segunda-feira, 16 de abril de 2018

Universo sem controle - EDITORIAL O GLOBO


O Globo - 16/04


Privatização deve ser feita não apenas devido ao Tesouro, mas também para a economia ser eficiente


Programas de privatização se constituem nervo exposto da esquerda. É assunto muito sensível e, por isso, inspirador de mitos. Um deles, que estatal é “empresa do povo”. Ora, só quando, para tapar rombos no Tesouro, abertos na injeção de dinheiro em estatais cronicamente deficitárias, o “povo” é convocado a pagar mais impostos.

Na vida real, as empresas públicas têm respondido é ao controle de corporações de funcionários e às rédeas do partido político no poder. Os 12 anos do lulopetismo no Planalto apresentam este aspecto didático: mostrar como aparelhos são montados dentro do Estado, uma forma tentacular de o grupo no poder controlar a máquina burocrática e estatais, fonte estratégica de recursos infindáveis. Pois são retirados do contribuinte por meio de impostos, contribuições, taxas de toda ordem etc.

Nos exemplos lulopetistas de como se drenam recursos públicos para projetos próprios de poder — e até pessoais, de enriquecimento —, o controle da Petrobras, a fim de, por meio de contratos feitos de forma generosamente superfaturada com empreiteiras amigas, é um modelo muito bem acabado do uso de estatais por interesses particulares. De partido, de grupos, de sindicatos, do que seja.

O uso descuidado de empresas públicas, como o feito na Eletrobras na gestão Dilma, força, ironicamente, a sua privatização. Pois a “decisão por vontade política”, tomada por Dilma, de intervir no sistema Eletrobras, por meio da MP 579, de 2012, e forçar subsidiárias da empresa a baixar as tarifas destruiu o equilíbrio financeiro da estatal, já há algum tempo sem condições de arcar com os pesados investimentos no setor. Não há outra alternativa saudável que a privatização.

Porém, a venda de estatais, no caso do Brasil, não deve ser feita apenas por razões de caixa — e éticas, como demonstra o escândalo histórico do petrolão, desvendado pela Lava-Jato. Mas muito também pela necessidade de se aumentarem a produtividade e a eficiência da economia. Num país, segundo dados do Ministério do Planejamento, em que há 150 estatais federais ativas, mas apenas 89 delas com orçamento próprio, sendo que todas as demais dependem do Tesouro, é evidente que há algo de muito errado. E há porque grupos políticos se beneficiam desta distorção, porque vivem como parasitas sugando o Tesouro por meio desses esqueletos de “empresas do povo".

A trancos e barrancos, o Brasil passa por transformações, e na democracia, o que permite debates amplos. Uma das mudanças é o ciclo que se vive de inflação baixa. Ele ajuda a deixar mais nítida a estrutura de gastos públicos. Fica, então, ainda mais à vista o desperdício de dinheiro do contribuinte com estatais inoperantes. É preciso que haja um programa de privatizações para valer. Também em nome do respeito ao dinheiro do contribuinte, já forçado a arcar com a carga tributária mais pesada no âmbito das nações emergentes (35% do PIB). O sorvedouro de estatais improdutivas é uma das causas.

ESTRADAS: A FACE OCULTA DAS “QUEDAS DE BARREIRAS”, artigo Alvaro Rodrigues dos Santos




Os enormes prejuízos econômicos e patrimoniais, as perdas de vidas humanas e os incríveis transtornos na vida de milhares de cidadãos por conseqüência das interrupções ou estrangulamentos de tráfego resultantes de “quedas de barreiras” em nossas estradas, têm já se tornado, desgraçadamente, fatos comuns e aguardados em nossos verões chuvosos. E, como tantas outras mazelas nacionais, destinados a ser digeridos no largo estômago brasileiro do esquecimento e da impunidade. É de extrema importância nacional que todos nos preocupemos em não permitir que a história continue assim a ser contada.
A terminologia mais jornalística “quedas de barreiras” envolve uma gama extensa de fenômenos geológico-geotécnicos, como escorregamentos em encostas naturais, rupturas de taludes de corte, rupturas de taludes de aterros, rompimento de aterros/barragens, rompimentos de cabeceiras de obras de arte, etc. Enfim, sugere sempre a idéia de movimentos de grandes massas de terra e /ou rochas.
É preciso ressaltar que a Engenharia Geotécnica brasileira (aquela que trabalha com obras envolvendo intervenções em terrenos naturais de solos e rochas), apoiada pelas informações e conhecimentos da Geologia de Engenharia (a Geologia que trabalha junto a todas as formas de intervenção do Homem nos terrenos – como as estradas, por exemplo), tem pleno domínio tecnológico para evitar ou reduzir a riscos mínimos a ocorrência de toda essa gama de fenômenos. Donde se conclui que esses seguidos desastres vêm ocorrendo, e anualmente aumentando a incidência de sua ocorrência, devido exclusivamente à não aplicação dos referidos conhecimentos tecnológicos. A não ser que resolvamos todos entrar em crise de ingenuidade e passar a acreditar nas manifestações de agentes públicos e privados envolvidos em algum tipo destes acidentes que, espertamente, saem sempre a  jogar sobre Deus ou sobre fatalidades da Natureza a responsabilidade pelas desgraças ocorridas.
No caso das estradas que atravessam regiões serranas tropicais, como a Serra do Mar, por exemplo, onde os escorregamentos são parte integrante de seu comportamento geológico natural, considere-se que até antes da Rodovia dos Imigrantes adotou-se generalizadamente a temerária concepção de estrada encaixada por cortes nas encostas. Essa concepção de projeto se mostrou desastrosa e ainda por muito tempo nossas estradas assim construídas – Via Anchieta, Rio-Santos, Via Dutra, Tamoios, Mogi-Bertioga, etc., vão pagar um alto preço pela imprudência tecnológica cometida. Com a construção da Rodovia dos Imigrantes, especialmente de sua pista descendente, foi implantado no país um novo paradigma de engenharia para obras viárias em regiões serranas tropicais. O expediente técnico utilizado para não se tocar nas encostas instáveis foi o privilegiamento de túneis e viadutos. Hoje, com o sucesso desse novo paradigma. não se pode aceitar que novas estradas na Serra do Mar, como as anunciadas duplicações da Via Dutra na Serra das Araras e da Rio-Santos venham a cometer os absurdos erros antigos, devendo, para tanto, também desenvolver-se basicamente em túneis e viadutos. Depois de muita resistência de seus contratantes e contratados, e por mérito exclusivo da pressão do meio técnico, a recentemente inaugurada duplicação da Rodovia Regis Bittencourt, na Serra do Cafezal (denominação local da Serra do Mar), Estado de São Paulo, adotou virtuosamente os novos ensinamentos, foi implantada com base na opção por túneis e viadutos.
Há ainda alguns outros fatores que ajudam a explicar nossas constantes “quedas de barreira”, como também outras deficiências técnicas de nosso sistema viário:
- no caso de obras novas, a busca do máximo lucro possível, quando então são dispensados, ou limitados ao máximo, os estudos e diagnósticos geológico-geotécnicos necessários ao embasamento de um bom projeto para, ou irresponsavelmente se jogar com a sorte, ou então comodamente adotar-se a solução de engenharia genérica que mais esteja em moda naquele momento, qualquer que seja o fenômeno a ser enfrentado.
- no caso de obras já antigas, o que mais comumente ocorre, geralmente por uma economia nada inteligente, é o completo abandono dos indispensáveis serviços de monitoramento e conservação das obras. Via de regra fenômenos de “quedas de barreiras” dão “avisos” e sinais de sua provável futura ocorrência. Esses sinais, trincas nos terrenos, rachaduras nos sistemas de drenagem, abatimentos na pista, alagamento a montante de aterros, etc., permitiriam aos responsáveis pela obra uma eficiente atuação preventiva sempre capaz de evitar o acidente. Como um exemplo gritante, aterros que “rodam”, levando um trecho da pista consigo, certamente têm suas galerias/bueiros de drenagem de ligação montante-jusante, ou desde o início mal dimensionadas ou mal construídas, ou progressivamente entulhadas (obstruídas) com galhos, restos vegetais, solos e pedras, perdendo então sua capacidade de vazão. Fatos perfeitamente visíveis e detectáveis pelo mais simples serviço permanente de vistorias rotineiras.
- um outro aspecto importante está em um problemático processo de perda da competência técnica por parte de nossos órgãos públicos. Quase sempre essa perda de competência está associada à questão salarial e à escassez de verbas para atividades mínimas elementares. Acrescente-se a isso um fator de enorme gravidade, qual seja, até como decorrência, o esquecimento de um sentimento que tantas glórias e êxitos trouxe à engenharia pública nacional, o “espírito de missão”. Diferentemente da dedicação e do amor com que os técnicos antigos cuidavam de suas responsabilidades, hoje, ressalvadas meritórias e heróicas exceções, predominam o desencanto, que leva ao acomodamento, o “vire-se como der”, ou até o descaso e o mais preocupar-se com atividades privadas paralelas. Acresça-se a isso a comum ocorrência de desvios funcionais associados à adoção da prática de terceirização de serviços de conservação. Obviamente, todos esses aspectos ligados direta ou indiretamente ao desmonte tecnológico e financeiro a que os órgãos públicos responsáveis por nossas obras de infra-estrutura vêm sendo já há anos submetidos pelos vários governos que se sucedem.
Na área privada consolida-se a tendência das grandes e médias empresas trabalharem com a generalizada disposição de não manter em seus quadros equipes técnicas permanentes, o que implica também na perda da memória técnica e da experiência acumulada.
Enfim, em tempos onde se discute exaustivamente a necessidade do retorno dos investimentos públicos e privados em obras de infra-estrutura, esses fatos todos estão a sacudir nossa racionalidade: investimentos para construção de novas obras e recuperação de obras antigas são fundamentais e indispensáveis, mas serão investimentos realizados com baixíssima inteligência se não se fizerem obrigatoriamente acompanhar de exigências explicitadas e especificadas para o emprego da melhor técnica, antes, durante e após a inauguração da obra, ou seja, no projeto, na implantação e na conservação da obra.


Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT  - Instituto de Pesquisas Tecnológicas
Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”

Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente

domingo, 15 de abril de 2018

Buraco negro tributário - CELSO MING, OESP

ESTADÃO - 15/04

A OCDE estima que a digitalização da economia reduza entre US$ 100 bilhões e US$ 240 bilhões a arrecadação global

Na Tailândia, um turista alemão usa os serviços de uma rede social dos Estados Unidos para compartilhar fotos das férias. No Brasil, itens de beleza sul-coreanos podem ser adquiridos num site chinês de vendas online. E, na França, um apartamento é alugado num aplicativo por casal de australianos em lua de mel.

Atividades comerciais pela internet seguem ritmo avassalador. Movimentam no mundo cerca de US$ 3 trilhões anuais e carregam tanto oportunidades quanto novos problemas.

Alguns desses problemas são fonte de preocupação de quem está à frente das finanças das principais economias do planeta. Desde 2012, a pedido dos países-membros do G 20 (grupo dos 20 mais poderosos países do mundo), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) acompanha os efeitos da grande expansão dos serviços acoplados à digitalização pelo seu efeito devastador sobre a arrecadação de tributos. É fator que também vem transferindo empresas e lucros para paraísos fiscais e países com baixa carga tributária. A estimativa é de que esse fator reduza entre US$ 100 bilhões e US$ 240 bilhões a arrecadação global.

A versão mais recente do levantamento da OCDE deixa claro que o mundo em que os sistemas tributários ainda vigentes foram concebidos não existe mais e que é preciso encontrar novas formas de tributar as transações que já não obedecem mais às barreiras geográficas. Possíveis soluções, no entanto, só devem ser propostas em 2020, quando sairá o relatório final sobre o assunto.

De modo geral, as legislações fiscais em vigor têm por base três elementos de localização: a dos beneficiários, a dos fornecedores ou a de um bem imóvel. Mas esses elementos ficam difusos no ambiente digital, observa Rodrigo Brunelli, sócio do escritório Ulhoa Cantos Advogados e mestre em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Leiden, Holanda. Exemplo: a Amazon, gigante de vendas online, mantém negócios em toda a Europa, mas sua sede regional está no pequeno Luxemburgo, onde as alíquotas são mais baixas do que nos países vizinhos.

Para enfrentar a fuga de receitas, a Comissão Europeia propôs que os países-membros tributem em 3% as receitas de empresas digitais que atuam em seus territórios, o que poderia gerar arrecadação de € 500 milhões por ano. As empresas a serem tributadas precisam ter receitas anuais globais de €750 milhões. Para ter ideia das proporções, somente em 2017, o Facebook registrou na Europa receitas da ordem de €32,5 bilhões.

A proposta é de que o imposto vigore apenas temporariamente até que seja encontrada a forma ideal de tributação. Ainda assim, a ideia traz mais problemas do que soluções. Além de ser abusivo, na medida em que tributaria receitas e não o lucro, ignora que a digitalização se estende a empresas tradicionais, nascidas no ambiente convencional, mas também atuantes no mundo virtual, como a Walmart. Como separar as coisas?

A preocupação não é só europeia. Pelo Twitter, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem mandado recados de que pretende apertar o cerco à Amazon, porque “paga pouco ou nenhum imposto” e provoca perdas ao correio nacional de US$ 1,50 a cada entrega.

Pesquisadora da Universidade de Oxford e professora da Universidade de Leeds, a especialista em tributação Rita de la Feria adverte que o problema vai bem além de Facebook, Spotify ou Alibaba. Atinge todo o sistema de arrecadação, nos âmbitos da renda, do trabalho e do consumo.

No âmbito do trabalho, as plataformas digitais, como Uber e Airbnb, se expandem e estimulam profissionais a migrarem para atividades “por conta própria”. A consultoria McKinsey reporta, por exemplo, que na Espanha os freelancers digitais são hoje 25% da força de trabalho. Ou seja, um quarto dos trabalhadores paga contribuição laboral baixa ou nula.

No caso do consumo, o problema é ainda maior, na medida em que essa é a principal fonte de receita de muitos países. Como tributar compras e vendas realizadas a partir de qualquer ponto cardeal, sem possibilidade de localização do vendedor, ou quando pago com criptomoedas, cujo movimento não identifica as partes?

Só haverá tributação quando realizada a importação? E quando o produto for um software: como definir onde o valor é gerado e como medi-lo para efeito de cálculo da base tributária?

A solução segue distante e esse buraco negro produz consequências: “Sem arrecadação, os serviços públicos e a estabilidade social ficam ameaçados”, avisa Rita de la Feria.