quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Sicofantas e tagarelas, Roberto Romano, OESP (2012) (definitivo)

 

A palavra é o maior valor ético na ordem pública. Graves atentados ao decoro político são cometidos por gestos e incontinências verbais. Segundo Spinoza, o respeito exige que os governantes sejam prudentes quando movem a língua e o corpo. Ele adverte: "O Estado, para garantir o próprio domínio, se obriga a manter as causas do temor e do respeito (...). Aos que assumem o poder público é proibido se exibir em plena embriaguez ou sem roupas na companhia de prostitutas, imitar os palhaços, violar ou desprezar abertamente as leis editadas por eles mesmos" (Tratado Político). Gestos ou palavras devem ser medidos na política.



ROBERTO ROMANO - FILÓSOFO, PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP); É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE 'O CALDEIRÃO DE MEDEIA' (PERSPECTIVA), O Estado de S.Paulo

21 de outubro de 2012 | 03h08

Quem não controla a fala por ela é dominado. A prudência requer disciplina e caráter. É árduo, diz Plutarco, "fazer dos dentes uma barreira sólida contra o dilúvio da língua". Usando termos da medicina, o teórico batiza a moléstia que acomete o falador como asingesia, a impossibilidade de manter silêncio. Ao piorar a doença, chega-se à diarréousi, a diarreia da boca (Sobre o Palavrório). As frases devem ser pesadas (a origem de "pensar" e "pesar" é comum). Caso oposto, elas aniquilam a sociedade. A ninguém é lícito ignorar a polidez, marca do convívio civil. Sem respeito pelas normas do pacto social, os líderes transformam os cidadãos em alcateia facínora cuja boca é usada para estraçalhar, nunca para exercer o diálogo.

Vejamos a semântica do termo "delator", aplicado pela mídia ao sr. Roberto Jefferson. A origem do termo é grega, como quase todos os vocábulos relevantes de nossa política e medicina. Hoje atravessamos uma crise inédita do Estado. O soberano não consegue exercer na plenitude os monopólios da ordem jurídica, dos impostos, da violência física. Preocupa a incerteza quanto aos limites dos Poderes. Há bom tempo se discute nos meios políticos, ideológicos, religiosos e financeiros a "judicialização" da vida pública, a hipertrofia do Judiciário (C. Neal Tate, The Global Expansion of Judicial Power, 1995).

Em Atenas não existia Ministério Público e nenhuma autoridade legal poderia entrar na Justiça em defesa dos interesses estatais. Cabia "a quem desejasse" (fórmula democrática instaurada por Sólon) o direito de falar em nome do Estado. Quem assim fazia se tornava parte do processo judicial em favor da "polis". Aqueles indivíduos agiam por amor à justiça? Já nos primórdios da vida democrática grega os magistrados desconfiaram dos interesses que movem os acusadores. Logo transformada em profissão, a atividade do sicofanta esmera-se na chantagem pecuniária (para responder em nome alheio a acusação ou renunciar a um processo perigoso para o acusado).

O mister de sicofanta, segundo C. R. Kennedy (citado por John Oscar Lofberg em Sycophancy in Athens, 1976), é "uma feliz mistura de chicaneiro, denunciador, processualista, apalpador, salafrário, mentiroso e caluniador. Ela supõe a calúnia, a conspiração, a acusação mentirosa, a litigância de má-fé, a ameaça de processos judiciais para extorquir dinheiro e, de modo geral, todos os recursos abusivos nos procedimentos legais com fins desonestos".

A inflação dos sicofantas ameaçava a democracia ateniense, pois dividia os cidadãos, enfraquecendo a solidariedade coletiva. Aristófanes dá o nome de "vespas" aos delatores, porque suas picadas molestam a paz coletiva. Embora sua existência se universalize, o delator é odiado. Como no inferno descrito por Sartre, sicofanta é sempre o outro (Catherine Darbo-Peschanski, Por um punhado de figos, judicialização moderna e sicofantismo antigo - in Pauline Schmitt Pantel: Athènes et le Politique).

No Direito Romano, quem denuncia pode funcionar como acusador. Caius permite que escravos delatem seus mestres, mas Claudius proíbe a prática e Galba a pune. Constantino veta a oitiva dos delatores e os condena à morte. No Digesto, a delação é tida como odiosa. Na ordem moderna, o delator aponta o crime, mas o acusador é o interessado em repará-lo buscando a justiça dos tribunais.

No século 18, era das Luzes, o problema apaixona pensadores e políticos. A Enciclopédia coordenada por Denis Diderot disseca o tema. Em verbete é dito que "denunciar, acusar, delatar são termos relativos ao mesmo ato por diferentes motivos. O estrito apego à lei parece motivar quem denuncia, um sentimento honrado ou gesto razoável de vingança, ou uma outra paixão, são marcas de quem acusa. No caso do delator a devoção baixa, mercenária ou servil, o prazer malicioso de fazer o mal aos outros, tudo pode ocorrer sem que ele receba benefícios em troca. Acreditamos que o delator atraiçoa; que o acusador é uma pessoa irritada; que o denunciante é alguém indignado. Embora as três figuras sejam odiosas para a opinião pública, o filósofo às vezes deve elogiar o denunciante e aprovar o acusador. O delator é sempre desprezível".

Temos aí o saber dos séculos contra Roberto Jefferson.

E a "tese" sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) como tribunal de exceção? A língua assim usada contra os juízes é imprudente. O delator indicou ações cometidas por ele e comparsas e foi sancionado negativamente. Os juízes do caso não agiram segundo os moldes do soberano "que decide sobre o estado de exceção". Defensores da Carta Magna, eles não se colocaram acima dela. Tal realidade represa a torrente de palavras e de insultos dirigidos contra os magistrados.

Exigir que todos sejam punidos de modo semelhante, sem discriminação partidária ou ideológica, é um avanço democrático. Nivelar instituições e malfeitores sinaliza o pior atraso político. Hoje é o mensalão petista. Amanhã, o tucano e quejandos. Mas todos os partidos dependem da justiça. Se um deles a recusa alegando "golpismo burguês", a quem apelar no futuro? Às Forças Armadas, às milícias, à guerrilha?

Prudência, senhores, recordem a lição de Fujimori.

Em decisão histórica, Argentina aprova direito de mulher decidir sobre aborto, FSP

 Sylvia Colombo

BUENOS AIRES

Após uma aguardada sessão que durou 12 horas, o Senado da Argentina aprovou, na madrugada desta quarta-feira (30), o direito de a mulher optar pelo aborto até a 14ª semana de gestação. A decisão histórica teve 38 votos a favor e 29 contra, além de 1 abstenção.

A comemoração do lado de fora do Congresso foi grande, com pulos, abraços e choro de alegria de feministas, que também soltaram fogos de artifício na cor verde, símbolo da luta pró-aborto.

Até então, o procedimento era permitido em caso de estupro ou risco de morte da mãe. Agora, a Argentina se torna o primeiro país grande da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez. Na região, a prática já era autorizada em Cuba, Guiana, Guiana Francesa, Uruguai, Porto Rico, na Cidade do México e no estado de Oaxaca —no México, esse tipo de legislação é decidido em nível regional.

Há dois anos, durante a gestão de Mauricio Macri, um presidente de centro-direita, projeto de lei semelhante foi derrotado no Senado por uma diferença de apenas sete votos. Agora, além de ter sido vitoriosa, a proposta era uma promessa de campanha do atual líder do país, Alberto Fernández, que certamente vai chancelar a decisão do Congresso.

"O aborto seguro, legal e gratuito é lei. Hoje somos uma sociedade melhor, que amplia direitos às mulheres e garante a saúde pública", escreveu o chefe de Estado argentino no Twitter.

Do lado de fora do Congresso, a multidão de apoiadores da legislação se empolgava com o final da jornada. Enquanto os favoráveis à legalização começavam a comemorar, os contrários seguiam cantando, rezando e agitando bandeiras argentinas. Mesmo antevendo a derrota, permaneceram no local, alguns inconformados, pedindo intervenção da Justiça e gritando que os senadores eram "assassinos".

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A sessão no Senado foi comandada por Cristina Kirchner, ex-presidente (2007-2015) e atual vice de Alberto Fernández. Cada parlamentar tinha de 10 a 15 minutos para discursar, o que fez com que a votação ocorresse apenas às 4h06 desta quarta, numa sessão que começou às 16h09 do dia anterior.

A proposta já havia sido aprovada pela Câmara de Deputados no dia 11. Assim como naquela ocasião, dois acampamentos —um "verde", cor adotada pelas favoráveis à liberação, e um "celeste", de contrários à aprovação— foram montados do lado de fora do Congresso para acompanhar a votação por telões.

Os grupos enfrentaram calor intenso. Às 17h desta terça, quando a concentração começou a ganhar força, a sensação térmica era de 35º C. No começo da noite, ainda estava acima dos 30º C.

"Aborto legal, no hospital", gritavam as "verdes". "É a quarta vez que acampo pelo aborto e pelas mulheres argentinas. Só saio daqui dançando", disse Carolina Benedit, 26, antes do resultado da votação. Ela disse ter chorado muito quando o Senado rejeitou a legalização do procedimento em 2018.

Do lado celeste, muitos levavam bandeiras argentinas e cartazes com dizeres contra o governo. Havia padres fazendo pregações, rodas de oração e um espaço do gramado foi usado para simular um pequeno cemitério, com cruzes fincadas. Havia, ainda, um grande feto de papelão com manchas de sangue.

Na manhã de terça (29), o papa Francisco, argentino, manifestou-se: "O filho de Deus nasceu descartado para nos dizer que toda pessoa descartada é um filho de Deus. Veio ao mundo como um bebê vem ao mundo, débil e frágil, para que possamos acolher nossas fragilidades com ternura".

Ao jornal argentino Clarín uma opositora que estava em frente ao Congresso, Sara de Avellaneda, disse que os contrários à legalização "não são invisíveis" e que "nem tudo é uma maré verde". Esta lei é inconstitucional e sua implementação não será fácil."

No começo da sessão, a projeção era de que a votação tivesse 34 votos a favor e 32 contra, com duas ausências —as do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999), que está hospitalizado em estado grave, e de José Alperovich, suspenso enquanto responde processo por assédio sexual.

Havia quatro parlamentares indecisos. Por volta das 18h30, um deles, a senadora Silvina García Larraburu, que havia votado contra a aprovação há dois anos, fez um discurso favorável ao projeto.

A partir daí, os "verdes" se animaram, enquanto aumentava a preocupação entre os "celestes". A frente da casa de García Larraburu logo encheu-se de manifestantes antiaborto. Depois, mais dois indecisos também indicaram voto a favor do projeto de lei, e a tendência de vitória da aprovação foi se fortalecendo.

Terminada a votação, muitas "verdes" permaneceram nas ruas até um temporal cair na manhã desta quarta (30). Algumas corriam, outras se abraçavam em grupos ou se reuniam em torno de aparelhos de música. Havia DJs tatuadas, que tinham tocado durante a noite e agora o faziam com mais animação.

As máscaras e o isolamento social para prevenir o coronavírus foram deixados de lado, justo num momento em que a curva de contágios em Buenos Aires voltou a subir. Questionadas, as manifestantes respondiam com "só hoje" ou "as mulheres continuaram apanhando ou sendo violadas na pandemia".

Havia as mais cautelosas, que usavam a máscara corretamente, acima do nariz, e tentavam manter a distância, mas a tarefa era impossível numa praça rodeada de prédios.

"Minha terceira vigília, mas valeu a pena", afirmou Natalie, 24, que acompanhou as votações em 2018 e no último dia 11, na Câmara. Com as amigas, a estudante de direito se refugiou em um café quando a chuva começou a cair. Sem mesas para todos, muitas manifestantes ficaram do lado de fora, tentando não molhar as medialunas ou seus chocolates quentes. Mas, àquela altura, já não se importavam.

"É lei, é lei, é lei", gritavam pelas ruas, assim como "abaixo o patriarcado, que vai cair, que vai cair".

Manifestantes antiaborto protestam contra projeto de lei que legaliza interrupção da gravidez durante votação no Senado
Manifestantes antiaborto protestam contra projeto de lei que legaliza interrupção da gravidez durante votação no Senado - Matias Baglietto/Reuters

A luta das mulheres argentinas pelo aborto ocorre há décadas, mas ganhou força em 2015, com a formação do grupo Ni Una Menos, que passou a organizar marchas e atos pelo fim da violência contra a mulher e por uma legislação que oferecesse o direito de interromper a gravidez por vontade própria.

"Depois de tantas tentativas e anos de luta que nos custaram sangue e vidas, hoje finalmente fizemos história. Hoje deixamos um lugar melhor para nossos filhos e filhas", disse Sandra Luján, uma psicóloga de 41 anos que participou da vigília ao lado de milhares de jovens com lenços verdes.

Durante a gestão de Cristina Kirchner, a proposta pró-aborto não avançou porque a então presidente era contrária à pauta. Em 2018, já senadora, no entanto, votou a favor da legislação.

Afirmou que havia mudado de ideia por ter sido convencida pelas meninas que via abraçando a causa nas ruas, em protesto, o que, diz ela, a fez pensar no futuro de suas netas.

O projeto de lei aprovado contempla, ainda, uma cláusula para evitar judicializações, que atrasam a decisão e podem inviabilizar a realização do procedimento. De acordo com a nova regra, o aborto deve ser feito em até 10 dias depois de o pedido ter sido feito pela requerente.

Médicos poderão alegar objeção de consciência, mas terão de reportar o caso ao hospital ou centro de saúde em que trabalham e transferir a paciente a uma unidade que faça o procedimento dentro do prazo.

Paralelamente, os senadores também aprovaram o projeto dos "Mil Dias", um conjunto de políticas de contenção e assistência financeira, médica e psicológica a mulheres mais pobres que desejem continuar com a gestação, mas não têm condições de manter a gravidez.​

O governo calcula que sejam realizados entre 370 mil e 520 mil abortos clandestinos por ano no país, cuja população é de 45 milhões de habitantes. Desde a restauração da democracia, em 1983, mais de 3.000 mulheres morreram devido a abortos realizados sem segurança.

A lei começará a vigorar quando for promulgada pelo Executivo. O presidente Alberto Fernández pretende fazer um evento público, provavelmente na semana que vem, para anunciá-la.

Há, porém, certa preocupação com a realizações do ato, devido ao aumento dos casos de coronavírus na Argentina, e especificamente em Buenos Aires nos últimos dias.

Com AFP e Reuters