. A ilustração de Ariel Severino evoca a ideia de pluralidade imobilizada: diferenças preservadas apenas como objetos de observação, classificadas e neutralizadas. As borboletas, símbolos de diversidade e transformação, aparecem aqui paralisadas, presas por mecanismos externos e incapazes de voar.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes - Ariel Severino/Folhapress

Ao longo dos meses, diferentes episódios, sob formas variadas, foram sendo lidos —noto agora— à luz de um mesmo campo de problemas: autoritarismo, radicalização eleitoral, crise do pluralismo e dificuldades crescentes de governar e disputar legitimidade em um ambiente polarizado.

Logo no início do ano, já era evidente que a comunicação política não seria um tema lateral, mas um teste da capacidade efetiva de governar sob ataque. A incapacidade do governo de antecipar crises, reagir rapidamente e disputar percepções —como no episódio do Pix— revelou vulnerabilidades profundas em sua comunicação. Ao mesmo tempo, a persistência do bolsonarismo indicava que a conquista do imaginário brasileiro pelos radicais não havia sido superada.

Fora do país, o quadro se repetia, com variações locais. Trump e a extrema direita europeia e sul-americana mostravam que não deveriam ser tratados como desvios exóticos ou acidentes históricos. Impunha-se a constatação incômoda de que o autoritarismo se tornara uma escolha política racional, com base social, estratégia definida e expectativas eleitorais concretas. Em 2025, abandonamos o choque com a eleição de líderes que desprezam normas civilizatórias e passamos a nos indagar por que parcelas expressivas do eleitorado desejam exatamente esse tipo de liderança.

Tornou-se necessário abandonar a simplificação. Não existe uma extrema direita única. Populistas de direita compartilham traços, mas diferem em estilo, relação com instituições, base social e grau de radicalização. Compreender essas diferenças não é exercício acadêmico, mas condição para avaliar os custos, os limites e as vulnerabilidades.

À medida que o ano avançava, a atenção foi se deslocando cada vez mais para dentro do campo democrático. Um problema passou a se destacar: a erosão do pluralismo. À direita e à esquerda, cresce a dificuldade de conviver com o dissenso como elemento legítimo da democracia. A tentação de doutrinar, reeducar ou silenciar o outro —em nome de valores tradicionais ou da justiça— torna-se recorrente. A política vai sendo empurrada para um registro moralizante, no qual verdades consideradas inegociáveis substituem a disputa entre projetos.

PUBLICIDADE

Nesse ponto, nos deparamos com as fragilidades democráticas da esquerda. Não por simetria fácil com a extrema direita, mas por um dilema próprio. Sempre que a igualdade social é colocada acima da igualdade política, das liberdades civis e do repúdio inequívoco ao autoritarismo, a credencial democrática se enfraquece. O apoio ou a complacência com ditaduras "amigas", a racialização da moralidade e a atribuição coletiva de culpa não são apenas incoerências normativas, mas passivos políticos com alto custo eleitoral.

Em paralelo, tornou-se impossível ignorar o autoengano progressista quanto à correlação de forças. Confundir influência em elites culturais, acadêmicas e jornalísticas com maioria social levou a uma leitura equivocada do país. O Brasil é, de fato, mais conservador, mais hostil ao identitarismo e menos indulgente com certos enquadramentos morais do que muitos imaginam. A extrema direita conseguiu até mesmo ocupar o imaginário da rebeldia, da contestação e da ruptura, apresentando-se como força antiortodoxa —ainda que, na prática, opere com métodos autoritários.

Ao final dessa travessia, uma linha se impõe: a democracia entrou numa fase em que já não basta ter razão normativa. É preciso compreender o terreno político concreto, os afetos dominantes, as expectativas frustradas e os limites reais da competição eleitoral. Autoritarismos de direita não crescem apenas porque mentem ou manipulam, mas porque oferecem diagnósticos, identidades e promessas que fazem sentido para sociedades inseguras e desconfiadas.

É com esse quadro que chegamos a 2026. Um ano eleitoral em que a disputa não será apenas por votos e programas, mas por interpretações da realidade e por quem consegue parecer mais legítimo e mais conectado ao país que existe —e não ao país que gostaríamos que existisse. Aos leitores que me acompanharam nessa navegação ao longo de 2025, e à própria democracia brasileira, fica o desejo de que o próximo ano traga mais lucidez, mais disposição ao dissenso civilizado e menos ilusões confortáveis. Um feliz Ano-Novo.


Delfim Netto questionou neoliberalismo na virada do século, FSP

 Delfim Netto questionou o neoliberalismo, dominante na virada do século. Em 2000, o economista que havia sido ministro durante a ditadura militar publicou na Folha uma reflexão sobre os limites do capitalismo: "O sistema capitalista deixa de ser funcional quando não há um relativo equilíbrio entre a liberdade, a igualdade e a eficiência produtiva".

O texto partia de uma constatação histórica sobre as utopias, de Thomas More a Karl Marx. Para Delfim, estava claro que "a eliminação da propriedade privada leva à ausência do mercado e à completa sujeição do indivíduo ao Estado". O dilema central era outro: "Como construir instituições que produzam relativa igualdade sem comprometer a eficiência produtiva e a liberdade dos cidadãos?".

Homem idoso com óculos e camisa listrada branca sentado em poltrona de couro marrom. Ao fundo, estante cheia de livros organizados por cores e tamanhos, sugerindo ambiente de escritório ou biblioteca.
O economista Antonio Delfim Netto - Karime Xavier - 5.fev.2013/Folhapress

Sua resposta era pragmática. "O processo democrático de resolver os conflitos (as urnas), combinado com o processo econômico que busca certa racionalidade (o mercado), parece constituir um mecanismo adaptativo eficiente", escreveu. Essa combinação permitia acomodar "três valores não inteiramente compatíveis: liberdade, igualdade e eficácia produtiva".

Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.

Democracia e Capitalismo (19/7/2000)

Quase todas as utopias (algumas muito pouco democráticas) fazem restrições à acumulação de riquezas. De Thomas More a Karl Marx, elas enxergaram na propriedade privada a origem da desigualdade.

O que hoje parece claro é que —de acordo com a crítica tão antiga quanto a ideia— a eliminação da propriedade privada leva à ausência do mercado e à completa sujeição do indivíduo ao Estado. A experiência soviética e de todos os seus satélites é exemplar a esse respeito.

A questão é: como construir instituições que produzam relativa igualdade sem comprometer a eficiência produtiva e a liberdade dos cidadãos? A história mostra que os regimes de economia centralizada tendem a sacrificar a eficiência produtiva e a liberdade em favor da igualdade econômica. Os regimes de economia descentralizada tendem a sacrificar a igualdade econômica em favor da eficiência e da liberdade.

A relação entre a desigualdade econômica e o crescimento é complexa. Temos três variáveis (desigualdade, crescimento e liberdade política) determinadas simultaneamente e que devem manter-se em relativo equilíbrio.

O problema da igualdade talvez seja o único ponto de sustância que hoje separa a "esquerda" da "direita", se é que essa classificação ainda faz algum sentido, pois, dependendo do ponto de vista, é claro que os homens são iguais e desiguais ao mesmo tempo.

O processo democrático de resolver os conflitos (as urnas), combinado com o processo econômico que busca certa racionalidade (o mercado), parece constituir um mecanismo adaptativo eficiente para coordenar as três variáveis. É por isso que essa combinação tem condições de sobreviver: pode ir compondo uma sociedade que vai acomodando, pragmaticamente, três valores não inteiramente compatíveis: liberdade, igualdade e eficácia produtiva.

O estudo da história mostra uma intrigante correlação entre a liberdade política, a liberdade econômica e o desenvolvimento material. A relação não parece ser de simples causalidade, mas de possibilidade. Cada vez que os indivíduos, nos seus múltiplos papéis (de consumidor, de trabalhador, de inventor, de empresário), viveram num mundo em que a ordem política, religiosa ou militar não tinham valor exclusivo e na qual a sociedade civil não era submetida à completa tutela de um Estado autoritário, eles tenderam a encontrar formas organizacionais que privilegiavam a busca da eficácia produtiva e a pesquisa de inovações tecnológicas que caracterizam o capitalismo.

Uma coisa parece certa: o sistema capitalista deixa de ser funcional quando não há um relativo equilíbrio entre a liberdade, a igualdade e a eficiência produtiva. É isso que coloca em dúvida a sobrevivência da política neoliberal, porque, para ela, a igualdade é de menor importância. O problema é que a busca da igualdade é uma constante na história do homem.