domingo, 14 de julho de 2013

Meio médico, meio escravo - FERNANDO REINACH


O Estado de S.Paulo - 13/07

Incapaz de convencer jovens médicos a trabalhar no SUS, o governo federal resolveu criar um novo profissional, o meio médico meio escravo. Esse profissional, inspirado nos mitológicos centauros e na famosa meia muçarela meia calabresa, virá em duas versões, nacional e importado. É a pizza que vai ser servida no SUS.

Durante anos dei aula para os calouros da Faculdade de Medicina da USP. Eram jovens que haviam escolhido uma profissão em que a derrota é certa. Ninguém consegue escapar da morte. Ingenuamente arrogantes e prepotentes, algo compreensível em quem sempre foi o melhor aluno, sobreviveu dois anos de cursinho, e se classificou entre os 300 melhores no vestibular mais competitivo, acreditavam que se tornando médicos curariam doenças letais, mitigariam o sofrimento, descobririam novos remédios e, lutando contra o único inimigo realmente invencível, ajudariam a humanidade. Durante os dois primeiros anos de curso, a maior dificuldade era mantê-los longe do hospital. Bastava surgir a oportunidade de participar em alguma atividade que envolvesse pacientes e a frequência nas minhas aulas de bioquímica minguava. Isso não era um problema, aqueles alunos aprendiam sozinhos.

Mas nos anos seguintes a realidade desabava sobre a cabeça dos alunos. O primeiro cadáver dissecado, cenas de sofrimento, a primeira morte observada de perto, a primeira parada cardíaca que não consegui reverter, um erro que só não foi fatal porque um supervisor estava atento. A primeira noite no pronto-socorro, uma lâmpada quebrada dentro da vagina de uma paciente. Na década de 80 ano, um aluno se suicidava todo ano. Hoje existe na Medicina da USP um serviço dedicado exclusivamente a ajudar os alunos a enfrentar a impotência e o convívio com o sofrimento e a morte.

Mas a realização do sonho também aparece, sofrimentos são amenizados, situações desesperadoras são revertidas. Aos poucos, os alunos percebem que a medicina moderna é poderosa, mas complexa. Com conhecimento teórico, muita prática e um trabalho coordenado de toda a equipe, o sonho pode se tornar realidade.

A arrogância do calouro que acreditava que se bastava, que o sucesso dependia somente de sua dedicação e esforço, desaparece. Ele aprende que o bom médico, sem recursos diagnósticos e equipamentos, sem leitos hospitalares, sem remédios, sem enfermeiros, sem fisioterapeutas, sem nutricionistas e sem um processo de gestão sofisticado e ágil, vai praticar uma medicina medíocre.

Doenças que poderiam ser curadas pioram, doenças controláveis progridem rapidamente e mortes que poderiam ser evitadas ocorrem frequentemente. Aprendem que o médico é somente uma peça importante do sistema de saúde. Esse aprendizado não é teórico, os alunos trabalham no caos semiorganizado do Hospital das Clínicas, fazem estágios em outros hospitais públicos e em centros de saúde. Ao terminar o curso, eles sabem que praticar a medicina sem suporte é tão difícil quanto jogar tênis sem raquete.

Para os recém-formados, a frustração mais difícil de tolerar é não praticar a medicina que aprenderam por falta de infraestrutura. Muitos, incapazes de suportar a impotência diante de pacientes que voltam piores por falta de remédio, frustrados diante de pacientes que não podem ser tratados por falta de resultados de diagnósticos, ou desesperados com a visão de filas infinitas, abandonam a prática médica. Outros, apesar de despreparados para tarefas administrativas, se tornam gestores na esperança de melhorar a infraestrutura pública. Vários preferem trabalhar em hospitais de elite, onde a infraestrutura é quase perfeita. Alguns desenvolvem uma casca mais grossa e aceitam fazer o que é possível, tolerando a frustração. E é claro que há os que se aproveitam da bagunça para fingir que trabalham e receber o salário no final do mês.

Não é de se espantar que nos últimos anos os serviços públicos não tenham conseguido atrair médicos para trabalhar nos postos de saúde e hospitais onde as condições de trabalho são piores. Os salários foram aumentados, mas a maioria dos médicos recusa um emprego fixo de R$ 10 mil em um local sem infraestrutura. O experimento não foi levado adiante, mas seria interessante saber o salário necessário para convencer os melhores alunos de nossas melhores universidades a venderem seus sonhos.

Melhorar as condições de trabalho é a solução óbvia. Mas isso exige que o governo assuma a culpa e deixe de empurrar o problema com a barriga. Mais fácil é culpar os jovens médicos, pouco patrióticos, que só pensam em dinheiro e se recusam a trabalhar em um sistema público de saúde bem organizado, eficiente, sem filas e tão bem avaliado pela população.

Diálogo no Planalto: "A solução é forçar os médicos a trabalhar onde queremos. Mas como é possível forçar alguém que possui um CRM e portanto o direito de praticar sua profissão em qualquer lugar do País? Fácil, basta criar um CRM provisório, que só permite ao recém-formado clinicar no local designado. Cumprida a missão, liberamos o CRM definitivo. Mas isso não é uma forma de coerção? Não se preocupe, o trabalho cívico fará parte formal do treinamento, basta aumentar o curso em dois anos. Boa ideia, quem escreve a medida provisória?"

No dia seguinte: "Um aluno com um CRM provisório é um médico de verdade? Pode tratar pacientes sem supervisão? Claro que sim, senão como ele vai trabalhar no local designado? Mas então ele não é um aluno, é um médico escravizado. Não, escravidão é inconstitucional, ele tem de ser também aluno, vai lá, escreve a MP, depois resolvemos esse detalhe. Sim, chefe, mas que tal incluirmos os médicos importados na MP? Basta dar a eles uma licença provisória para praticar a medicina no País, uma espécie de CRM provisório atrelado ao local de trabalho. Brilhante, vai, escreve a MP que o Diário Oficial fecha daqui a duas horas."

No terceiro dia eles descansaram. Haviam criado o meio médico, meio escravo. A pizza que esperam servir aos manifestantes. Se tudo der certo, agora vamos protestar na frente das Faculdades de Medicina e do CRM, os verdadeiros culpados pela crise na saúde pública.

Desequilíbrio nos Brics - EDITORIAL FOLHA DE SP -


FOLHA DE SP - 14/07

O FMI adotou tom de preocupação na última semana ao falar sobre as perspectivas da China.

A instituição enfatizou o risco de que sua nova projeção de crescimento de 7,8% para o país neste ano seja otimista demais e afirmou que não há substituto na economia mundial para o motor chinês.

Poucos se arriscam a prever o colapso do gigante asiático, mas já há bancos e consultorias esperando um crescimento em 2013 menor do que 7,5%, o que seria o ritmo mais lento desde 1990.

A desaceleração chinesa é necessária. A expansão excessiva dos financiamentos bancários, nem sempre direcionados ao consumo e a atividades produtivas, criou uma bolha nos últimos anos que Pequim agora tenta esvaziar.

A China, mola propulsora da expansão e da fama dos Brics, não é o único país do grupo que precisa colocar a economia em ordem.

Na Índia, um significativo rombo nas transações com o exterior levou a forte desvalorização recente da rupia. A Rússia enfrenta desaceleração econômica provocada pela perda de competitividade do setor privado, exacerbada pelo ritmo lento dos investimentos.

Tampouco há sinais de retomada no Brasil. O indicador que mede a atividade econômica calculado pelo Banco Central apontou em maio a maior contração desde o fim de 2008, e muitos analistas já esperam que 2014 seja tão fraco quanto 2013 --ou pior.

Desequilíbrios, desacelerações e contrações fazem parte dos ciclos econômicos e normalmente são acompanhados por debandada de investidores. Não tem sido diferente com os Brics --que, depois do Japão nos 1980 e das empresas da tecnologia na década seguinte, se tornaram moda no início deste século.

Isso não quer dizer que a euforia com o bloco tenha sido cortina de fumaça. O acrônimo, que soa como "tijolos" em inglês, foi uma boa sacada para reunir um grupo heterogêneo --Brasil, Rússia, Índia, China e, mais recentemente, África do Sul-- que tinha em comum o potencial de crescimento.

Em 2000, somadas, as economias do quinteto representavam pouco mais de um quarto do Produto Interno Bruto norte-americano. Essa proporção saltou para 95% no ano passado, quando as riquezas produzidas pelo grupo atingiram US$ 14,9 trilhões.

Mas a era do boom dos Brics pode estar ficando para trás. O enfraquecimento econômico do grupo tem efeito direto em cada um dos países, com a diminuição do fluxo de comércio e de investimentos. Esse impacto poderá se intensificar se a marca vier a ser substituída por outro modismo de mercado.

Agronegócio avançou com uso de transgênicos - EDITORIAL O GLOBO


O GLOBO - 14/07

Se o Brasil tivesse cedido ao preconceito ideológico contra o uso de sementes modificadas, hoje não ocuparia mais uma posição de destaque no mercado



O agronegócio no Brasil às vezes é comparado ao “pré-sal” do interior, pelo valor que agrega à economia do país. As dificuldades decorrentes de infraestrutura precária foram compensadas pela combinação de terras disponíveis com avanços tecnológicos que proporcionaram saltos de produtividade expressivos. O agronegócio é o que assegura saldo na balança comercial brasileira, pelo elevado superávit acumulado nas exportações muito superiores às importações. À medida que os investimentos em infraestrutura começarem a apresentar resultados, o Brasil conseguirá conquistar ainda mais mercados para o agronegócio.

A atualização tecnológica é, sem dúvida, o grande desafio do setor. Se o Brasil, há dez anos, tivesse adotado uma postura radical contra o uso de sementes geneticamente modificadas, provavelmente hoje não ocuparia a posição de segundo maior produtor mundial de soja. Cerca de 88% da produção brasileira são de soja transgênica, mais resistente a pragas. Por prudência e estratégia de mercado, o país não abandonou o plantio de sementes convencionais. Com isso, tornou-se também o maior produtor de soja convencional, atendendo um grupo de consumidores que prefere pagar mais por esse tipo do produto.

O uso de sementes geneticamente modificadas foi um dos fatores que contribuíram para o aumento de produtividade. Nem os riscos decorrentes dessa produção se confirmaram, e nem o cultivo de produtos transgênicos resolveu todos os problemas, como se imaginava inicialmente. O plantio de sementes geneticamente modificadas sem abandonar completamente as convencionais vem se mostrando uma boa estratégia.

As preocupações de caráter científico quanto ao uso de sementes transgênicas eram válidas e motivaram a realização de estudos, pesquisas e testes mais meticulosos para se avaliar os riscos, seja para o consumidor, seja para a produção em si. O Brasil foi cauteloso na liberação dessas sementes. No entanto, parte considerável da resistência aos produtos geneticamente modificados tinha mais caráter ideológico, por envolver, no caso, uma grande multinacional do setor. O temor de formação de um monopólio que se voltaria contra os produtores acabou vencido, na prática. O mercado estimulou outras companhias a investirem nessa tecnologia, e nos próximos anos haverá uma oferta diversificada de sementes geneticamente modificadas.

Essa transformação favoreceu também o avanço de outras tecnologias. Assim, já se vislumbra que, até o fim desta década, mais saltos de produtividade ocorrerão. No caso específico da soja, espera-se um avanço na produtividade média no Brasil, de 47 para 67 sacas por hectare. A produção poderá crescer sem que para tal se precise cultivar mais terras. É o ideal, do ponto de vista da preservação do ambiente. O que era visto como inimigo da ecologia, virou aliado.