terça-feira, 13 de outubro de 2020

É preciso temperar a democracia moderna com as virtudes da antiga, João Pereira Coutinho, FSP

 Existem duas formas de falar em democracia. A primeira é lembrar os poetas que deixaram páginas belíssimas sobre o governo do povo, para o povo e pelo povo.

A segunda é optar pelos realistas, que nos dão uma visão mais desencantada sobre o fenômeno. O cientista político David Stasavage pertence ao segundo grupo, e o seu mais recente livro, “The Decline and Rise of Democracy: A Global History from Antiquity to Today” (Princeton, 406 págs.), é um dos livros do ano.

Ilustração em tinta preta e vermelha com traços pesados ilustra imagens da antiguidade clássica
Abu

Li a obra de um fôlego só, assombrado pela inteligência do homem. Tese: se você pensa que a democracia nasceu na Grécia, foi refinada em Roma, desapareceu na Idade Média, reemergiu na Itália renascentista e foi reinventada pelos “pais fundadores” dos Estados Unidos, você está enganado.

Formas de “democracia primordial” (“early democracy”) encontram-se em variadas regiões, em variadas civilizações, e sempre pelo mesmo motivo: quem governa precisa de ajuda para governar. Precisa de dinheiro —e não é possível cobrar impostos sem o consentimento daqueles que estão dispostos a contribuir. Precisa de soldados —e não é possível ter exércitos sem o consentimento daqueles que estão dispostos a lutar.

A história da democracia é a história de uma troca: se o líder quer o meu dinheiro ou a minha coragem, eu tenho uma palavra a dizer sobre os destinos da comunidade.

Isso foi válido na Atenas do século 5 a.C. Mas também nas 13 colônias americanas do século 18 ou nos países europeus durante e depois da Primeira Guerra Mundial.

Mesmo o voto feminino se explica por um estado de necessidade: se os homens lutavam no front, era preciso que as mulheres ocupassem os postos de trabalho dos machos para salvar a economia. Com essa emancipação econômica, chegou a emancipação política.

Claro que nem todas as civilizações optaram pela via democrática. Muitas optaram pela via autocrática —e pelos motivos inversos: o poder central não precisava do consentimento dos súditos para nada. Com aparelhos burocráticos e repressivos mais avançados, era possível governar sem perder tempo com consultas ou negociações. O Big Brother observava e sabia tudo.

Essa, aliás, é a grande diferença entre a China e a Europa: a primeira, tecnologicamente mais refinada, conseguiu mapear os solos e as populações com assinalável precocidade histórica; a segunda, pelo menos até a era moderna, sempre se caracterizou por Estados fracos ou insuficientemente burocratizados, obrigando os seus líderes à negociação.

Como afirma David Stasavage com deliciosa ironia, foi o relativo atraso da Europa medieval que deu uma chance à democracia no Ocidente. Primeiro, ao permitir que ela sobrevivesse na sua forma primordial, feita de consulta e consentimento permanentes.

E, depois, ao permitir também a evolução da democracia primordial para a democracia moderna, nascida nos Estados Unidos. Qual a diferença?

Na democracia moderna, a consulta e a deliberação diretas foram substituidas pela representação política, até por motivos de extensão geográfica: votamos, elegemos os nossos representantes e são eles que decidem em nosso nome.

De certa forma, é nesse estágio que ainda nos encontramos. E se hoje sentimos que a democracia está em crise, isso se explica pelos dois elementos divergentes da democracia moderna: por um lado, a participação política é mais ampla do que na democracia primordial; por outro, essa participação é também mais episódica e pouco convincente. Alguém acredita mesmo que o seu voto é assim tão decisivo?

Sentimos que o poder está mais distante. Mas não só: sentimos também que o poder está mais poderoso —como se o líder, agora auxiliado pela mais avançada burocracia e tecnologia, já não precisasse de nós para nada. Exatamente como se fosse um autocrata.

O que isso gera é desconfiança e ressentimento —a mistura explosiva que o populismo explora. Curioso: o combustível do populismo político é real, e não ilusório, mesmo que as soluções populistas sejam ilusórias, e não reais.

Como resolver o impasse?

Concordo com David Stasavage: temperando as virtudes da democracia moderna com as virtudes da democracia antiga. Descentralizando, devolvendo poder aos cidadãos, limitando o poder de quem governa.

Se isso não acontecer, a história da democracia terá o mesmo fim que a história da autocracia. A única diferença é que demoramos mais tempo para lá chegar.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Alvaro Costa e Silva - Quando João Saldanha enfrentou Leonel Brizola, FSP

 Com a mesma sem cerimônia com que comentava futebol no rádio ou instruía jogadores da seleção brasileira à beira do gramado, João Saldanha respondeu ao convite do Partido Comunista, para que se candidatasse a prefeito do Rio, em 1985, dizendo que não tinha “um terno preto” para usar na campanha.

O terno preto era uma sutil estocada nos prefeitos anteriores, todos biônicos, como se dizia na época, empossados depois da fusão da Guanabara com o antigo Rio de Janeiro, em 1975 —a cidade do Rio passando a ser a capital do novo estado. Marcos Tamoyo, da Arena, foi disparado o pior deles, páreo duro com o atual Marcelo Crivella, mas este ainda leva muita vantagem.

“Eu não sou candidato. Até porque a lagoa é do estado, só o peixe podre é que é da prefeitura. O Theatro é Municipal, mas quem manda é o estado. Eu vou fazer o quê? Pegar o lixo? Eu não quero esse cargo”, disse Saldanha, cobrando mais autonomia para o município.

Pressionado por velhos companheiros do Partidão, ele aceitou ser o vice na chapa encabeçada por Marcelo Cerqueira, advogado de presos políticos: “Quero ajudar um bocadinho a provar que as forças da chamada esquerda podem se juntar”.

Mas as forças da esquerda não estavam tão unidas assim. A vontade de Cerqueira e Saldanha, da coligação PSB-PCB, era derrotar Saturnino Braga, do PDT brizolista, que acabou confirmando o favoritismo na eleição. Hoje impera o fogo amigo entre as candidaturas de Marta Rocha (PDT), Benedita da Silva (PT) e Renata Souza (PSOL), que juntas somam 21% das intenções de voto, segundo o Datafolha. O líder das pesquisas, Eduardo Paes, tem 30%.

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Quanto ao lixo, era uma blague de João Saldanha. Cuidar dele nunca foi um encargo menor, quanto mais numa metrópole. Crivella tornou-se inelegível, em decisão do TRE-RJ, porque sujou a Comlurb, a empresa de limpeza pública, praticando abuso de poder.

Alvaro Costa e Silva

Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".