segunda-feira, 7 de abril de 2025

No Trump day, uma conta que não faz sentido, Celso Rocha de Barros, FSP

 O Reino Unido tem muito o que comemorar. Afinal, desde que Donald Trump anunciou seu tarifaço na quarta-feira (2), o brexit deixou de ser o suicídio geopolítico mais idiota de um país rico nas últimas décadas.

Trump falou segurando uma tabela de boteco que listava, em uma coluna, o quanto cada país cobrava de tarifas dos produtos americanos; na outra, que tarifas os Estados Unidos, de agora em diante, passariam a cobrar deles.

Um homem está segurando um cartaz que apresenta uma tabela de tarifas recíprocas de vários países em relação aos Estados Unidos. O cartaz inclui os nomes dos países e as porcentagens de tarifas cobradas. Ao fundo, há uma bandeira americana.
O presidente dos Estados Unidos Donald Trump mostra a tabela com o seu tarifaço - Carlos Barria - 2.abr.25/Reuters

Logo ficou claro que os números na tabela de Trump não haviam sido calculados por economistas, mas sim extraídos por proctologistas.

Os números não eram as tarifas que cada país cobrava, mas o resultado de uma fórmula matemática que não está em livros de economia pelo mesmo motivo que a frase "Blagabuuuu!" não está em "Hamlet": é uma conta que não faz sentido. É só uma sobreposição aleatória de números relacionados a comércio internacional sem qualquer sentido econômico.

Os economistas não têm a menor ideia de onde Trump tirou a fórmula maluca, mas o pessoal de computação tem sua suspeita: ela é parecida com o que você obtém quando pergunta a uma dessas inteligências artificiais disponíveis para o grande público, como o ChatGPT: "Como resolver o problema do déficit comercial americano?".

Ou seja, nos próximos anos a economia mundial será regulada pelo equivalente daquelas imagens geradas por IA em que o sujeito tem um terceiro braço saindo da orelha.

Em décadas recentes, os Estados Unidos lideraram o projeto ideológico da globalização. Ficaram ricos com isso, pois têm uma economia altamente competitiva –o que explica suas tarifas baixas. A globalização permite que as grandes empresas americanas produzam onde for mais barato, com os insumos e a mão de obra que forem mais baratos. O atraso de um país como o Brasil, nas últimas décadas, se explica, em grande parte, porque não conseguimos nos inserir nessas cadeias produtivas internacionais.

Na quarta-feira, Trump contou uma história em que os EUA eram prósperos até o começo do século 20, quando não tinham imposto de renda, mas tinham tarifas altas. O fim das tarifas teria levado à crise de 1929 porque, sei lá, Blagabluuuuu. Após a crise, ainda segundo Trump, os EUA teriam tentado voltar com as tarifas, mas era tarde demais.

É tudo mentira. Na verdade, a retomada das tarifas depois da crise de 1929, conhecida como tarifa Smoot-Hawley, provocou uma corrida protecionista ao redor do mundo. Na opinião de 10 entre 10 especialistas, Smoot-Hawley agravou seriamente os efeitos da crise de 1929.

A revista The Economist chamou o tarifaço de quarta-feira de "o erro econômico mais profundo, danoso e desnecessário da era moderna". Todos os indicadores econômicos americanos desabaram após o anúncio. As grandes empresas americanas, cujas cadeias de produção estão espalhadas pelo mundo todo, perderam bilhões de dólares em valor de mercado. De maneira chocante, o valor do dólar caiu em um momento de turbulência global. Em geral, acontece o contrário.

O "Make Smoot-Hawley Great Again" de Trump vai deixar os americanos mais pobres e pode gerar uma nova crise mundial poucos anos depois do fim da pandemia. Mas pelo menos ninguém mais vai ter que aprender os pronomes certos dos trans.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Lancelot, Canterbury e Wickfield: nome de juiz acusado de falsificar identidade tira inspirações da literatura britânica, FSP

 Isadora Laviola

São Paulo

Um juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo, que exerceu a carreira por 23 anos com o nome de Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo sob suspeita de usar documentos falsos e cometer crime de falsidade ideológica.

O registro britânico escondia a alcunha de José Eduardo Franco dos Reis, numa história que quase parece ter tintas de ficção, inclusive pelos nomes escolhidos.

Um cavaleiro montado em um cavalo cinza, vestindo uma armadura decorada e um elmo, acena com a mão. Ao fundo, há várias bandeiras com desenhos medievais e um grupo de pessoas vestindo trajes históricos, algumas com chapéus. O cenário parece ser um evento ou festival medieval.
Espetáculo medieval entre cavaleiros no centro da Inglaterra, em julho de 2023 - OLI SCARFF/AFP

Os nomes usados pelo magistrado têm relação direta com a literatura inglesa. Lancelot, por exemplo, foi um dos cavaleiros da Távola Redonda. Segundo a lenda, Lancelot foi um dos mais gloriosos cavaleiros da corte do Rei Arthur.

Sir Kenneth Arthur Dodd foi um comediante e ator britânico, mas ele só recebeu o título nobre de Oficial da Ordem do Império Britânico em 1982, dois anos depois de o futuro juiz se matricular no curso de direito com, segundo o MP, nome falso.

Albert Lancelot Hoops foi um médico que também recebeu uma honraria do império, o título de Comandante da Ordem do Império Britânico, em 1931.

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Já Mr. Wickfield é um advogado em "David Copperfield", clássico de Charles Dickens. No livro, David conhece Mr. Wickfield quando criança, quando vai estudar na cidade britânica de Canterbury.

Canterbury também lembra "The Canterbury Tales" (os contos de Cantuária), coleção de histórias escritas no século 14 por Geoffrey Chaucer, tidas como pedras fundamentais da literatura da região.

Para Ana Luisa Lellis, crítica literária e mestre em literatura inglesa, o nome em questão parece uma mistura nomes de diferentes nobres com alcunhas aleatórias de personagens da ficção britânica. "Mr. Wickfield, por exemplo, é um personagem fraco, alcoólatra e que atormentava a filha, então não é alguém que qualquer um deveria almejar ser", afirma.

A identidade original de Reis, diz o MP, veio à tona após ele comparecer a uma unidade do Poupatempo em São Paulo para obter uma segunda via de seu RG com o sobrenome Wickfield, mas suas impressões digitais revelaram seu verdadeiro nome.

O Ministério Público de São Paulo o acusa de ter usado uma identidade falsa para se formar em Direito, ingressar no Tribunal de Justiça paulista por meio de concurso e até se aposentar.

A reportagem não conseguiu contato com o magistrado. Em depoimento à polícia, Reis declarou que Edward Wickfield é seu irmão gêmeo, que teria sido doado a outra família durante a infância.

Luiz Eugênio Mello Zama-zamas, nem-nems e afins, FSP (definitivo)

 

Luiz Eugênio Mello

Diretor de Pesquisa e Inovação do Idor - Instituto D'OR de Pesquisa e Ensino

Dados do Banco Mundial indicam que em 2023 quase 50% dos adultos jovens (entre 15 e 25 anos) na África do Sul estavam desempregados. Situações catastróficas como essa não são exclusivas daquele país e, de certa forma, se reproduzem nas periferias de grandes centros urbanos, incluindo o Brasil.

A miséria associada a essa condição, na África do Sul, produziu os zama-zamas, palavra derivada do zulu que significa "aqueles que tentam a sua sorte". Por tentar a sua sorte entenda-se descer nos túneis de minas abandonadas. Por tentar a sua sorte entenda-se descer até 3 ou 4 km abaixo da superfície da Terra para tentar achar alguma coisa de valor. Se para nós, no Brasil, a imagem do formigueiro humano de Serra Pelada na década de 1980 é ainda viva, para as pessoas na África do Sul essa realidade se dá nos dias de hoje.

Policiais inspecionam mina onde centenas de mineiros ilegais se esconderam após a polícia cortar comida e água contra mineiros ilegais, em Stilfontein, África do Sul - Ihsaan Haffejee - 15.nov.24/Reuters

Privado de uma perspectiva de futuro, o ser humano busca a sua própria sorte. Corre o risco de morrer soterrado, morrer sem ar, sem água ou sem comida, pela remota chance de tirar a sorte grande. Na África do Sul, o governo teve que cortar o acesso de suprimentos e bloquear as minas para impedir que as pessoas continuem entrando nesses lugares. A retirada das mais de 4.000 pessoas desses buracos profundos é ainda um desafio para o governo.

Não dá muito consolo saber que por aqui o principal contingente é o dos nem-nems. Podemos não ter os zama-zamas, ou até temos sem denominações equivalentes, mas temos um gigantesco contingente de jovens sem alento, subeducados e sem perspectiva de trabalho. Qualificar essa importante fração da sociedade é fundamental. Poder oferecer postos de trabalho dignos depende não apenas de prover educação adequada, mas de termos uma economia dinâmica e moderna.

Nessa linha, o corte, o contingenciamento, a reserva de contingenciamento ou qualquer que seja o eufemismo usado para nomear o potencial não repasse de recursos ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) terá impacto devastador.

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Investir em educação, ciência e tecnologia é o caminho para o futuro de qualquer país. Em anos recentes, cresceu no Brasil o número de doutores e o número de instituições de C&T, que passou a incluir também as privadas e não confessionais (por exemplo, Idor e Insper), antes quase inexistentes no Brasil. A lógica do suporte do Estado é o que permitiu ao Brasil ter a Embraer, a Vale e a Petrobras, cada uma líder em sua área de atuação. Nenhuma dessas empresas seria líder sem muita pesquisa, sem uma profunda inter-relação com a academia, a pesquisa que ali se faz e as pessoas que ali se formam.

Deixar de investir em ciência e em educação é o caminho certo para o empobrecimento do país e a sua condenação a um eterno berço esplêndido do qual nunca levantaremos e que mais começa a parecer um leito de morte. A presença do investimento público é um elemento central na criação e no estímulo ao investimento privado.

O governo federal acertou grandemente quando criou a Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial) e alavancou a pesquisa e o desenvolvimento de empresas de todos os portes. O governo de São Paulo, décadas atrás, fez um golaço quando criou a Fapesp, que é o mais importante pilar da ciência feita nesse estado. A própria Fapesp, com o programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), contribui ativamente para esse círculo virtuoso de apoio à ciência, à tecnologia e ao empreendedorismo.

O controle de gastos do Estado é pilar fundamental para o equilíbrio das contas públicas. Agora, cortar os investimentos provenientes do FNDCT que não impactam o cumprimento do arcabouço fiscal nem oneram o orçamento federal, é um absurdo. É difícil encontrar uma metáfora adequada para essa insensatez.

Cortar o FNDCT, como vem se aventando nas últimas semanas, é o caminho certo para ampliar os nem-nens e transformá-los em zama-zamas.

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