VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, FERNANDO LIMONGI - O ESTADO DE S. PAULO
27 Setembro 2014 | 16h 00
A USP virou refém de sindicatos e da falta de transparência e quem diverge é desqualificado. Passou da hora de sairmos desse torpor, afirmam professores
A Universidade de São Paulo passa por uma das maiores crises financeiras de sua história. Nos últimos meses, os cidadãos paulistas viram reitoria e funcionários se digladiarem sem conseguir chegar a nenhuma forma produtiva de diálogo. A greve só terminou após a intervenção do Poder Judiciário.
Enganam-se aqueles que pensam que nosso problema é o presente. O principal problema da USP é seu futuro. Nada indica que a crise - que não é só financeira, é institucional, política e de identidade - seja apenas passageira. O comportamento das partes envolvidas na greve não parece indicar que algo vá mudar no futuro.
De um lado, um sindicato autoritário, intolerante e conservador que considera sua visão como a única correta e, por isso, recorre à greve sempre que alguém contraria suas demandas. Um sindicato que se orgulha de promover um “trancaço”, isto é, bloquear o livre acesso à universidade, comemorando o infortúnio que causa a todos como uma grande vitória. Um sindicato que não hesita em intimidar quem decide trabalhar e, antes mesmo de qualquer resultado palpável, já definia a última greve como “histórica” simplesmente por ter durado tanto.
A greve tornou-se um fim em si mesmo. Quanto mais greves, quanto mais longas, melhor. Na visão do sindicato, isso é fazer história. Mas que história está sendo feita? O sindicato dos funcionários comandou a greve, trazendo a reboque o movimento estudantil e, o que é mais preocupante, a associação que representa os professores, a Adusp, que não viu nenhum problema em se dizer parte desse “momento histórico” com o respaldo de assembleias que mal chegaram a reunir uma centena de docentes.
Os jargões e frases feitas são comuns a ambos os sindicatos, o dos funcionários e o dos professores. São eles que há décadas repetem os mesmos lugares-comuns desgastados - “em defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade” ou “contra o sucateamento da USP”. Contudo, durante a gestão anterior, esses sindicatos se calaram de forma eloquente. Após fazer greves anuais durante mais de uma década, foram quatro anos de silêncio, justamente durante a gestão que sucateou a universidade e levou a USP ao abismo. Bastou o antigo reitor distribuir agrados, vale alimentação, vale supermercado, e os sindicatos aceitaram tudo passivamente. As palavras de ordem só são retiradas do baú quando interessa ao bolso, não importa a estridência com que sejam bradadas.
De outro lado, uma administração universitária sem transparência. Uma universidade que tem um dos maiores orçamentos do mundo, mas gasta tudo sem dar grandes satisfações a ninguém. Apenas quando a situação já havia saído do controle algumas propostas surgiram. Poucas, contudo. E nenhuma baseada em algum projeto para a USP. Aliás, a USP parece não ter projeto há muito tempo. Vivemos o dia a dia, vivemos de nossa tradição e torcemos para que tudo funcione razoavelmente bem.
Os únicos debates que ocorrem, e somente nesses momentos de crise, são algo tão infantilizado que não parecem ser dignos do nome. Quem acompanha esses debates com o mínimo de senso crítico tem a impressão de que a USP se tornou uma simples escola. Não é uma universidade, não é um local de pesquisa, não é um local de produção de conhecimento. É simplesmente um lugar que dezenas de milhares de jovens frequentam para ganhar um diploma ao fim de alguns anos.
A primeira confirmação dessa mediocrização é a discussão sobre se temos ou não muitos professores e muitos funcionários. Aqui os números vêm à tona - “os números não mentem”, diriam alguns apressados. Segundo esses números, a USP não teria uma relação professor-aluno tão desproporcional. Pelo contrário, poderíamos até contratar mais, porque temos 1 professor para cada 15 alunos, enquanto Harvard, por exemplo, tem 1 professor para cada 7 alunos. Segundo essa conta, daria para dobrar o número de professores.
Contudo, essa estatística não significa absolutamente nada sozinha. Ela basicamente reflete um dado sobre o tamanho das nossas salas de aula. Discutir se temos muitos ou poucos professores com base nisso é de uma infantilidade ímpar. Além disso, há “números que não mentem” para sustentar qualquer tese. Por que não falar, por exemplo, das universidades alemãs, públicas como a USP? Afinal, muitos daqueles que usam uma universidade privada como Harvard como exemplo seriam contra a entrada de qualquer mísero centavo privado na USP.
As universidades alemãs - públicas - têm uma relação professor-aluno muitíssimo superior à da USP. Em algumas, são 40, 50, 60 alunos para cada professor. Elas são ruins por isso? Não. Ao contrário, sua pesquisa continua sendo de excelência e seus pesquisadores continuam ganhando Prêmios Nobel. E com um orçamento infinitamente menor que o da USP. Por que sempre comparar a USP com as universidades norte-americanas, sempre da Ivy League, uma das estruturas universitárias mais elitistas do mundo?
Outro sinal da infantilização do debate são as opiniões sobre o que fazer depois de uma greve, especialmente de uma greve longa como a última. A principal pergunta é se, quando e como devemos repor as aulas. Essa parece ser a única coisa que de fato importa, a reposição de aula.
Ninguém se pergunta o que fazer com cooperações internacionais perdidas, com pesquisas atrasadas, com eventos não realizados, com pesquisadores estrangeiros que perderam seu tempo e dinheiro vindo à USP dar de cara, literalmente, com a porta. O importante é que a reposição das aulas não atrapalhe nossas férias. Produção de conhecimento parece não ser problema nosso.
A prova disso é que, na USP, para que um professor concursado possa viver até os 70 anos sem ser incomodado por ninguém basta que ele dê suas seis ou oito horas-aula de graduação por semana. Se não fizer isso, talvez (mas apenas talvez) alguém possa reclamar. Mas, se ele não produzir nada a vida inteira, se não orientar alunos de pós-graduação, se não formar novos pesquisadores, se não oferecer atividades de extensão, se não quiser discutir suas ideias com ninguém, se não quiser cooperar com nenhum outro pesquisador, no Brasil ou no exterior, nada acontecerá com ele. Nós, professores, simplesmente não somos avaliados. Consumimos bilhões de reais por ano, pagos por todos os cidadãos do Estado de São Paulo, mas não somos avaliados pelo que produzimos (ou deixamos de produzir). E qualquer tentativa de introduzir algum sistema de avaliação de nossa atividade é rechaçada imediatamente pelos sindicatos, na sua postura conservadora de manter o status quo a todo custo.
Nos debates sobre o que fazer diante da crise financeira parece não ocorrer a ninguém considerar o óbvio. Recursos são finitos e, portanto, há conflitos sobre sua distribuição. Mas, para os sindicatos e, não podemos esquecer, também para a opinião difusa que sustenta suas estratégias de pedir sempre mais aumentos, a finitude dos recursos seria uma mentira ou, no máximo, uma desculpa de gestores incompetentes. E, se o pagamento de salários excede as receitas, a solução é simples, basta pedir mais recursos ao Estado, que teria o dever de vir em nosso socorro, aconteça o que acontecer, não importa que tenhamos nos transformado em um mero estabelecimento de ensino como outro qualquer.
É preciso repensar a vocação da USP. Se todo o debate sobre nosso futuro se limitar a quantas aulas teremos, quantos professores por aluno ou quando vamos repor aulas então podemos esquecer qualquer pretensão de um dia nos tornarmos uma universidade de excelência internacional. Se o foco for a pesquisa e a produção de conhecimento, temos alguma chance. Para isso, contudo, é preciso avaliar se e o que estamos produzindo. Para que tudo isso aconteça, é preciso que deixemos a passividade de lado, porque ela fez com que a repetição de chavões desgastados dominasse a USP. Já faz algum tempo que quem ousa manifestar opinião diversa e desafiar dogmas é imediatamente desqualificado. Está mais do que na hora de sairmos desse estado de torpor.
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Virgílio Afonso da Silva é professor titular de Direito Constitucional da USP
Fernando Limongi é professor titular de Ciência Política da USP