quarta-feira, 3 de julho de 2013

A inútil derrubada da PEC 37, por Ives Gandra Martins

IVES GANDRA MARTINS *
Em preciso, incisivo e gráfico editorial, o Estado de 30/6 (A3) sustentou que a derrubada da PEC 37 por oportunismo político terá efeitos desastrosos. Da análise dos argumentos lá expendidos, como das manifestações inúmeras de constitucionalistas, ministros do STF - na ativa ou aposentados - e do texto da Constituição federal (CF) se percebe que, efetivamente, a decisão foi, sem maiores estudos, tomada por um Congresso acuado pela multidão, que desconhecia o que a PEC propunha.
Pessoalmente, em palestras e artigos, sempre me manifestei no sentido de que aquela proposta de emenda era rigorosamente inútil. Afirmava o que já estava na Constituição e não tirava do Ministério Público (MP) poder que nunca teve.
A polícia judiciária não é um órgão subordinado ao MP, mas ao Poder Judiciário. O artigo 144, § 4.º, da CF - cuja redação é a seguinte: "às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares" - em nenhum momento estabelece que as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais pertencem, simultaneamente, ao Poder Judiciário e ao MP. Declara apenas que são do Judiciário.
Não sem razão, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori, em entrevista ao Estado, declarou que a PEC 37 não pretendia retirar nada do MP, pois não se retira de alguém algo que esse alguém não tem.
As competências do Ministério Público não são idênticas às do Poder Judiciário. A Constituição federal outorga ao Judiciário o dever de julgar, correspondente ao disposto nos artigos 92 a 126 da CF (capítulo III do Título IV). Para completar as "funções essenciais à Justiça" - é esse o enunciado do capítulo IV do Título IV da Lei Suprema - prevê que duas instituições conformam o tripé da prestação jurisdicional, a saber: o Ministério Público (artigos 127 a 132) e a advocacia (artigos 133 a 135).
Estão em igualdade de condições. Numa democracia, o MP tem a função principal de acusador, em nome da sociedade, e a advocacia, a função de defendê-la. Por essa razão, como cláusula pétrea, imodificável, o constituinte garantiu que a defesa, nos processos administrativos e judiciais, deve ser ampla (artigo 5.º, inciso LV). O uso de adjetivo com tal densidade ôntica não foi despiciendo, mas garantia absoluta de que tal direito, o de defesa, é um dos sustentáculos de um regime democrático, posto que inexistente nas ditaduras. Por isso tal disposição é cláusula pétrea da Carta Magna, não podendo ser alterada nem por emenda constitucional (artigo 60, § 4.º, inciso IV).
As funções dessas duas instituições são, pois, iguais (advocacia e Parquet) e dependem do Poder Judiciário para a solução dos conflitos.
Ora, o delegado é membro da polícia judiciária. Não é polícia do MP. Por essa razão, deve presidir o inquérito policial, devendo remeter suas conclusões ao magistrado, a que se subordina, e não ao titular do direito de acusar. Este, pela própria Constituição, pode requisitar investigações aos delegados e acusar os delegados suspeitos de prevaricação (artigo 129, incisos VII e VIII) - não mais que isso, visto que são parte nas investigações e não podem ser "parte" e "juiz" ao mesmo tempo.
Assim é que a própria Lei 12.830, de 20/6/2013, regulamentadora da investigação criminal, dispõe que as funções de polícia judiciária e de apuração de infrações penais são exercidas exclusivamente pelos delegados (artigo 2.º), cabendo-lhes a condução da investigação criminal (§ 1.º do artigo 2.º). Como se percebe, nunca estiveram os membros do MP incluídos entre os que podem dirigir a investigação. A própria lei mencionada diz que não estão, referindo-se apenas aos delegados. Até porque, se os tivesse incluído, a lei seria inconstitucional.
Por essa razão, constitucionalistas do porte de José Afonso da Silva, Nelson Jobim, Cezar Peluso e Marco Aurélio Mello já se manifestaram no sentido de que não cabem ao Ministério Público funções policiais, até porque não é preparado para tanto. Os delegados, sim. Os membros do Parquet têm outras funções - relevantíssimas -, que estão explicitadas no artigo 129 da Carta Suprema do País.
Como se percebe, a derrubada da PEC 37 nada representou, pois o artigo 144, § 4.º, da Lei Suprema não foi alterado, continuando a prever que a polícia judiciária - não o MP - é constituída apenas por delegados de carreira, os únicos com competência constitucional para conduzir as investigações criminais.
O acuado Congresso, que pouco antes aprovara lei na linha da PEC 37 a fim de atender ao clamor da multidão, que desconhecia o tratamento constitucional e legal do tema, derrubou a desnecessária proposta. Aprovada ou não, não modifica a clareza do artigo 144, § 4.º, da CF, ao estabelecer que apenas aos delegados cabe a apuração de investigação criminais.
Termino este breve artigo reiterando que o Ministério Público deve cuidar de suas relevantes funções, e não pretender invadir funções de outras instituições, para as quais não são devidamente preparados promotores e procuradores.
O povo foi às ruas contra a corrupção. O MP declarou que a PEC 37 era a PEC da Corrupção, como se todos os delegados fossem corruptos e todos os membros do MP, vestais. E o povo, contrário à corrupção, pensou ser verdade a marqueteira afirmação. Como o tempo é o senhor da razão, e como a Constituição não foi mudada, à evidência continuam os delegados a ser os representantes do Poder Judiciário e continuarão os membros do MP sem competência para conduzir as investigações criminais, a teor do que dispõe o artigo 144, § 4.º, da Lei Suprema. Cumpre-lhes, todavia, exercer suas relevantes funções, que não são poucas, em prol da sociedade. Mas apenas estas (artigo 129).
* IVES GANDRA MARTINS É PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE MACKENZIE, DAS ESCOLAS DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO, SUPERIOR DE GUERRA E DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL – 1ª REGIÃO. 

terça-feira, 2 de julho de 2013

A mídia perde o bonde, por Carlos Heitor Cony na FSP


RIO DE JANEIRO - À margem dos comentários provocados pelos últimos acontecimentos em todo o país, que, apesar de redundantes, atingiram a mídia internacional, pode-se chegar a uma constatação periférica. As manifestações e reivindicações que o povo, principalmente os jovens, levou para as ruas e praças foram criadas e operadas pelas redes sociais, que podem ser comparadas aos icebergs: a parte maior fica submersa, o que se torna visível é a pequena porção de um obstáculo que pode destruir não apenas um titânico navio, mas todo um sistema político.
Até então, era a mídia impressa que criava e orientava os grandes movimentos populares. Bastaria lembrar os mais recentes: o impedimento de um presidente da República, a luta pelas Diretas-Já e até mesmo a morte de Vargas e o golpe de 1964 foram produzidos pela indignação da imprensa prontamente transmitida ao povo.
Com a crescente propagação dos sites e blogs, o poder de mobilizar a população foi transferido para a internet, onde cada cidadão, sem necessidade de qualquer habilitação ou representação, pode expressar a sua cólera contra toda instituição, grupo ou indivíduo.
Não há manuais de Redação ou leis específicas que possam patrulhar o descontentamento que, quando é geral, transforma-se em manifestações que paralisam o país, confundem o governo e podem até provocar o vandalismo de alguns.
O universo virtual criado e gradativamente aumentado pela internet (que ainda está atravessando sua idade da pedra) fez a mídia autorizada (jornal, rádio e TV) perder o bonde da história.
Não há mais a oportunidade para um só título ("J'accuse!") mudar o rumo de uma infâmia nacional. Temos agora milhares de Zolas capazes de acusar os abusos e os crimes contra o povo.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Plebiscito pode economizar bilhões , por Paulo Moreira Leite


Em minha humilde ignorância, confesso que não entendo quem diz que o plebiscito sobre reforma política pode custar caro demais. Meio bilhão, disse alguém.

Até ministros do STF tocaram neste assunto. 
Data Venia, eu acho estranho.
 
Falar em meio bilhão ou até mais é falar de uma pechincha.
 
Nós sabemos que o Brasil tem um dos sistemas eleitorais mais caros do mundo. Isso porque é um sistema privado, em que empresas particulares disputam o direito de alugar os poderes públicos para defender seus interesses em troca de apoio para seus votos. As estimativas de gastos totais – é disso que estamos falando -- com campanhas eleitorais superam, com facilidade, meio bilhão de reais. São gastos que ocorrem de quatro em quatro anos, aos quais deve-se acrescentar uma soma imponderável, o caixa 2. Sem ser malévolo demais, não custa recordar que cada centavo investido em campanha é recuperado, com juros, ao longo do governo. Quem paga, mais uma vez, é o contribuinte. 
 
O debate não é apenas este, porém.  
 
Um plebiscito pode dar um impulso decisivo para o país construir um sistema de financiamento público, em que os recursos do Estado são empregados para sustentar a democracia – e não negócios privados.
 
Explico. Nos dias de hoje, o limite dos gastos eleitorais é dado pelo volume dos interesses em jogo. Falando de um país com um PIB na casa do trilhão e uma coleção de interesses que giram em torno do Estado na mesma proporção, você pode imaginar o que está em jogo a cada eleição.
 
Bancos contribuem com muito. Empreiteiras e grandes corporações, também. Como a economia não é feita por anjos nem a política encenada por querubins, o saldo é uma dança milionária na campanha. Troca-se o dinheiro da campanha pelo favor do governo. Experimente telefonar para o gabinete de um simples deputado e pedir para ser atendido. Não passará do cidadão que atender o telefone e anotar o recado, certo?
 
Mas dê um milhão de reais para a campanha deste deputado e conte no relógio os segundos que irá esperar para ouvir sua voz ao telefone. Não é humano. É político.
 
Não venha me falar que isso acontece porque o brasileiro está precisando tomar lições de moral na escola e falta colocar corruptos na cadeia em regime de prisão perpétua.
 
O sistema eleitoral norte-americano é privado, os poderes públicos são alugados por empresas de lobistas e muito daquilo que hoje se faz por baixo do pano, no Brasil, pode-se fazer às claras nos EUA.
 
A essência não muda, porém. Empresas privadas conseguiram impedir uma reforma do sistema de saúde que pudesse atender à maioria da população a partir de uma intervenção maior do Estado, como acontece na Europa. Por causa disso, os norte-americanos pagam por uma saúde mais cara e muito menos eficiente em comparação com países de desenvolvimento semelhante.
 
A força do dinheiro privado nos meios políticos explica até determinadas aventuras militares, estimulando investimentos desnecessários e nocivos ao país e mesmo para a humanidade.
 
Só para lembrar: na Guerra do Iraque, que fez pelo menos 200.000 mortos, George W. Bush beneficiava, entre outros, interesses dos lobistas privados do petróleo, negocio dos amigos de sua família, e de empresas militares, atividade do vice Dick Cheney.
 
Essa é a questão. A reforma política poderá consumar a necessária separação entre dinheiro e política, ao criar um sistema de contribuição pública exclusiva para campanhas eleitorais, ponto decisivo para uma política feita a partir de ideias, visões de mundo, valores e propostas – em vez de interesses encobertos e fortunas de bastidor.
 
Pense na agenda do país para os próximos anos. Os interesses privados, mais do que nunca, estarão cruzados no debate público. Avançando sobre parcelas cada vez maiores da classe média e dos trabalhadores, os planos privados de saúde só podem sobreviver com subsídios cada vez maiores do Estado. O mesmo se pode dizer de escolas privadas.
 
Não se trata, é obvio, de uma batalha fácil. Não faltam lobistas privados para chamar o financiamento público de gigantismo populista e adjetivos do gênero. Eles não querem, na verdade, perder a chance de votar muitas vezes. No dia em que vão à urna, como eu e você. No resto do mandato dos eleitos, quando pedem a recompensa por seus favores.
 
Com este dinheiro, eles garantem um privilégio. Impedem a construção de um país onde cada eleitor vale um voto.
 
Os 513 congressistas que irão debater a reforma política são filhos do esquema atual. Todos têm seus compromissos com o passado e muitos se beneficiam das receitas privadas de campanha para construir um patrimônio pessoal invejável. As célebres “sobras de campanha” estão na origem de muitas fortunas de tantos partidos, não é mesmo?
 
O plebiscito é um caminho para se mudar isso. Permitirá um debate esclarecedor a esse respeito. Caso o financiamento público seja aprovado, colocará a opinião da população na mão dos deputados que vão esclarecer a reforma.