domingo, 11 de outubro de 2020

Jorge Coli O espetáculo da briga, FSP

 Os etimologistas ensinam que o verbo discutir vem do latim discutere, cujo sentido primeiro seria sacudir. Pode também significar golpear, ou dispersar. São conteúdos expressivos que cabem no uso que fazemos hoje: a discussão abala porque é inflamada pelas paixões, porque pode derrubar certezas e transformá-las em pó.

As universidades medievais instituíram a discussão como sinônimo de exame, de apuração. Da discussão nasce a luz, ensina o ditado, e Diderot preferia ouvir bobagens sobre matérias importantes ao silêncio, porque o assunto torna-se assim o objeto de debate, e a verdade passa a ter uma chance.

Isso, digo eu, no caso da sinceridade de quem discute, quando não se tem vontade de manipular ou de se exibir, de vencer de qualquer jeito, de lacrar, como se diz hoje.

Retrato de Denis Diderot (1713-1784), filósofo, escritor francês e organizador da primeira "Enciclopédia". - Reprodução

A boa discussão é difícil. Exige de todos a dúvida sobre si mesmos, coisa muito desconfortável. O que chama a atenção é a “polêmica”, palavra contra a qual eu adquiri alergia por ser usada tanto, no mais das vezes pronunciada com um monte de lll: polllêmica. Nisso, o que interessa é o espetáculo da briga, não o seu resultado.

Não estou convencido, porém, que tudo possa, ou deva, ser posto em discussão. A terra: plana ou esférica? Bobagem perder tempo, e só um tolo, ou oportunista, diria que precisa estudar melhor a respeito para formar uma opinião. Racismo ou antissemitismo, homofobia ou violência contra mulheres são posições a serem combatidas, esmagadas, e não discutidas.

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Não se pode admitir que pais deixem de vacinar seus filhos; um debate a respeito seria como aceitar hoje o princípio de que, ao modo da Roma antiga, o pai possa matá-los se quiser, já que a lei da cidade não atravessa a porta da casa.

Há alguns anos, num jantar para o qual eu fora convidado, começou uma conversa sobre a mutilação genital das meninas. Deixei claro que qualquer defesa dessa prática é inadmissível. Eis que uma senhora, intelectual e culta, diz que eu, homem ocidental e branco, devia respeitar as diferenças culturais.

Uma jovem em seguida me olhou com comiseração, lançando em voz indulgente e piedosa: “Está vendo? As coisas são mais complicadas”. Não fui embora no mesmo instante por respeito à minha anfitriã; calei-me e, assim que possível, dei uma desculpa e parti. Nenhuma ginástica intelectual desmente a evidência contida no horror dessa prática.

Este domingo, 11 de outubro, foi escolhido pela ONU como o Dia Internacional da Menina. A data é reforçada por uma outra, específica, 6 de fevereiro, como Dia Internacional da Tolerância Zero para a Mutilação Genital Feminina. Mutilações que atingem cerca de 200 milhões (200 milhões!) de mulheres e garotas.

Hibo Wardere, ativista somali contra essa violação aos direitos humanos feita pelos pais, lembra que elas não são causadas por “maldade”. Claro que não. As razões são culturais, religiosas, mas nem por isso menos intoleráveis.

Tristemente, o El País conta que a delegação do Brasil, na ONU, aliou-se à ultraconservadora Arábia Saudita para vetar o termo “educação sexual” em uma resolução contra a discriminação de mulheres e meninas e impugnou a expressão “saúde sexual e reprodutiva” num texto proposto por países africanos para banir a mutilação genital feminina.

Há uma excelente série da Apple TV+, “The Morning Show”, estrelada por Jennifer Aniston e Reese Witherspoon, mais um bando de formidáveis atrizes e atores (entre eles, admirável, Gugu Mbatha-Raw). Séries e filmes militantes por causas sensíveis são simpáticos, mas com frequência pecam pelo simplismo maniqueísta.

Ao contrário, em “The Morning Show” a exposição da cultura deletéria que permite o assédio físico num meio profissional é feita com todos os matizes. Não que haja a defesa dos assediadores, longe disso. Mas não basta excluir um assediador: é importante terminar com a cultura que os engendra a todos.

As barbáries são movidas por convicções culturais amplas que desencadeiam ações individuais: é o racismo que engendra o racista e assim por diante. Não basta combater o indivíduo: cabe eliminar a atmosfera mefítica, corruptora, aquela que gerou e continua preservando as atitudes condenáveis.

Todos têm suas razões, dizia Jean Renoir em “A Regra do Jogo”. Parece-me essencial atingir a cultura ruim que produz as razões de cada um. Ir além das acusações, das indignações, para encontrar o melhor meio de sacudir, golpear, dispersar —como queria o primitivo sentido da palavra discussão— não apenas os frutos, mas as raízes do mal.

Jorge Coli

Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

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