quarta-feira, 4 de abril de 2018

Dificuldades, Antonio Delfim Netto, FSP


Foram as mudanças institucionais aprovadas pelo Congresso Nacional que deram ao Ministério Público e à Polícia Federal os instrumentos para realizarem com eficiência as suas missões. Eles são produtos da atividade política. Revelaram-se importantes para a desmontagem do incesto entre “políticos” do Executivo e do Legislativo e gigantescas organizações do setor privado.
Operação Lava Jato é um processo de aprendizado da utilização concreta daqueles instrumentos, o que talvez explique alguns dos seus excessos. Mas não se deve esquecer que foi por obra da política e dos mecanismos que ela criou que a operação pode transformar-se em um ponto de inflexão na história do Brasil. Depois dela, o país nunca mais será o mesmo. 
Causou alguns inconvenientes de curto prazo, mas abriu uma ampla avenida de cooperação legítima e ética entre o Estado e o setor privado em um jogo cuja soma, a experiência histórica mostra, é positiva. Adicionou um elemento permanente à nossa capacidade de construir um desenvolvimento econômico robusto, inclusivo e sustentável. 
É lamentável que na situação em que nos metemos passou-se a condenar o exercício da política, e não os “políticos” que a produziram. Isso é um erro que pode dar lugar a aventureiros e propostas de mudanças radicais que sempre terminam no caos.
É evidente que todas as acusações devem ser tecnicamente analisadas com a presunção de inocência e amplo direito ao contraditório. E, se houver provas objetivas, os malfeitos deverão ser adequadamente apresentados ao juízo. 
Não se discute: na República ninguém é inimputável, nem delatores nem delatados. Nem mesmo os acusadores de ofício, se for provado algum abuso de conduta. 
O momento é grave. Parece plausível, portanto, que o Supremo Tribunal Federal —que sacralizamos na Constituição —, como o “garante” do equilíbrio da independência e harmonia entre os Poderes da República e da paz social da nação, paute a sua ação ponderando cuidadosamente as consequências de longo prazo de suas decisões, pois, como ensinou Tomás de Aquino, “a prudência é mãe de todas as virtudes”.
A teatralização exagerada da judicialização da atividade política e a consequente politização da Justiça das últimas duas semanas aumentaram de tal maneira a pressão sobre o Executivo que nenhum burocrata se dispõe a assinar um papel sem antes submetê-lo a uma consulta ao Ministério Público ou ao Tribunal de Contas da União, uma séria ameaça à democracia. 
Suspeito que esse “imbróglio” pode nos levar à estagnação econômica e tornará o Brasil ainda mais precariamente administrável do que já é hoje.
Antonio Delfim Netto

O STF e a turma dos sem-instância, Elio Gaspari, FSP

O STF e a turma dos sem-instância

No andar de cima a sentença só vale na última instância, no de baixo, fica-se na cadeia sem instância nenhuma

O Supremo Tribunal Federal julgará hoje o habeas corpus de Lula, condenado pelo TRF-4 a 12 anos e um mês de prisão. Por trás e acima desse recurso está a questão do cumprimento de uma sentença depois que ela passou pela segunda instância. O tribunal já decidiu nesse sentido, mas alguns ministros mudaram (ou não mudaram) de opinião, levando a bola de volta ao centro do campo. Os doutores são todos adultos e sábios. Suas decisões são finais, e seus argumentos eruditos às vezes são incompreensíveis.
Na questão da segunda instância trata-se de decidir se um cidadão condenado por um juiz, com a sentença ratificada no primeiro nível superior, deve ir para a cadeia, ou se ele tem direito a continuar solto até que seja apreciado o seu último recurso.
Em juridiquês, o debate é interminável. Na vida real, os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal discutem a essência social da Justiça brasileira. Essa questão só esquentou quando o juiz Sergio Morocomeçou a mandar para a prisão a turma do andar de cima. Isso porque no andar de baixo a história é outra. Quatro em cada dez brasileiros que dormem na cadeia estão lá sem julgamento algum. São os "sem-instância" chamados de "presos provisórios", gente que não tem dinheiro para pagar bons advogados. Há 711 mil detentos no país, 291 mil são "provisórios".
Muita gente torceu o nariz quando o ministro Luís Roberto Barroso disse que há um velho "pacto oligárquico" na raiz das roubalheiras expostas pela Lava Jato. Os pactos oligárquicos são implícitos e impessoais. Ninguém se apresenta como representante da oligarquia das empreiteiras, pedindo audiência a um burocrata nomeado pela oligarquia política. Apesar disso, os pactos do passado são reconhecidos e estudados, sem ofensas aos mortos. Está nas livrarias "Africanos Livres - A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil", da professora Beatriz Mamigonian. Ela contou um aspecto do pacto oligárquico que sustentou a escravidão no século 19 e expôs a boca-livre da elite do Rio no trato dos negros contrabandeados que eram capturados pelos ingleses ou pelo governo.
A coisa funcionava assim: desde 1831, pela lei, seriam livres todos os africanos chegados ao Brasil. Foram capturados algo como 11 mil negros, transformados em "africanos livres" obrigados a prestar 14 anos de serviços à Coroa, que os terceirizava para os maganos da Corte. Os concessionários pagavam uma taxa que equivalia a um mês de trabalho do negro, caso o alugassem para outros serviços.
Mamigonian conta o caso de Felício Mina, que foi trazido para o Rio em 1831. Em 1844, estava preso e esperava que os ingleses viessem protegê-lo. Seu concessionário dizia que ele era um ladrão perigoso, por "altivo", "jamais disposto a humilhar-se".
Entre 1831 e 1835 o concessionário de Felício explorou um plantel de 15 "africanos livres". Ele se chamava José Paulo Figueroa Nabuco de Araújo, nada a ver com o pai de Joaquim Nabuco. Talvez algum dos 11 ministros de hoje lembre dele, pois era titular do Supremo Tribunal de Justiça e escreveu uma "Coleção Cronológica das Leis do Império do Brasil". Talvez o doutor não soubesse, mas fazia parte do pacto oligárquico e usufruía dos seus benefícios. (Jornalistas também tinham acesso ao mimo dos negros.)
Elio Gaspari

Não se trata de Lula, Opinião FSP


Valores e preferências políticas à parte, é forçoso reconhecer que a prisão de condenados em segunda instância constitui, na legislação brasileira, um tema complexo.
A própria Folha não deixou de manifestar preocupação quando, em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir essa possibilidade. Ali se alterava, afinal, uma interpretação do texto constitucional que vinha sendo adotada desde 2009.
“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, estabelece o inciso LVII do artigo 5º da Carta. Ao longo de sete anos, prevaleceu a leitura de que tal dispositivo só permite o encarceramento após esgotados todos os recursos nas cortes superiores.
Em outubro de 2016, o STF reafirmou, por estreita maioria de 6 votos a 5, que o cumprimento da pena poderia começar a partir de uma segunda condenação —pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, nos exemplos mais importantes.
Este jornal apoiou a decisão, embora já tivesse, no passado, defendido a necessidade de uma palavra do Superior Tribunal de Justiça antes do encarceramento. Como é praxe nessa circunstância, foram expostos aos leitores os motivos da mudança de opinião —que permanecem válidos hoje.
Constata-se, em especial, que a sistemática anterior se mostrava um fator de impunidade seletiva. Réus abastados podiam valer-se da miríade de manobras protelatórias à disposição de seus advogados, prolongando processos por anos ou décadas.
É razoável, e usual no mundo, que se dê início à punição de alguém já considerado culpado em dois julgamentos distintos.
O raciocínio não se modifica em se tratando de penas alternativas, há muito advogadas por esta Folha para réus que não representem risco de violência. Este, entretanto, é um debate para o Legislativo e para o longo prazo.
De palpável e imediato, há um entendimento do STF que precisa ser respeitado. Nesse sentido, aliás, merece elogios a conduta da ministraRosa Weber, que, derrotada em 2016, tem seguido a posição do colegiado. 
A despeito de mudanças da composição e de opiniões individuais no Supremo, os magistrados farão melhor em não rever uma decisão tão recente —e não somente por ser ela virtuosa. Importa, também, preservar a estabilidade jurídica e institucional do país.
Tais observações independem do caso particular do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)condenado pelo TRF da 4ª Região e cujo pedido de habeas corpus deverá ser examinado nesta quarta-feira (4) pelo tribunal.
Evidente, porém, que os ministros incorreram em outro risco, desta vez para sua credibilidade, ao deixar que o pleito do presidenciável petista se misturasse ao embate interno sobre execução de penas.
Será difícil agora evitar que nova reviravolta interpretativa da Carta pareça conveniência de ocasião.