quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Quanto o STF custa para o SUS?, Conrado Hubner Mendes, FSP

 

É fundamental calcular quanto a ação e a omissão do Supremo tiram da saúde pública

O STF se fez casa lotérica e menospreza urgências constitucionais do país. O presidente do STF se comporta como dono da pauta, e dono não presta contas. Cada ministro engaveta os processos que deseja, e dono de gaveta não presta contas. Nenhuma regra liberou esse autoempoderamento. O STF diz querer se modernizar, mas pouca coisa é mais pré-moderna que autoempoderamento.

A arbitrariedade do STF bagunça o Estado de Direito e custa caro. “Custar caro” não é frase de efeito. Alguns custos são intangíveis, como o sofrimento produzido por violação contínua de direitos à espera do ar da graça do STF. A demora em descriminalizar porte de drogas, por exemplo, alimenta a espiral do encarceramento fútil e dá preciosa ajuda logística ao crime organizado. Está na gaveta de ministro. Há anos.

Outros custos são tangíveis em termos financeiros. Devíamos nos habituar a esse cálculo. O campo do direito à saúde é fértil. Calcular quanto o STF custa para o SUS exige observar tanto suas decisões quanto suas não decisões.

Já se pesquisaram bastante os efeitos de decisões do STF sobre saúde. Com base na doutrina da “saúde não tem preço”, o STF interfere na alocação de recursos do SUS e concede tratamentos que não passaram por juízo técnico de custo-efetividade. Decisões judiciais bem intencionadas, sem atentar para a desorganização orçamentária que causam, nem sempre contribuem para promoção eficaz da saúde. E ainda deslegitimam o SUS.

Estima-se que a judicialização da saúde no Brasil custe R$ 7 bilhões ao ano, boa parte com tratamentos considerados ineficazes por gestores do SUS, como mostra Octavio Ferraz em livro novo sobre o tema (“Health as a Human Right”, Cambridge University Press, 2020).

As não decisões do STF também custam. Provam que a jurisprudência do “quem tem doença tem pressa”, como diz Cármen Lúcia, resume-se a palavras sem compromisso. Pressa nunca foi um vício do STF. Muito menos uma virtude.

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Gilmar Mendes engavetou caso de 2007 que pode racionalizar a judicialização da saúde no país (RE 566471). O plenário decidiu o recurso em 2020, mas ainda não produziu “tese” para orientar tribunais inferiores. O STF também levou 20 anos para entender que planos de saúde devem reembolsar o SUS por tratamentos de seus clientes na rede pública (ADI 1931). A restrição do teto de gastos sobre o SUS continua na gaveta de Rosa Weber (ADI 5680).

Há dois casos graves sobre propriedade intelectual que ainda não tocaram o senso de pressa do STF (ADI 4234, de 2009, e ADI 5529, de 2016). Tratam da constitucionalidade da duração de patentes no Brasil, regra que aumenta o custo dos remédios adquiridos pelo SUS. Estudo da UFRJ concluiu que o SUS gasta, por ano, apenas com nove medicamentos de alto custo protegidos por patentes, R$ 3,7 bilhões a mais.

Luiz Fux participou de evento privado com advogados interessados na causa. Disse que era “expositor em abstrato, para não antecipar ponto de vista”. “Coincidentemente, sou relator da ação.” Revelou que iria levar a relatoria com ele para a presidência do STF, pois o caso seria a “joia da coroa do Supremo” e fascinaria seu “pendor da academia”. No final, não cumpriu a promessa e deixou a joia para relatoria de Toffoli. A história recomeça na “pressa” toffolesa.

O SUS, cronicamente sub-financiado, consegue atenuar a tragédia da desigualdade na crise sanitária e se confirma como nosso maior patrimônio humanitário. Não só porque 80% da população brasileira recorre exclusivamente ao SUS, mas pelas externalidades que beneficiam os 20% restantes (que também usam o SUS para vacinações e serviços complexos como transplantes etc.).

Que o maior número possível de pessoas tenha saúde ajuda a tua saúde, não só tua consciência. Ajuda também a economia. As externalidades de um sistema de saúde público, universal e gratuito são incomensuráveis. A planilha de Paulo Guedes omite esse detalhe. O STF sequer elabora essa contabilidade moral e financeira que dá corpo e alma à cidadania igualitária.

O “compromisso para oferecer respostas robustas a um desarranjo que se alimenta da inércia”, como escreveu Fux dias atrás, soa como outra coisa.

As dívidas do STF com a Constituição não serão liquidadas com retórica demagógica. Muitas dessas dívidas continuam a repousar nas gavetas do tribunal, das peças mais caras no mobiliário político nacional. Seu silêncio e covardia têm preço. O SUS paga por isso.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

Elio Gaspari Os males do governo Bolsonaro são muita briga e poucos objetivos, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Às segundas, quartas e sextas o ministro Paulo Guedes briga com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Às terças, quintas e sábados, fazem as pazes.

Todo dia, Guedes briga com Rogério Marinho, seu colega do Desenvolvimento Regional. Insatisfeito com as brigas que arrumou, Ricardo Salles, do Meio Ambiente, insulta o chefe da Secretaria de Governo, general da reserva Luiz Eduardo Ramos. Do alto de sua erudição, num discurso em que se disse poeta e falou até em grego, o chanceler Ernesto Araújo disse ao mundo que "o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo, se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária". (Se o Brasil virou pária, isso nada tem a ver com o discurso da liberdade.)

Bolsonaro, o maestro dessa banda de música briga com governadores, vacinas e colaboradores.
Faz tempo, diante da anarquia do fim do governo de João Figueiredo, o general Golbery do Couto e Silva dizia que uma pessoa pode ir para a rodoviária parando em todos os guichês, pedindo um desconto na passagem. Podia até conseguir, mas não podia deixar de dizer para onde queria ir. Olhando o mesmo quadro, Tancredo Neves queixava-se: "Ninguém joga só embaralhando. Tem que dar carta a alguém, e o Figueiredo não está dando carta alguma. Está com todas na mão". (O tempo mostrou que o general não tinha mais carta e Tancredo foi eleito presidente em 1985.)

Ganha uma viagem à Pensilvânia quem souber que cartas Bolsonaro tem. Talvez nem se possa dizer que embaralha as cartas. Ele as rasga. Rasgou Gustavo BebiannoSergio Moro, Santos Cruz e Luiz Henrique Mandetta. Marcou a do general Eduardo Pazuello.

Admita-se que o capitão tem o objetivo de se reeleger, com o apoio do centrão e dos auxílios emergenciais. Para isso, precisaria que a eleição presidencial viesse rapidinho. Ela não virá, quem está a caminho é uma insegurança econômica bafejada pelo desequilíbrio fiscal. Com o emagrecimento da mística eleitoral que acompanhou sua vitória de 2018 resta-lhe a fidelidade do centrão. Se ele pudesse, deveria marcar um jantar com Dilma Rousseff, ela acreditou nessa fidelidade.

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Muita briga e poucos objetivos, os males do governo Bolsonaro são. Quem sabe onde foi parar aquele programa Pró-Brasil? Era pó e ao pó reverteu. Durante seu governo, o país foi infelicitado por uma pandemia que matou mais de 160 mil pessoas. Não foi ele quem trouxe o coronavírus, mas em oito meses de angústia dele não partiu uma só ação ou fala que contribuísse para a boa ordem sanitária. Ressalvem-se a rapidez e o alcance dos R$ 600 mensais que tiraram milhões de pessoas do caminho da fome. Essas medidas, contudo, não deram eficácia à cloroquina no combate à "gripezinha".

Amanhã completam-se 116 anos da criação, no Rio, da Liga contra a Vacina Obrigatória. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro quer liderar movimento parecido. Em 1904, muita gente boa, como Rui Barbosa, combatia a vacinação contra a varíola, que naquele ano mataria 4.000 pessoas na cidade. Em 1980 a OMS certificou a erradicação da doença. No governo de Rodrigues Alves o Brasil andou para a frente.

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".